Entrevista com o artista e psicanalista Avilmar Maia.

 

 

Lúcia: Avilmar, você é psiquiatra e psicanalista. Eu gostaria de saber como foi o seu trajeto no universo das artes plásticas.
Avilmar: Tem uns 12 anos mais ou menos, fiz um curso de escultura em ateliê privado, depois um curso na Guignard. Cursos livres. 

L.: O que é o ateliê privado?
A.: Uma escola de arte privada aqui em BH. Depois fiz desenho na Guignard e cursos livres na Universidade Federal: teoria da arte e outros. E continuei produzindo. 

L.: Essa produção começa quando?
A.: 2006, 2007. Fazia desenho, escultura. 

L.: Antes de frequentar esses cursos, você já fazia alguma coisa?
A.: Não. Eu sempre gostei, mas eu estava adormecido, sem saber. Aí eu vi um anúncio de um curso de escultura na televisão e fui lá fazer. Matriculei e depois disso comecei. 

L.: Você já era médico nessa época?
A.: Sim, eu já era psiquiatra, com residência. Também já tinha feito curso de formação em psicanálise, aqui no Instituto da Escola Brasileira de Psicanálise. Eu ainda não tinha estudado arte. Engraçado porque eu comecei o curso de formação e aí, numa Jornada da Escola, vi um livro de arte que me chamou muito a atenção. 

L.: Na Jornada?
A.: Sim, na livraria da Jornada. Eu peguei uns livros de psicanálise e depois eu vi este livro de arte, era de Matisse. Aí eu falei: “Mas que livro bonito” e comprei. Era um livro muito caro. 

L.: A livraria ainda era da Scriptum?
A.: Sim. E foi assim, eu comprei o livro. Um livro grande, caro, mas eu comprei e fiquei super feliz com essa Jornada. 

L.: A Jornada te inspirou?
A.: (Risos) Sim, me inspirou. E aí uma coisa foi puxando a outra. Os cursos de escultura, depois o desenho. Tinha uns cursos interessantes antes no Museu Inimá de Paula, curso de Estética. Era muito bom o curso com professor de arte. Teve uma época na cidade de Belo Horizonte que tinha mais movimento no campo das Artes Plásticas. 

 

L.: Algum artista te marcou, particularmente?
A.: Engraçado, uma artista que me marca até hoje é a Marina Abramovich. Apesar de eu não ser perfomer. Eu não conhecia, mas uma vez vi na televisão uma performance dela. Falei: “Nossa, que coisa interessante!” Hoje eu entendo melhor isso. Talvez ela seja uma artista que tem mesmo uma questão com a arte. Algo bem particular dela. Ela consegue sair do particular e atingir o universal, às vezes de forma mais desvelada. Mas é uma artista que me marca. Aprendo muito com ela, gosto muito. Ela tem inclusive um manifesto do artista segundo Marina Abramovich, chama “Manifesto sobre a Vida do Artista” que é excelente. Todo artista devia ler. São dez itens nesse Manifesto. Uma das coisas que ela coloca é mais ou menos assim: “O artista não deve se preocupar com o exterior, porque quanto mais ele busca no interior algo dele, mas isto vai ser exteriorizado, mais isto vai ser universalizado”. O artista não tem que ter essa preocupação. Acho potente essa palavra dela. Tem várias coisas que ela coloca e tem algumas que eu acho muito psicanalíticas. Por exemplo, ela diz que um artista cria seus próprios símbolos. Os símbolos são a linguagem do artista. A linguagem deve então ser traduzida. Às vezes é difícil encontrar a chave. Tem uma artista mineira de quem eu gosto muito, é a Rivane Neueschwander. Gosto muito dos trabalhos dela. 

L.: Já refletimos um pouco sobre o trabalho da Rivane aqui na Seção Minas.
A.: São várias referências, né? Se pensamos em Andy Wahrol, como ele falava de arte, o que ele falava sobre arte, não é? Não tem jeito, isso retorna no trabalho da gente. Não tem uma referência direta, são várias. 

L.: Você está produzindo bastante ultimamente. Várias exposições mundo afora. Fala um pouquinho dessas exposições.
A.: Teve uma exposição em Paris, no Carrossel do Louvre. Eu levei esculturas. 

L.: Como se chega aí?
A.: Cheguei lá através de um curador finlandês. Uma pessoa que conhecia meu trabalho e tinha contato com ele. Alguém indicou. É sempre assim. 

L.: Alguém do Brasil que conhecia seu trabalho te indicou para esse curador. Era íntimo seu?
A.: Não. Ele viu meu trabalho e me indicou para essa exposição coletiva, junto com outros artistas. Uns artistas europeus. Eu mandei algumas obras, quatro ou cinco. Mas aí fui para Paris, para essa exposição, e eu não tinha dimensão do alcance disso, das obras. Teve um grupo lá de russos que abriu a exposição cantando, foi belíssimo. Teve um curador russo que gostou muito do meu trabalho e outras pessoas também. Na Europa, as pessoas têm mais essa coisa de comprar arte, nos Estados Unidos também. Isso é diferente no nosso país. Não só a parte cultural, a parte econômica, os patrocínios, tudo isso é muito mais dinâmico naqueles países. Então as pessoas gostaram e compraram algumas obras. Foi uma das primeiras exposições que eu participei e já teve esse retorno. Acho isto importante. 

L.: Quem compra essas obras? Particulares ou galeristas?
A.: O público compra. Depois teve mais duas exposições em Nova York. Eu participei com outro projeto, outras obras. Também achei muito bom. 

L.: Você conseguiu expor nas duas principais capitais do mundo da arte.
A.: Eu achava que era difícil trabalhar aqui em Belo Horizonte, mas depois vi que as coisas vão acontecendo aqui também. Eu trabalho com dois curadores aqui. Eles acompanham meu trabalho, nós sempre temos reuniões, discussão de arte com outros artistas. Estou achando isso interessante. Tanto é que, quando comecei a fazer um projeto para cá, tive que me concentrar. Não que eu tenha deixado a perspectiva de exposições lá fora, mas é porque toma muito tempo cada projeto. Demora um tempo para acontecer, você tem que discutir. É uma coisa interessante, não é só lá fora que as pessoas valorizam. Tá indo bem. 

L.: E o seu trabalho de psiquiatra continua? Só o consultório ou você trabalha em alguma instituição?
A.: Só o consultório. Já trabalhei muito em hospital. Por enquanto dá para conciliar os dois trabalhos. Às vezes aperta um pouco, mas tá indo. Cada um tem seu jeito de trabalhar, eu não tenho um padrão, uma fórmula. Eu penso assim: qual é o meu jeito de trabalhar? Vou separar metade do dia para trabalhar com arte? Não sei se funciona assim. Alguns artistas contemporâneos não têm ateliê. Isso é da contemporaneidade. Você está olhando um filme em casa, tá fazendo um trabalho, tá ajudando a esposa. Depende do modo que cada um funciona, né? Por enquanto, tá funcionado assim: sem muita regra. Gosto de deixar algo vir como em um assalto, ser tomado de surpresa. 

L.: Vamos falar da sua última exposição na Casa Fiat de Cultura. Os objetos são pequenos e você poderia mexer com eles em qualquer lugar, não é? Até no consultório. Ficar brincando de montar. Na arte contemporânea as obras podem ser muito grandes. Nessa sua exposição as peças são menorzinhas. Achei muito interessante.
A.: Já tinha algum tempo que eu estava querendo mexer com objetos. Antes eu trabalhava com escultura e desenho. Comecei a mexer com objetos de forma mais tímida. Peguei aqueles objetos contemporâneos (que são bonecos de um universo infantil) e comecei a fazer cortes, pequenas cirurgias. 

L.: Aí o médico veio à tona?
A.: Sim. Talvez por isso trabalhar com coisas menores mesmo. Agora eu estou fazendo outra série com objetos maiores. Acho que vamos levar esse novo trabalho para a galeria que chama Periscópio Arte Contemporânea aqui em BH. Nós vamos divulgar. É isso que eu estou produzindo ultimamente. 

L.: Uma coisa que me chamou muito a atenção na sua exposição foram os nomes das peças. Por exemplo, uma era A fuga do Egito, outra Esfinge.
A.: Esfinge é bem contemporânea. (Risos) 

 

 

L.: Achei incrível, porque o nome dá um estímulo para você pensar aquele objeto, porque é uma composição. Você corta um pedaço da boneca, você põe a cabeça de uma boneca no corpo de outro boneco, ou de outros bichinhos.
A.: Sim, às vezes a composição é mais simples; às vezes mexe mais, outras menos. Corta mais ou menos. 

L.: Umas são mais complexas, reunindo várias peças.
A.: Quando estou fazendo aqueles trabalhos, eu não penso em nada. Este é meu processo. Cada artista tem sua forma. Uma vez eu fui a uma leitura de portfolios aqui em Belo Horizonte. Tinha uns 10 artistas e três curadores: dois daqui e outro de Porto Alegre. Foi uma experiência muito boa. Cada um falou do seu processo. Um artista disse que todo dia ia para o ateliê às 8 horas da manhã e saía às 17 horas. Todo dia ele faz um pouco. Fiquei admirado, porque eu não consigo ser desse jeito. Comigo a coisa vem e aí eu passo dias, semanas produzindo. Tento pegar o máximo possível o que vem. E não me preocupo com intensidade, pois meu processo é exatamente o de tentar pegar aquilo que vem naquele instante, porque também aquilo vai. E depois eu vou pensar, colocar um nome no trabalho. Penso no nome da série, mas inicialmente não tenho preocupação nenhuma com o nome. Conversando com um crítico de arte, ele me falou que o nome é importante para a obra porque aumenta o alcance da obra, a potência da obra. Mas não é fácil. Para mim é um processo, nomear uma obra. A obra é que vai te pedir, não é você que fixa alguma coisa. O artista é só um instrumento. Com Esfinge, aconteceu algo interessante. Quando nós fomos fazer a expografia, pensar onde cada obra ia ficar, a equipe concluiu que ela devia ficar mais no alto, um pouco acima. Porque a Esfinge é isso mesmo, ela olha pra gente. As esfinges ficam num portal esperando quem vai passar. Eles captaram algo sem eu ter falado previamente qualquer coisa com eles.
Essa coisa do corte é curiosa. Na Esfinge só fiz um corte, pra mim já bastava, não precisava de mais nada na obra. As incisões têm que ser precisas. 

 

 

L.: As incisões... Parece a fala de um cirurgião.
A.: Sim, mas incisão de quê? O que você quer mostrar e o que você quer esconder? O que você quer destacar naquela obra? Estou te falando de coisas que conversei com os curadores. Para quem faz, não é fácil falar. Muitas vezes você só consegue falar depois que se distancia. O que você quer mostrar? É tudo íntimo. 

L.: Então essa elaboração é no après coup, no só depois, como dizemos na psicanálise. É como se a obra estivesse na dimensão do ato. Você vai conversando com os curadores, vai se apropriando mais simbolicamente do que você fez.
A.: Sim, vai distanciando. Eu não tenho tanta preocupação com a nomeação da obra. 

L.: Sim, mas esta especialmente, acho que ela convoca o espectador na dimensão de sua fantasia. A Esfinge é uma espécie de ser para o qual se fazem perguntas.
Este seu trabalho é pop, não é? São objetos da cultura de massa, da indústria cultural.
A.: Sim, tem uma desconstrução e uma nova construção desses objetos. 

L.: Tem um efeito surpreendente para o espectador, pelo menos para mim.
A.: Sim, são brinquedos que estão desvinculados da sua função e cria-se outra coisa. Isto está na linha do Duchamp. Mas sabe que, para mim, aqueles objetos que fiz são daquele jeito mesmo. Isso é engraçado, né? Estou devolvendo para a indústria cultural o que ela distorceu. (Risos) Foi um entrevistador que me disse isso, que eu estava trabalhando a indústria cultural, mas eu nunca tinha pensado nisso. O Outro que trouxe isso pra mim. 

L.: Foi lúdico fazer ou não? Você começou a rir? Porque pra mim despertou o riso, eu via algo assim como uma espécie de chiste através das imagens.
A.: Mas pra mim não. Muitas pessoas me falam desse tom irônico. Eu fico tão tomado com o fazer que não percebo isso. Tem algo do lúdico, é uma mistura, algo crítico, irônico. E tem coisa que a gente não consegue dizer. 

L.: Avilmar, agradeço a sua disponibilidade para conversar comigo, sobre seu trabalho, para a Derivas. Muito obrigada.


 

 

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