Bovarismo: Apresentação[1]


Silvia Helena Tendlarz

 

A partir do célebre romance de Flaubert, Madame Bovary, Jules de Gaultier, filósofo do início do século, criou a palavra bovarysme, que ele originalmente define como “o poder atribuído ao homem de se conceber como outro diferente do que ele é” e que, muito rapidamente, será incorporada na língua corrente para designar “a evasão no imaginário por insatisfação”. Mas o Bovarismo não se limita à falsa concepção que os indivíduos têm de si. Segundo Jules Gaultier, a total apreensão do real é aproximativa. O Bovarismo é, portanto, também “uma maneira de mostrar as coisas de um modo diferente do que elas são”.

No livro fundamental que ele escreve sobre esse tema, Le bovarysme (do qual reproduzimos um capítulo), e partindo da psicopatologia do Bovarismo (e suas formas moral, passional ou científica – que Lacan sublinha na sua tese, página 75, nota 70)[2], Gaultier desenvolve uma análise de sua ação sobre os indivíduos e as coletividades e conclui estendendo-a à humanidade. Gaultier encontra nos personagens flaubertianos a tara que ele supõe como essencial ao ser humano: “um enfraquecimento da personalidade” que, sob o efeito do entusiasmo, da admiração, do interesse ou de uma necessidade vital, os leva a assumir um caráter diferente do seu. Na medida em que essa fraqueza se junta com a impotência, esses personagens não conseguem se igualar ao modelo proposto pelos ideais que aparecem sob a ação do exemplo e da educação. Estabelecem-se, então, duas linhas distintas que, se aproximando e se distanciando, formam o ângulo que servirá de índice para o Bovarismo. Com efeito, é a distância entre as próprias possibilidades do indivíduo e a ação dos ideais que determinará o grau de Bovarismo atingido. Para retomar os termos de Gaultier: “ele mede o desvio que existe em cada indivíduo entre o imaginário e o real, entre o que ele é e o que ele acredita ser.”

O estudo de Jules de Gaultier tem o mérito de colocar em evidência o poder do ideal determinado pelo meio social. É por isso que Lacan toma emprestado esse termo para descrever a personalidade de Aimée antes do desencadeamento da psicose. O Bovarismo dá conta da maneira como ela se apresentava no mundo e construía a série de acontecimentos de sua história. Desse modo, na medida em que o Bovarismo equivale aos ideais da personalidade, esta permanece ligada ao meio social. Assim, via esse termo, Lacan acaba por determinar a tomada do Outro sobre o sujeito.

Por outro lado, esse uso tem o interesse de se opor às teorias constitucionalistas da época. Ainda que a teoria constitucionalista de Génil-Perrin (Les paranoïaques, Meloine, 1926) e de Lévy-Valensi (“Bovarysme et constitutions mentales”, Journal de Psychologie, 1930) tenha colocado em correspondência o Bovarismo e a constituição, Lacan se livra dessa equivalência para dar a esse termo um sentido novo. A existência de uma constituição paranoica implica que o aparecimento da psicose se produz em uma continuidade de traços existentes desde o início. Falando de Bovarismo, Lacan pode, ao contrário, indicar que o desencadeamento da psicose é um momento de ruptura, de descontinuidade, um “ponto fecundo” (p. 107)[3], em que a emergência do delírio paranoico permite a distinção do Bovarismo e da erotomania.

Em sua tese, Lacan considera que o Bovarismo é uma das funções essenciais da personalidade (p. 32 e 75)[4]. Ele a leva em consideração na definição da personalidade segundo a experiência comum, em que a distância entre a síntese e a intencionalidade dos fenômenos traduz o índice bovariano estabelecido por Jules de Gaultier (p. 32)[5] em função da ação dos ideais – que reconhecemos igualmente na definição objetiva da personalidade em relação à “concepção de si mesmo” (p. 42)[6].

Lacan reconhece os traços bovarianos de Aimée ao longo de toda a sua história. Estudando as tendências afetivas que os escritos de Aimée revelam, ele afirma que seus textos falseiam uma sensibilidade essencialmente bovariana, se “referindo diretamente com essa palavra ao tipo da heroína de Flaubert” (p. 180)[7]. Essa “sonhadora idílica” – como a chama Lacan (p. 198, nota 5)[8] – guarda em suas buscas sentimentais um grau de Bovarismo “no qual os sonhos ambiciosos desempenham seu papel” (p. 228)[9] de um lado, e o “entusiasmo” bovariano de outro.

Em “Propos sur la causalité psychique”, se referindo ao Bovarismo, ele insiste novamente sobre a importante ação dos “ideais bovarianos”, assinalando que isso não tinha nada de desprezível (Écrits, p. 170). No Seminário 3, encontramos de novo uma menção ao Bovarismo, desta vez, para fazer equivaler o sistema filosófico construído por Jules de Gaultier em torno do Bovarismo com o sistema delirante de Schreber (p. 66-67)[10]. Depois, o termo desaparece definitivamente da obra de Lacan, integrado ao conceito de ideal.

 

Texto extraído de «Sept reférences introuvables de la thèse de psychiatrie de Jacques Lacan», Les documents de la bibliothèque de l‘École de la Cause Freudienne, n. 1, Paris, ECF, 1993.

Tradução: Sérgio Laia

 


 

[1] Trata-se da apresentação do texto de J. de Gaultier, Le Bovarysme, Paris, Mercure de France, 1902.

[2] N.T. - Na publicação em português da tese de Lacan, essa referência pode ser encontrada em: Lacan J., Da psicose paranoica e suas relações com a personalidade (1932), Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1987, p. 66 e 68, nota 70.

[3] N.T. - Ibid., p. 100.

[4] N.T. - Ibid., p. 20 e 67.

[5] N.T. - Ibid., p. 20.

[6] N.T. - Ibid., p. 31.

[7] N.T. - Ibid., p. 178.

[8] N.T. - Ibid., p. 197.

[9] N.T. - Ibid., p. 227.

[10] Para essa passagem, ver a edição brasileira: Lacan J., O Seminário - Livro 3: As psicoses, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985, p. 67.

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