Vizinhança: um comum não recíproco

Luís Tudanca

 

Meu ponto de partida é o livro que publiquei em Buenos Aires, em 2012, pela Grama: Una política del síntoma. Trata-se da política pensada a partir da Psicanálise e, mais estritamente, de uma política do sintoma. Nessa direção, parece-me que há uma ideia de Jacques Lacan da qual não se deve desviar, que é sua definição de política em relação à Psicanálise. Lacan diz textualmente: "o sintoma institui a ordem em que se revela nossa política; implica, por outra parte, que tudo o que se articula por essa ordem, quer dizer, a ordem do sintoma, seja passível de interpretação". Assim, o que Lacan indica ‒ e do que nunca se afastou ‒ e que faz com que Jacques-Alain Miller retome todas as discussões sobre a política e a Psicanálise, nesse ponto, gira ao redor de três termos: política, sintoma e interpretação. Isso quer dizer que, em Psicanálise, a política é a política do sintoma, e, com isso, o outro passo agregado por Lacan é aquele segundo o qual, se a política da Psicanálise é a política do sintoma, a única ferramenta de que dispomos para essa política é a interpretação.

Isso abre duas perspectivas: uma é a perspectiva para dentro, ou seja, para a Psicanálise pura; outra é a perspectiva para fora, quando dizemos ir da Psicanálise ao social, ir da Psicanálise à cidade. Para dentro, a política da Psicanálise é a política do sintoma, e isso nos leva ao passe. Por quê? Porque o dispositivo do passe investiga o sintoma, e essa é a política da Psicanálise pura. Por outro lado, no dispositivo do passe, tenta-se verificar o que se passou com a interpretação em uma análise, se essa interpretação conseguiu fazer algo ou não com o sintoma do sujeito, e se houve modificação a tal ponto que se possa falar de sinthome no final de análise, um novo enodamento: isso é para dentro. Para fora, em relação ao social, ocorre o mesmo; porém, aí surgem nossos problemas. Porque a política para fora teria que estar restrita unicamente a localizar o sintoma, o sintoma no social, a cada vez; não há outra perspectiva senão essa. De modo que o trabalho em instituições ‒ o trabalho no Estado, inclusive ‒, se alguém o aborda como psicanalista, tem que abordá-lo unicamente na perspectiva do sintoma, e aí sim se abre a perspectiva de interpretar esse sintoma que aparece no social, na sociedade concreta na qual vivemos. Qual seria, no entanto, a especificidade dessa interpretação? Porque, se o abordamos numa perspectiva geral, poderíamos dizer que todos interpretam o sintoma. O que quer dizer todos? Os filósofos, os sociólogos, os cientistas políticos, os literatos… Na mídia, há um excesso de interpretação do sintoma. O problema é que todas essas interpretações apontam para o sentido. A questão é: o que isso quer dizer?

Se alguém vai, como psicanalista, a essas mesas multidisciplinares montadas no YouTube ou na TV, deveria perguntar-se se pode dizer algo diferente. O "algo diferente" teria que estar fora dos sentidos que as demais disciplinas vão apresentar. É nisso que se torna tão difícil a intervenção de um psicanalista na mídia. Porque ele sempre deveria apontar o que chamamos, em Psicanálise, de o fora de sentido. É disso que se trata na interpretação, de ler o sintoma. Ler o sintoma é interpretá-lo, interpretá-lo é, se não ir diretamente ao fora do sentido, pelo menos tratar de podar os outros sentidos que estão em jogo em relação a esse sintoma. Essa me parece ser a intervenção mínima.

O outro ponto que Lacan assinala, e que sempre nos traz dificuldades, é sustentar nosso discurso num meio-dizer. Há um exemplo que Lacan dá, em no seminário 17, O avesso da Psicanálise, de 1969-1970, e que sempre gerou discussões, inclusive entre nós, os psicanalistas: quando ele diz "evitando a denúncia". Ele disse, efetivamente, “evitando denunciar, porque denunciar reforça o denunciado, salvo que o faça com um meio-dizer”. Então, não é exatamente não denunciar, mas denunciar de outra maneira, uma maneira difícil, uma maneira para a qual é preciso preparar-se, porque a que nos ocorre é outra, a do filósofo, do sociólogo... Não nos ocorre a denúncia como um meio-dizer, sem dizer tudo, apontando o vazio, aos poucos, diminuindo o sentido, podando-o, rasurando-o...

Como isso se encarna na ação política concreta? Ação, sim, porque a política, em geral, é ação. Basta verificar quantos filósofos políticos, pelo positivo ou negativo, indicam que a política é ação. Assim, o importante na política da Psicanálise é pensar qual é a ação política, a cada vez, sem esquecer a perspectiva de que a ação política deve estar dirigida a ler um sintoma e interpretá-lo. Não é pouco ler um sintoma e interpretá-lo. Isso pode interferir diretamente no real de uma situação, não como algo localizado fora da política concreta. Isso pode fazer mudar as políticas.

A questão é: como mudar as políticas sem chamar muita atenção? Aí se coloca a categoria do impolítico, como o que designa uma política que busca intervir em relação ao poder, mas sob a forma de uma “ação não atuante”, contrária à despolitização contemporânea. Isso porque a ação política permite uma dupla leitura: a da ação política, pensada em direção a conseguir uma eficácia direta, e a da ação política pensada como o impolítico, possibilitando a leitura da ação política sustentada em uma eficácia indireta. Podemos falar do impolítico como suplemento, como um dos nomes do que, em Psicanálise, se chama de não-todo. O impolítico é uma maneira de pensar o político sustentado no não-todo, sustentado na lógica feminina, que é, por outro lado, a lógica com base na qual Lacan pensa a posição do analista. Há, portanto, a ação política propriamente dita, que é a que remete à eficácia direta, e há a ação sustentada no impolítico, que é a que visa uma eficácia indireta, a ser atingida de lado. Cada um tem que escolher que movimento fazer, a cada vez, o que elimina por completo o plano da sugestão e o efeito de massa.

O livro Una política del síntoma deve um reconhecimento a outro livro, que não é de um psicanalista, mas que me permitiu entender alguns pontos obscuros em relação à teoria psicanalítica. Trata-se do livro É preciso defender a sociedade, de Michel Foucault, publicado pela primeira vez em 1976. Ali, como consequência do desenvolvimento que faz em seu curso, Foucault define biopolítica de um modo que nos interessa como psicanalistas. Sua ideia se sustenta na análise de uma fórmula, “fazer morrer ou deixar viver”, referida ao direito, na sociedade antiga, do amo em relação ao escravo. No capitalismo contemporâneo, essa fórmula sofre uma transformação, sendo substituída pelo poder de “fazer viver e deixar morrer”. Há um deslocamento aí do termo “direito” ao termo “poder”. Estamos na essência de todo o desenvolvimento de Foucault a respeito do que seja o tema central de sua obra, que é o poder e como um sujeito sofre em relação ao poder. Há também a inversão dos termos da fórmula, de "fazer morrer" para "fazer viver", de “deixar viver" para "deixar morrer". Inversão de vida e morte. O fundamental, e o que nos permitiria interpretar a inversão da fórmula, é que começam a nos dizer como viver.

No mesmo curso de Foucault, encontramos a ideia de que o mundo está basicamente dividido em duas raças, dois bandos, dois grupos, e Foucault pensa que isso constitui a essência mesma da nossa sociedade. Isso é essencial na sociedade contemporânea; não ocorria tanto na sociedade antiga. Inclusive, quando se produziam guerras, nunca havia exatamente essa questão de dois bandos. Isso é o que constitui um tipo de racismo contemporâneo, que eu chamo ‒ como na oração católica do Pai Nosso ‒ de "o racismo nosso de cada dia", o pequeno racismo de todos os dias: não o que termina no nazismo, por exemplo, e que pode resultar numa guerra, mas aquele de cada dia, que é o que cada analisante leva à análise e sobre o qual devemos tentar dizer algo.

Também podemos falar de outro racismo, o racismo dos "discursos em ação", situado por Lacan em “O aturdito”, e retomado por Miller, em Extimidade, como "ódio do gozo do Outro". Na condição de psicanalista, tenho procurado elucidar o ponto do pequeno racismo, que é esse do qual ninguém escapa, incluídos nós, os psicanalistas. De forma que o interesse é político, mas também clínico, porque é o que se escuta no discurso dos analisantes, em um mundo no qual nos é imposto ‒ por um poder cada vez mais desfocalizado ‒ um modo de gozar "certo", enquanto outros devem ser erradicados da sociedade.

Por isso, é um milagre que, nesse mundo, tenham ocorrido a Lacan as fórmulas da sexuação, que eliminam a lógica de "dois bandos": há dois gozos, não dois bandos (ou gêneros), e cada um pode se localizar de acordo com o gozo que tem, indo de um lado ao outro da tábua da sexuação. Esta demonstra que não há qualquer razão, proporção ou complementaridade possível entre os sexos, ou que, no limite, todo objeto sexual se configura como inadequado para alcançar um estado de completude de gozo. As fórmulas da sexuação são uma resposta ao problema segregacionista dos dois bandos. Obviamente, não imagino um psicanalista indo à televisão para explicar, numa mesa com filósofos e sociólogos, que o que dá a possibilidade de solucionar o problema das raças ou dos bandos são as fórmulas da sexuação. É impossível. Por isso, nossa intervenção nunca deve ser da ordem do todo, mas do meio-dizer, tomando as fórmulas da sexuação ‒ fundamentais para explicar o mundo contemporâneo ‒ como orientadoras da política.

Chego aqui ao que chamo em meu livro de "a época da vizinhança". Vizinhança é um termo que Lacan, ao optar pela topologia em detrimento do espaço euclidiano, usa no seminário 21, Les non-dupes errent, de 1974, que corresponde à lógica do não-todo, inclusive como oposição a outra lógica, que é a lógica do limite, da demarcação, da segregação, de um bando e outro bando, de disputas de territórios que geram guerras. A topologia trata do espaço qualitativo, das relações de vizinhança, de conexidade e de continuidade, nas quais as diferenças são qualitativas, isto é, marcadas pelas perdas de continuidade, por alterações nas relações de vizinhança. Por meio da concepção de vizinhança, na topologia lacaniana, pode-se localizar distintas e móveis modalidades de amarração entre as instâncias do Real, do Simbólico e do Imaginário, para conceber modalizações específicas de subjetivação para os seres falantes, contemplando sua diversidade, em uma geometria elástica e maleável, de tal modo que as mudanças na forma conservam as propriedades de vizinhança. A lógica da vizinhança é muito difícil de sustentar; no entanto, pareceria que há elementos que pouco a pouco se vão instalando na sociedade contemporânea, para além do sintoma, dos bandos e grupos. E, ao cair nisso, deve-se interpretar o sintoma e encontrar soluções parciais para ele: como ele se deslocou e apareceu em outro lugar? Como se deslocou e voltou a aparecer no outro lado? Como se pode resolvê-lo a cada vez?

O problema é a convivência de lógicas, e qual vai tendo maior peso em cada situação. Essa é a questão, sem esquecer um aspecto mais estrutural que é a própria lógica do capital, com sua homogeneização de modos de gozo, com a ditadura do mais-gozar, na qual o que triunfa é o autismo do Um, que não se dirige ao Outro de nenhuma maneira. Talvez caiba aos psicanalistas dar uma "injeção de vizinhança" no capitalismo. Isso é o que temos que começar a pensar. 


     
Texto estabelecido por Ernesto Anzalone a partir da intervenção realizada por Luís Tudanca em 18 de maio de 2012 na sede do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, em atividade do Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise e Direito, coordenada por Ludmilla Féres Faria. Traduzido por Maria das Graças Sena e editado por Musso Greco para publicação na DERIVAS ANALÍTICAS.

     

 

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