Sobreviver junto

Eliane Robert de Moraes

 

A tópica do viver junto sempre supõe uma localização. Ao "como", explorado com argúcia por Roland Barthes em um dos seus cursos ‒ Como viver junto: simulações romanescas de alguns espaços cotidianos, Cursos e Seminários no Collège de France, 1976-1977 ‒, vem somar-se imediatamente um "onde". Não por acaso, as anotações de aula do escritor francês descrevem alguma modalidade da complexa arquitetura da convivência humana privilegiando referências espaciais, sejam sanatórios, mosteiros, colônias, hotéis ou simplesmente prosaicas casas de família. Viver junto implica uma demarcação, um lugar, um endereço. Mesmo que seja flutuante.

A experiência de convívio em alto-mar está entre os mais ricos e antigos objetos de fabulação literária. Tome-se como exemplo a frota que carrega os exércitos de Ulisses no início de sua epopeia marítima, descrita por Homero na Odisseia, ou então a pequena embarcação de sua derradeira viagem, ao lado de poucos companheiros, narrada por Dante na Divina Comédia. Tome-se também o misterioso bote que vagueia com os sobreviventes de O relato de Arthur Gordon Pym, de Edgar Allan Poe, ou ainda o navio baleeiro Pequod, no qual se confina a tripulação desesperada de Moby Dick, de Melville. Nessas e em tantas outras ficções, a fantasia do barco interroga a condição humana, deixando transparecer uma forte inquietação sobre as vicissitudes da vida em comum.

Se essa é uma fabulação recorrente na literatura, isso talvez se deva à ambiguidade que recobre o imaginário náutico, o que predispõe a paisagem sensível para especulações mais densas e sutis, a contemplar a complexidade do tema. Aliás, foi exatamente esse caráter ambíguo que levou Michel Foucault a tomar o barco como figura exemplar do que chamou, em De outros espaços, em 1967, de heterotopia: lugares que, mesmo sendo localizáveis, se delineiam como um mundo à parte, constituindo uma espécie de contestação ao mesmo tempo mítica e real do espaço em que vivemos. Na qualidade de posicionamentos fora da realidade, cada heterotopia teria uma função no tecido social, por vezes abrigando o desvio ‒ como acontece com as prisões e os bordéis ‒ e, por outras, projetando ideais de uma coletividade, como é o caso das bibliotecas ou dos museus.

Ora, como observa o autor, o barco é um lugar sem lugar. Sendo um ponto espacial localizável, mas lançado ao infinito do mar, ele configura um "pedaço de espaço flutuante", que vive por si mesmo e segue existindo às suas próprias expensas. Isoladas do mundo, mas desempenhando uma função imprescindível à trama coletiva, as embarcações fornecem a imagem mais bem-acabada da heterotopia. Por isso mesmo, desde o século XVI até os dias de hoje, elas funcionam não apenas como importantes instrumentos do progresso econômico das sociedades, mas igualmente como as suas mais importantes reservas de imaginação. Nas civilizações sem navios, conclui Foucault, "os sonhos se esgotam, a espionagem ali substitui a aventura, e a polícia, os corsários".

Ao notável trabalho de fabulação que o autor de As palavras e as coisas reconhece na origem do motivo náutico, convém acrescentar ainda duas outras funções fundamentais que as embarcações exercem na vida humana: a de meio de transporte e de moradia. Qualidade dúbia que faz delas construções paradoxais ‒ agravada pelo fato de serem sustentadas na incerteza das águas ‒, dando corpo a uma contradição que habita o fundo de cada um de nós: o desejo simultâneo de movimento e de permanência. Ou, se quisermos, da viagem e da residência. Cumpre, portanto, interrogar mais de perto tais funções.

Como habitat, o barco configura uma interioridade separada do mundo, uma espécie de duplo da casa, um refúgio. Barthes se vale dessa chave de leitura quando analisa A ilha misteriosa, de Jules Verne, para afirmar que o Nautilus representa a "alegria do enclausuramento perfeito", identificando-o a uma caverna inviolável. A clausura marítima garantiria, segundo tal concepção, ainda mais segurança do que os interiores assentados no solo, uma vez que as embarcações não fazem fronteiras senão com a água. Esboça-se aí, completa o autor, em Mitologias, publicado em 1957, uma mitologia do espaço totalmente finito: "amar os navios é, antes de mais nada, amar uma casa superlativa, porque fechada sem remissão". O barco nesse caso é uma ilha.

A essa cosmogonia fechada em si mesma vem se opor a ideia do navio como meio de transporte, implicando sucessivos deslocamentos de um lugar a outro. Símbolo da partida, da ruptura com as origens e, consequentemente, da aventura, a nau assim concebida deixa de ser o abrigo familiar para anunciar os horizontes desconhecidos que se projetam no além-mar. À segurança da terra firma vem sobrepor-se o fascínio da terra incógnita. Daí que Barthes contraponha, ao aconchegante Nautilus de Verne, o desatinado Bateau ivre de Rimbaud, que, "liberto de sua concavidade, pode fazer passar o homem de uma psicanálise da caverna para uma verdadeira poética da exploração".

Uma ilha em movimento ‒ eis então uma possível imagem para condensar a ambiguidade desse "pedaço de espaço flutuante", uma vez que ela contempla tanto o isolamento da casa, retraída para dentro de suas bordas, quanto a errância da navegação que, voltada para fora, excede os próprios limites. E não será justamente a imbricação dessas duas fantasias distintas que seduz nosso imaginário, produzindo fabulações extraordinárias, tal como a história ‒ registrada na Gesta Abbatum Trudonensium, de 1133 ‒ de certo lavrador que construiu um barco com rodas para percorrer todo o território do seu país, sendo recebido com júbilo e festas por onde passava?

A vida a bordo, porém, nem sempre reserva glórias aos tripulantes. Ao triunfo do lavrador medieval que navega na superfície terrestre, opõe-se com frequência o malogro do náufrago em alto-mar, figura recorrente na mitologia marítima. Vale lembrar que até mesmo a ficção do sobrevivente solitário, obrigado a passar o resto de seus dias em uma ilha deserta, faz referência direta à vida em coletividade, no mais das vezes em ácidas críticas, reiterando a hipótese de que o imaginário do barco supõe quase sempre uma elaboração sobre o viver junto.

Na fronteira equívoca que separa a experiência da fabulação, os doze relatos da história trágico-marítima, escritos entre 1552 e 1602, representam um dos testemunhos mais candentes dessa reflexão. Compiladas no século XVIII por Bernardo Gomes de Brito, as narrativas originais foram redigidas por sobreviventes dos terríveis naufrágios sofridos por navios portugueses, quase todos ocorridos nas rotas da chamada Carreira das Índias. Em certo sentido, essas histórias oferecem ao leitor o reverso das glórias cantadas por Camões em Os lusíadas, embora compartilhem o foco da viagem atribulada por perigos de toda ordem ‒ oriundos da natureza, dos homens ou dos deuses ‒, compondo igualmente uma poética da condição humana.

O que emerge dessa leitura, como sugerem seus comentadores, é a imagem de um pequeno mundo flutuante que, na qualidade de miniatura do mundo existente e terra firme, era povoado por homens livres e escravos, fidalgos e plebeus, damas da corte, aias e crianças. Segundo as descrições de Angélica Madeira, em Livros dos naufrágios: ensaio sobre a história trágico-marítima, de 2005, havia marinheiros que gemiam no convés, abatidos pela doença, e outros que cantavam ao cair do sol, disputando a atenção dos tripulantes com os capelães, que orquestravam intermináveis novenas a Nossa Senhora. Nesse microcosmo, as hierarquias se preservavam até no momento da catástrofe, já que, durante o naufrágio, os primeiros bens a serem lançados ao mar eram sempre de propriedade dos marujos, seguidos dos pertences dos oficiais, dos nobres, do clero e da Coroa, nessa ordem.

Mas como acontece com todas as miniaturas, essas também fazem mais do que simplesmente acentuar os traços originais de seu referente. As particularidades da situação em que se encontravam esses grupos ‒ formados, dependendo da nau, de 150 a 450 pessoas ‒ levavam à criação de dinâmicas próprias, muitas vezes alheias à vida em sociedade. Não fosse por outra razão, seria pelo fato de que o problema capital desses viajantes excedia em muito o viver junto, para revelar-se na urgência do como sobreviver junto.

De fato, a situação de exceção deflagrada pelo sinistro acontecimento, produzindo a desorientação e o pânico coletivos, deixa entrever uma forma singular de experiência comunitária, cujo fundamento principal parece ser a precariedade. A crescente tensão a que a tripulação estava exposta resultava com frequência em desconfiança e divergências, por vezes desembocando em caóticos motins. Tal era a propensão à discórdia que, numa ironia trágica, Antônio Manuel de Andrade, em História trágico-marítima: identidade e condição humana, de 2001, sublinha o triste desenlace do naufrágio como o único consenso possível a bordo: "porque nisso eram todos conforme, que em a Nau tocando, e fazendo-se em pedaços, tudo seria um".

Assim também, como que radicalizando as ambiguidades constitutivas do tema náutico, as reações ao desastre se alternavam entre extremos de egoísmo e de solidariedade, expressos nos motivos recorrentes da fuga oportunista ou do esforço coletivo no combate à inundação do navio. Fosse num ou noutro polo, a tônica do convívio era dada por comportamentos extremados ‒ muitas vezes variando da melancolia exacerbada à resignação fatalista, e desta ao abandono místico ‒ que, não raro, levavam ao isolamento dos sujeitos. Mas o confronto sistemático com a morte também precipitava impulsos gregários, manifestos em prantos coletivos e outras expressões conjuntas de desespero, a evocar a compassio catártica.

No limite de toda sociabilidade, a vida a bordo tornava-se mais e mais caótica, conforme ia diminuindo a esperança de salvamento. É digno de nota nesse sentido que os poucos resquícios de sociabilidade ainda presentes na precária comunidade dos náufragos fossem ameaçados por duas práticas radicais: a antropofagia e o suicídio coletivo. Definidas em vários relatos como "tentações diabólicas" ‒ uma, por levar à perda do corpo, e outra, à perda da alma ‒, essas práticas efetivamente demarcam, nas Histórias trágico-marítimas, o limite da convivência humana. Talvez por isso mesmo elas apareçam, nesses relatos, sob a forma de improváveis rituais ou como delirantes hipóteses da imaginação.

Fantasmas a assombrar as derradeiras possibilidades da vida em comum, a antropofagia e o suicídio coletivo revelam o lado mais noturno da heterotopia náutica, lembrando que as reservas da imaginação também guardam sombrios pesadelos. Com efeito, aos venturosos barcos que seguem seu destino rumo a ilhas do tesouro, a literatura não cessa de opor naus errantes, navios-fantasmas e botes perdidos na imensidão do mar. Em todos eles, a questão da sobrevivência parece se sobrepor à mera convivência, chamando a atenção para a inevitável precariedade da existência humana. Porque nós ‒ desde sempre, e sobretudo hoje ‒ talvez não sejamos realmente muito mais que isso: náufragos em terra firme. 

 

 

  

 

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Catálogo 27a. Bienal de São Paulo . 2006
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