O imponderável em Georges Perec

Jacques Fux

 

Georges Perec nasceu em 1936, na cidade de Paris, onde viveu a maior parte de sua vida, e morreu em Ivry, 46 anos depois. Seu pai lutou na Segunda Guerra Mundial e foi morto em 1940; sua mãe morreu em Auschwitz. Perec, órfão aos seis anos, foi criado por parentes próximos. Sua obra tem início em 1965, com o romance As coisas, seguido por Quel petit vélo à guidon chromé au fond de la cour, Um homem que dorme e La disparition – este último já escrito após sua entrada no OULIPO (Ouvroir de Littérature Potentielle), grupo dedicado a aplicar princípios matemáticos à literatura. Rica e enigmática, a obra de Perec é repleta de restrições matemáticas e jogos, tendo o objetivo de brincar com o “controle” do imponderável.

Por ter perdido os pais e ter sido privado do seu convívio e de suas memórias em função do que chamou de uma “contingência” (Auschwitz), Perec concebeu um projeto literário em que pudesse controlar toda a estrutura e a recepção de sua obra. Em seu famoso livro lipogramático, La disparition, Perec se priva da letra e – a letra mais frequente do alfabeto francês –, para mostrar estruturalmente a falta das pessoas mais importantes em sua vida, père e mère, como transcreve Bernard Magné, em seu livro Georges Perec, de 1999: 

Eu escrevo […] porque eu fui um entre outros. Eu escrevo sem e, eu escrevo sem eles, e eles estão inseparavelmente ligados, ausentes/presentes, eles presentes no livro como na letra tabu sempre aqui em filigrana, jamais escrito e sempre convocado pela perífrase, metáfora, comparação ou metonímia. Breve, o lipograma, ou como dizer (como se calar?) o indizível. 

Além de trabalhar com essa restrição estrutural, Perec também discute os limites do trauma e de sua transmissão. Afinal, como é possível traduzir um livro como La disparition? Como é possível dizer o indizível de uma vida usurpada da memória e do carinho dos pais simplesmente por ter nascido judeu? Como falar de Auschwitz?  

Assim, sempre acompanhado dessa ideia de controle, Perec cria regras e jogos, por meio de suas contraintes (do francês: restrições) matemáticas, que funcionam como um objeto de desejo velado que tenta governar o mundo contingente. A lógica, em Perec, busca por explicações, por belezas recalcadas, por profundidades quase inacessíveis. Algo que repousava no coração da criança traumatizada pela perda prematura de seus pais. Mas esse jogo de vida e literário, diferentemente de jogos como o xadrez, algumas vezes sai do controle: apesar de devidamente estruturado, explicado e com regras bem estabelecidas, o escritor não tem controle total sobre a recepção de seu trabalho. É assim, por exemplo, o projeto de Bartlhebooth, protagonista do seu A vida modo de usar: mesmo seguindo regras rígidas, no fim, algo foge ao seu controle, talvez o próprio imponderável modo de usar da vida? No preâmbulo desse livro, Perec brinca justamente com essas questões ao explicar o plano de um confeccionador de puzzles, segundo o qual toda jogada deveria ser pensada anteriormente e em cuja mente todas as possibilidades e potencialidades têm que ser previstas: 

De início, a arte do puzzle parece uma arte menor, mínima, contida inteiramente nos rudimentos da Gestalttheorie: o objeto visado — seja um ato perceptivo, seja uma aprendizagem, seja um sistema fisiológico, seja, no caso presente, um quebra-cabeça de peças de madeira — não é uma soma de elementos que teríamos inicialmente de isolar e analisar, mas um conjunto, ou seja, uma forma, uma estrutura; o elemento não preexiste ao conjunto, não é nem mais imediato nem mais antigo; não são os elementos que determinam o conjunto, mas o conjunto que determina os elementos; o conhecimento do todo e de suas leis, do conjunto e de sua estrutura, não é passível de ser deduzido do conhecimento separado das partes que o compõem; isso quer dizer que se pode observar uma peça de puzzle durante três dias e achar que se sabe tudo sobre sua configuração e cor, sem que com isso se tenha avançado um passo sequer; a única coisa que conta é a possibilidade de relacionar essa peça a outras peças, e, por esse prisma, há algo de comum entre a arte do puzzle e a arte do go: só quando reunidas as peças assumirão um caráter legível, adquirirão sentido; considerada isoladamente, a peça de um puzzle não quer dizer nada; não passa de pergunta impossível, desafio opaco; mas basta que se consiga conectar uma delas às suas vizinhas, ao cabo de alguns minutos de tentativas e fracassos, ou numa fração de segundo prodigiosamente inspirada, para que a peça desapareça, deixe de existir enquanto tal; a imensa dificuldade que precedeu essa aproximação, e que a palavra puzzle — enigma — designa tão bem em inglês, não apenas perde sua razão de ser mas até mesmo parece jamais tê-la tido, tanto que se tornou evidente: as duas peças miraculosamente reunidas formam uma única, por sua vez fonte de erro, de hesitação, de desânimo e de expectativa. [...]

Podemos deduzir daí algo que é, sem dúvida, a verdade última do puzzle: apesar das aparências, não se trata de um jogo solitário — todo gesto que faz o armador de puzzles, o construtor já o fez antes dele; toda peça que toma e retoma, examina, acaricia, toda combinação que tenta e volta a tentar, toda hesitação, toda intuição, toda esperança, todo esmorecimento foram decididos, calculados, estudados pelo outro. 

Perec está nos falando sobre essa tentativa de controlar o imponderável? De tentar compreender o fracasso utópico da vida? De tentar aceitar a literatura-vida como um hipertexto já concebido anteriormente?

No dia 26 de outubro de 1976, morreu Raymond Queneau. Nesse mesmo dia, Georges Perec começou a escrever A vida modo de usar, dedicado a esse seu grande amigo. De imensa complexidade e construído sob contraintes, o livro trata de histórias inter-relacionadas de habitantes de um mesmo prédio situado à 11 Rue Simon-Crubellier. Assim Claude Burgelin, em seu livro Georges Perec, de 1990, descreve A vida modo de usar

Construir a torre de Babel, escrever um romance que contenha todos os tipos de romances; colocar em cena dezenas de vidas simultaneamente; evocar modos de usar da existência tão diversa quanto possível; deixar seguir múltiplos tempos a partir desse espaço fechado; obrigar a evocação de milhares de objetos, emblemas, imagens e dar vida a esse propósito; juntar o prazer da infância (jogos, encaixes, listas, quebra-cabeças, livros de aventuras, trocadilhos, adivinhas, cadeias ao infinito) e combinatórias mais sofisticadas; abolir, subverter, ultrapassar fronteiras entre texto e imagem, narrativa e ícones, transformar a literatura em uma cópia miniaturizada do mundo e da literatura; aprender a olhar e ler errando sem parar; metamorfosear o enciclopedismo em material romanesco; estruturar claramente um romance labiríntico, tornar móvel um romance-imóvel, dirigir um romance-jogo de xadrez (em todos os sentidos da palavra). Estas são algumas das proezas do acrobata Perec. 

Apesar de centenas de contraintes ‒ em cada um dos noventa e nove capítulos desse livro, Perec se obriga a usar quarenta e duas regras distintas e lógicas ‒ como as permutações, os palíndromos, lipogramas e citações, algo fundamental à literatura e à vida lhe escapa. O enredo gira em torno de três personagens principais: o excêntrico e rico Percy Bartlhebooth, o artista Gaspard Winckler e o pintor Serge Valène. 

Durante dez anos, de 1925 a 1935, Bartlhebooth se iniciaria na arte da aquarela. Durante vinte anos, de 1935 a 1955, percorreria o mundo, pintando, à razão de uma aquarela a cada quinze dias, quinhentas marinhas do mesmo tamanho, as quais representariam portos marítimos. Ao terminar cada uma dessas marinhas, ela seria enviada a um artista especializado (Gaspard Winckler), que a colaria sobre finíssima placa de madeira e a recortaria num puzzle de setecentas e cinquenta peças. Durante vinte anos, de 1955 a 1975, Bartlhebooth, de volta à França, reconstituiria, na mesma ordem, os puzzles assim preparados, à razão, novamente, de um a cada quinze dias. À medida que os puzzles fossem reorganizados, as marinhas seriam “retexturadas”, de modo que se pudesse descolá-las de seus suportes, transportá-las para os próprios locais onde – vinte anos antes – haviam sido pintadas e ali mergulhá-las numa solução detergente da qual saísse apenas uma folha de papel Whatman, intacta e virgem. 

O nome dado a uma das principais personagens do livro, Bartlhebooth, alude a duas outras personagens literárias: Bartleby, de Herman Melville, o homem da imobilidade que não deseja nada, que prefere não fazer; e Barnabooth, de Valèry Larbaud, o homem da viagem, que tem desejos errantes. Esse é o paradoxo vivido por Bartlhebooth, homem de tamanha riqueza e de indiferença face ao mundo, que se propõe um projeto de perfeição circular, de muito viajar, muito registrar e destruir todos os traços dessa grande e inútil jornada. Nas palavras de Perec, em Entretiens et conférences II, do período de 1979 a 1981: 

Então Bartlhebooth é Bartleby porque ele é completamente desesperado, que está além do desespero. Ele é também Barnabooth, o bilionário, que quer organizar sua vida como uma obra de arte. A conjunção dos dois compõe uma personagem que utilizaria toda sua vida, toda sua energia e toda sua fortuna para alcançar um resultado nulo. O projeto de Bartllebooth: aprender a pintar aquarelas, pintar as aquarelas, tê-las cortadas em puzzles por um artesão e, enfim, reconstruí-las. É perfeitamente louco e inútil. E é para mim a mesma imagem de escrever. Um esforço gigantesco por uma coisa que, uma vez terminado o livro, se evade completamente. 

Mas o projeto de controle de Perec e de seu protagonista fracassa assim como a vida e as suas expectativas: 

É o dia 23 de junho de 1975 e vão dar oito horas da noite. Sentado diante do puzzle, Bartlhebooth acaba de morrer. Sobre a toalha da mesa, nalgum lugar do céu crepuscular do quadringentésimo trigésimo nono puzzle, o vazio negro da única peça ainda não encaixada desenha a silhueta quase perfeita de um X. Mas a peça que o morto segura entre os dedos, já de há muito prevista em sua própria ironia, tem a forma de um W

Em 1980, Georges Perec escreveu um pequeno prefácio para um livro de Pierre Marly chamado Les lunettes, que pode ser encontrado, também, em seu livro Penser/classer, sob o título “Considérations sur Les lunettes”, que termina assim: 

Há um certo número de coisas que sei que a partir de agora não farei mais. É infinitamente pouco provável que eu vá um dia à lua, que eu viaje em um submarino ou que aprenda chinês, saxofone ou ergódico, mesmo que tenha muita vontade às vezes. É fortemente pouco provável que me torne um oficial da ativa, estivador em Vale Paraíso, procurador de um grande banco, bilheteiro, explorador agrícola ou presidente da República. Entretanto, é quase certo que um dia, como um terço dos franceses, eu usarei óculos. Meu músculo ciliar, que comanda as modificações da curvatura do cristalino, perderá pouco a pouco sua elasticidade e meu olho, a partir de então, não será mais capaz de acomodação. Esse processo se produz, digamos, em todos os adultos a partir de 45 anos, e eu tenho 44 anos e meio. 

Nessa passagem, Perec escreve sobre alguns dos seus desejos que não serão realizados “com certeza”. A busca por controle (matemático) sempre funcionou como uma fuga, uma tentativa insistente de elaboração, perlaboração, sublimação. Um experimento que, ainda que tenha salvado Perec por meio da escrita – e nos presenteado com seus belos trabalhos e enigmas –, o condenou à morte prematura aos 46 anos, vítima de um câncer pulmonar, ironicamente sem nunca ter tido a necessidade de usar óculos. O imponderável o sufocou.

     
Para saber mais sobre Georges Perec, consulte os dois livros publicados por Jacques Fux: Georges Perec: a psicanálise nos jogos e traumas de uma criança de guerra (Relicário, 2019) e Literatura e Matemática: Jorge Luis Borges, Georges Perec e o OULIPO (Perspectiva, 2016).

     

  

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