Frenesi

 

Frederico Feu de Carvalho

 



Frenesi é o penúltimo filme de Hitchcock. Ele foi rodado em Londres, em 1972, após o diretor passar 34 anos em Hollywood, a Meca do cinema[1]. Trata-se de um suspense policial baseado no romance de Arthur La Bern, Goodbye Piccadilly, Farewell Leicester Square. É considerado seu filme mais violento e um dos únicos de nudez explícita. Mas essa violência é bem temperada pelo humor que percorre todo o filme. Ao contrário do habitual, em se tratando de um filme de Hitchcock, há muitas cenas filmadas ao ar livre em torno do Covent Garden, pouco antes de ele deixar de ser o grande mercado de frutas e legumes londrino, e onde o pai de Hitchcock exerceu sua bem-sucedida atividade comercial.

Estamos diante de uma temática cara a Hitchcock. Há um crime e tudo parece convergir para que um inocente seja culpabilizado, o que nos remete a outro filme dele, O homem errado, de 1957. Segundo alguns analistas, ele teria retomado aqui uma fórmula de sucesso, a baixo custo, para não correr o risco de repetir o fracasso de bilheteria e os prejuízos de seu filme anterior, Topázio. Retomando essa fórmula, nas primeiras cenas do filme somos confrontados, como que por acaso, com um corpo de mulher boiando no rio Tâmisa. Logo se percebe a marca do assassino: uma gravata está enlaçada ao seu pescoço. Um pequeno grupo de pessoas se aproxima para ver esse corpo e alguém não demora a anunciar que se trata de mais um “crime da gravata”.

Essa cena inicial é emblemática. Um pouco antes de esse corpo ser notado, um misto de reunião política e promocional anuncia com alarde a volta dos passeios turísticos pelo Tâmisa que, em breve, estaria livre da poluição. Não é o que se verifica com esse corpo que boia. A poluição poderia ser interpretada aqui como uma metáfora daquilo que a civilização não consegue realizar plenamente: o domínio sobre as pulsões. Como o rio que nos traz de volta os dejetos da civilização, estamos sempre às voltas com o fracasso inevitável de nossa relação com o gozo e com aquilo que nele não se civiliza. A significação de “frenesi” (Frenzy) remete justamente à exaltação de alguém que se encontra sob o comando das pulsões, em seu desvario.

Um pouco depois do encontro com esse corpo, em uma conversa de bar, o inspetor do caso, que acabara de saber desse crime, conversa com seu ajudante de ofício ao lado da mesa daquele que irá encarnar esse homem errado. Ele diz que esses psicopatas permanecem em um “estágio primitivo pré-humano (...), governados pelo princípio do prazer”. E acrescenta que isso é bom para o turismo de Londres. De fato, o grande interesse das pessoas pelo serial killer é a contraface do horror que ele exerce. É também o que anima e conduz o espectador.

No entanto, esse espectador logo saberá quem é o verdadeiro assassino. Isso lhe é logo mostrado. Frenesi não é, nesse sentido, uma trama cujo suspense se dá em torno da descoberta do criminoso, a não ser para o inspetor ou pessoas à sua volta. Tampouco se explora a psicobiografia ou motivações do assassino. Trata-se de um filme sobre o “homem errado” em sua dupla acepção: aquele que será erroneamente acusado por um crime e também aquele que encarna o fracasso cotidiano em atingir os ideais de nossa civilização. Somos então conduzidos, nesse filme de Hitchcock, até a reconciliação final com esse “homem errado”.

Mas, o fracasso de Dick, que alimenta tanto o seu mau humor quanto a sua cólera, aos poucos será distinguido do crime de Bob, o verdadeiro assassino. Há em Bob um ódio dirigido à mulher que não se confunde com a cólera de Dick. Este personifica o fracasso do homem comum diante das normas e ideais da civilização que ele mesmo se impõe (como o de se manter em um casamento, obter sucesso profissional, controlar seus impulsos agressivos). Sua cólera é a expressão subjetiva de seu orgulho diante desse fracasso reiterado que o faz recusar toda a ajuda que lhe é oferecida. Essa cólera, que se manifesta em pequenas explosões, parece se voltar antes de tudo sobre si mesmo, quando, em sua vida, os “pininhos não entram nos buraquinhos” (conforme a expressão característica de Lacan para o sentimento de cólera), tal como o buraco na cerca, no livro Um copo de cólera, de Raduan Nassar, que desperta a cólera do protagonista contra sua amante. Isso sempre pode ocorrer quando nos deparamos com as lacunas, descompassos e impossibilidades entre o ideal que almejamos e o real que atingimos. Mas, diante desses descompassos e tropeços sucessivos que compõem a série de fracassos de Dick, ele sonha: sonha em recuperar o que perdeu; sonha com o prêmio de uma aposta em um cavalo cuja chance ele deixa escapar; sonha em fazer melhor da próxima vez etc.

Ao contrário de Dick, no mundo de Bob, diante do impossível há o estupro. Bob personifica a recusa secreta do pacto civilizatório que alimenta os ideais diante dos quais Dick fracassa. Em relação a esses ideais, Bob se apresenta como um homem bem-sucedido e cordial. Chamo aqui de “ideais da civilização” o que Freud denominou “Ideal do Eu”, uma constelação de insígnias que orientam o sujeito tal como outrora as estrelas guiavam o navegador. Esse ponto a atingir é uma ficção que compensa, como uma promessa de ganho futuro ou uma satisfação adiada, aquilo que somos levados a renunciar, ou seja, a satisfação de nosso gozo pelo princípio do prazer. É esse pacto – que se propõe de início como um prato de comida difícil de engolir, que implica um “não” para que depois se possa atingir um “sim” – que Bob não é capaz nem de reconhecer nem de proferir diante da pulsão que o domina e se satisfaz nele. (Deixo entre parênteses a questão sobre o que estaria hoje no lugar dessa constelação de insígnias do Ideal do Eu, que parece não funcionar mais como na época de Freud, e que teria sido substituído pelos objetos de consumo, conforme uma observação de Lacan mais ou menos contemporânea desse filme, que localiza esses objetos no zênite social onde antes estava essa constelação de insígnias.)

Há outro aspecto que difere o ódio de Bob da cólera de Dick. A cólera de Dick lança seus estilhaços em quem cruza seu caminho, seja a garçonete do bar, o taxista, ou os parceiros de seu fracasso, como Brenda, sua ex-esposa. O ódio de Bob, por sua vez, é um ódio especialmente dirigido à Mulher em geral e não a uma mulher em particular. Ele visa ao feminino em seu âmago e não ao que eventualmente não deu certo em uma relação amorosa. Bob não é capaz de se relacionar com uma mulher, tomar a mulher uma-a-uma e lidar com o fato evidente de que em toda parceria amorosa os pininhos não entram nos buraquinhos.

A percepção dessas diferenças é captada pela intuição feminina da esposa do inspetor, que aqui está muito mais do que para nos fazer rir de seus dotes culinários. É ela quem parece intuir a verdade que não engana, enquanto seu marido inspetor se deixa enganar pelos fatos e coleta as provas que incriminam, sem dúvida alguma, o pobre Dick. E como ela o intui? A partir do mais evidente. “Não se fica por dez anos com uma mulher”, diz ela. Ela parece distinguir bem o fracasso colérico de um homem diante de uma mulher e o ódio feminicida. A série de fracassos de Dick se opõe, assim, à recusa em fracassar do serial killer. Ela sabe que o fracasso, assim como a impotência, pode muito bem despertar o amor das mulheres e não o seu horror. É o que vemos no encontro de Dick com a sua ex. Apesar de sua cólera, que volta à tona nessa cena, é com ternura que ela o trata.

A esposa do inspetor sabe que para alimentar o desejo é preciso recusar ao parceiro tudo o que ele mais quer: no caso do inspetor, carnes suculentas. Ela bem poderia dizer: “Eu sei o que você quer, mas o que lhe ofereço são pratos franceses duvidosos”. Assistimos ao inspetor querendo se livrar desse estorvo e à sua ânsia diante de um prato de carnes que ele só pode comer no escritório, longe da sua esposa. Essa pequena trama, que parece marginal no filme, descreve a sustentação histérica do desejo para além do “gozo da carne” e remete, como que ao avesso, a um sonho de uma paciente de Freud que demandava salmão defumado de seu homem, que não por acaso é um açougueiro, mas só para que ele o recuse, de forma que ela possa continuar demandando dele o que de fato ela deseja: o que ele não lhe pode dar.

O olhar terno de Brenda para Dick, mesmo diante de sua cólera, da qual ela sabe muito bem se defender, contrasta com o olhar de terror diante de Bob. Ela não está aí como inocente e sabe o que lhe poderá acontecer. Brenda administra uma agência de casamentos que teria aberto depois do fracasso de seu casamento com Dick. Como mostra o breve diálogo de um casal que acabara de se despedir da secretária e que agora desce as escadas, ela agencia contratos. No lugar do que a agência não pode oferecer é possível obter do novo parceiro café na cama todas as manhãs sem que ele faça barulho!

Mas Bob não quer esse arranjo chamado matrimonial. Ele quer arrancar de Brenda o que ele não pode ter e não admite negociações. O que Bob odeia na mulher? Ele odeia o seu gozo, o gozo que ele infringe a ela, o gozo que ele lhe atribui para além de seu “não”, já que ela não o deseja. O que ele odeia é o gozo que ele não atinge e que lhe é totalmente alheio, mas que ele localiza no suposto masoquismo das mulheres que ele alimenta em sua fantasia perversa, na qual supõe que uma mulher seria capaz de se identificar e experimentar o gozo feminino, o gozo que excede o gozo fálico e que vai além dela mesma. É contra esse impossível gozo do Outro que ele investe a paixão de seu ódio. É esse impossível gozo a atingir que provoca o estranho elo do gozo com a morte. O inspetor é taxativo: “eles odeiam as mulheres e são impotentes”, impotentes para atingir o gozo feminino de sua fantasia fálica, poderíamos acrescentar. “O que os deixa excitados é o estrangulamento, continua o inspetor, e não o sexo”. Bob não suporta o abismo entre o que causa seu apetite sexual e o que dele não se pode atingir. O que ele colhe é apenas o gozo evanescente do qual a detumescência do órgão fálico é a prova real. Diante disso, ele não fracassa: ele difama e mata. Mas isso não se realiza sem restos, sem pistas, sem que deixe cravado nesses corpos os seus próprios traços e inscrições.

Poderíamos conjecturar que Bob escolhe, dentre suas vítimas, duas mulheres que devotam seu amor a Dick; que Dick é o seu outro; que ele visa, em Dick, o objeto de desejo do qual ele estaria privado, uma vez que, para Bob, a mãe não pode ser substituída, como revela a foto que permanece sobre a sua mesa de cabeceira. Mas essa conjectura seria incorreta. As artimanhas do desejo e do jogo amoroso são completamente estranhas a Bob, e a incriminação de Dick por Bob não faz parte de nenhum triângulo amoroso.

Poderíamos conjecturar, ainda, que Dick incrimina a si mesmo; que sem saber ele produz provas contra si mesmo; que ele é responsável por sua própria incriminação e acaba por compactuar inconscientemente com o crime de Bob, quem sabe para se fazer punir. No entanto, essa pista também é falsa.

Então, quando tudo parece se consumar, o espectador é levado a acompanhar passivamente, pela porta entreaberta, o veredicto final do tribunal de júri. Sabe-se que não há advogado que possa livrar Dick de uma condenação. Até que um grito se faz escutar e acontece a reviravolta.

Que grito é esse que sai da garganta de Dick e que agora se faz escutar de um modo novo? O que chega aos ouvidos do inspetor e o desperta de seu sono lógico? Será o sopro da intuição feminina da mulher do inspetor? O que ecoa desse grito, o que ele vocifera, é a indignação de Dick.

A voz do indignado não é a voz queixosa do fraco; não é a voz do cínico que joga seu próprio peso nos ombros de outrem; não é a voz da vítima ou do resignado. A voz do indignado é aquela que se recusa a se identificar com a vítima. Creio que é essa voz que acorda o mal alimentado inspetor.

Dick se comporta na vida como um atrapalhado. Talvez seja um sujeito de má sorte, que deixa cair o bilhete premiado. Ele se debate contra isso, esmurra a mesa, quebra os copos, mas parece se ater aos próprios pininhos que não entram nos buraquinhos e suas causas desconhecidas que ele poderia, quem sabe, psicanalisar. Ele se atém ao seu próprio embaraço, assim como se detém diante da alteridade da mulher. Dick, em seu orgulho ferido, não quer que o tomemos como uma vítima. Algo nele resiste a essa vitimização. Ele é o responsável pelo seu próprio destino, por mais que se lamente das suas circunstâncias. Sua cólera não está, nesse sentido, dirigida ao Outro, a não ser por este se colocar contingencialmente à sua frente. O verdadeiro estorvo de Dick é o seu real que faz com que as coisas não sejam como deveriam ser. Contra isso, não há como indignar-se, apenas resignar-se de uma boa maneira.

O que acorda o inspetor é a junção da cólera de Dick com a indignação dirigida contra Bob. Se Dick pode ser responsabilizado pelo seu próprio destino, ele não pode aceitar ser responsabilizado pelo gozo do Outro. Aqui não se trata de contingências, circunstâncias ou má sorte, mas de um limite. A cólera de Dick, que antes estava voltada para si mesmo e que eventualmente vazava para o lado do outro, agora alimentará a sua indignação contra Bob.

A sequência final é frenética. Vemos Dick se atirar de uma escada a ponto de se ferir para ser hospitalizado; um conluio entre os pacientes do hospital que já se encontra armado e que permite a fuga de Dick. Em sua cólera indignada, Rick não quer justiça, apenas quer matar Bob. Sua indignação encontra sua cólera, seu canal sintomático de vazão; e sua cólera encontra, em sua indignação, a determinação que lhe faltara na vida para superar seu destino de fracassos.

Há então essa virada espetacular que faz com que o inspetor esteja no lugar certo no momento certo para fazer o flagrante de Bob e evitar que Dick se torne o assassino de Bob. Ele intercepta o ato de Dick, como o analista intercepta um sintoma. Enfim, um pininho encontrou seu buraquinho nessa ficção de Hitchcock. É quando nosso destino de fracassos encontra uma saída digna.

 

[1] Comentário apresentado na Sala Humberto Mauro, em Belo Horizonte, no dia 3 de maio de 2019, como parte da programação conjunta com a Escola Brasileira de Psicanálise, Seção MG.

Imprimir