Psicose ordinária:

o caso extraordinário de Jean Genet

 

Pierre-Gilles Guéguen

 

No círculo dos “escritores malditos” hoje se entra como em um moinho − Dantec, Houellebecq, Millet, Nothomb, etc. Ninguém mais fica chocado.

Jean Genet, morto em 1986, havia conseguido mais: Os biombos,[1] montado por Roger Blin em 1966, no teatro Odéon, em Paris, dera lugar à censura e à interdição em uma França ainda sob o choque da descolonização e da guerra de independência da Argélia.

A literatura de Genet, impregnada de temas cruamente homossexuais e centrada na homossexualidade da escória (em oposição, por exemplo, ao universo proustiano), chocava os costumes limitados da então iniciante quinta república. O caso de Genet inspirou em Sartre uma longa biografia intitulada Saint Genet − ator e mártir.[2] Encomendado pela editora Gallimard para ser um prefácio da publicação da obra de Genet, o texto se desdobrou em mais de seiscentas páginas e permanece entre os grandes ensaios da crítica literária de Sartre, assim como o seu Baudelaire[3] ou o seu Flaubert.[4] Todavia, à diferença desses dois outros ensaios, Sartre o escreveu com Genet ainda vivo e após inúmeras entrevistas com ele. O livro saiu pela Gallimard em 1952.

Sartre chamou esse livro de relato de uma “psicanálise existencial”. Com efeito, o caso de Genet deu, com frequência, margem a comentários; e os mais experientes consideram que ele é oriundo de uma perversão com fortes traços masoquistas. Sobre esse tema, podem-se ler, notadamente, os trabalhos de Alain Merlet e Hervé Castanet.[5]

Certamente, existem muitos elementos a ser fornecidos para fundamentar essa tese, mas o recente conceito de “psicose ordinária” mostra-se, segundo nossa opinião, o mais pertinente para aceder à força daquilo que estimulou esse escritor fora do comum.

A vida de Genet, nos testemunhos que temos, não apresenta, com efeito, nenhum dos sinais da “loucura extraordinária”: ausência de delírio constituído do tipo schrebiano, ausência de elementos de dissociação esquizofrênica com surgimentos alucinatórios, ausência de reclusão catatônica, ausência de transtornos de linguagem, ausência de delírio de influência ou de franca perseguição, tantos elementos clássicos da semiologia psiquiátrica caracterizando as fases de estado das grandes psicoses. A Questão preliminar[6] não oferece, neste caso, uma grade de leitura pertinente à primeira abordagem, ainda que, em seus pormenores, ela possa ser muito útil.

Jacques Alain-Miller dizia na Convenção de Antibes que

[...] na história da psicanálise, houve um interesse bastante natural, pelas psicoses extrordinárias, por aqueles que quebravam o pau de verdade. Schreber está em evidência há quanto tempo? Porém, temos psicóticos mais modestos, que reservam surpresas e que podem se mesclar a um tipo de média: a psicose compensada, a psicose suplementada, a psicose não desencadeada, a psicose medicada, a psicose em terapia, a psicose em análise, a psicose que evolui, a psicose sinthomatizada – se me permitem. A psicose joyciana é discreta, à diferença da obra de Joyce.[7]

Sustentarei igualmente que a psicose de Genet é discreta. A perversão que se lê, sobretudo na existência de uma vertente proselitista em Genet (não se trata, talvez, de uma ligeira nuance de querulência?), pode ser considerada como uma suplência. Entretanto, ele fez da escrita um apoio que me parece essencial ser destacado. Em todo caso, não mais que a de Joyce, a obra não é discreta. Ela é, aliás, especialmente corrosiva, barulhenta até, mas recorre a outros meios, a outros artifícios, a outro estilo que a obra de Joyce.

A vida cotidiana de Jean Genet se desenvolveu, em grande parte, à margem da sociedade e se manteve mesmo, mais frequentemente, às margens das margens, demandando com insistência o reconhecimento de escritores contestatórios, por várias razões, mas conhecidos, como Cocteau, Sartre, Simone de Beauvoir, entre outros. Paradoxos de um sujeito que se apresenta como marginal e que tentou elevar o dejeto ao nível de um agalma por intermédio de sua escrita. Ele se foi aos setenta e seis anos, de câncer, em uma pequena cidade do Magreb. Uma vez somente, ao que parece, tentou tirar sua própria vida, mas conheceu graves períodos que foram qualificados de “depressivos” − termo vago, nesse caso.

Constata-se, com efeito, no decorrer da vida de Genet, alguns momentos que correspondem a “desligamentos”, no sentido que Jacques-Alain Miller dá a esse termo no livro A psicose ordinária, quando ele opõe o sintoma de tipo carvalho ao sintoma de tipo junco. Estamos bem claramente no caso do junco.[8]

O sintoma mais importante, que apareceu em Genet aos dez anos de idade, é o do furto. Ele será seguido por fugas e depois, novamente, por furtos importantes, que o conduzirão a uma penitenciária.

É aí que ganha consistência, efetivamente, o sintoma da homossexualidade acompanhado de formas variadas de desinserção social e errância.

É também a partir de seu encarceramento que a escrita e a frequentação de escritores célebres permitirão a Genet lutar contra a deriva, a tendência à clausura, à autoexclusão da cena social, ao isolamento − sempre presentes como pano de fundo.

Examinaremos com cuidado particular a grande crise depressiva que acompanhou a publicação do livro de Sartre, Saint Genet, ator e mártir,[9] e a forma como o escritor pôde superar esse momento crucial, seguido, entretanto, de outro, que o levou a uma tentativa de suicídio em 1966.

Sartre esteve várias horas com Genet antes de escrever seu livro. Edmund White[10] dá outros elementos biográficos, dos quais alguns foram obtidos junto de testemunhas da vida do escritor. Vamos nos apoiar nessas duas fontes bibliográficas essenciais.

O furto como sintoma

“Criança da assistência pública”, Genet foi confiado a uma família de artesãos de Morvan, aos sete meses, pouco antes da guerra de 1914-1918. Ele não pode ignorar que foi adotado, pois, segundo o costume da época, as “crianças da assistência” usavam um uniforme. Ele cresce no seio de uma família que cuida bem dele. Sua mãe adotiva, Eugénie, esbanja-lhe amor. O papel do pai adotivo é mais apagado, até mesmo silenciado nas biografias – ora, a biografia de Sartre se apoia na narrativa de vida feita pelo próprio Genet.

Todavia, essa criança apresenta, desde muito cedo, algumas singularidades. Segundo testemunhas interrogadas por White, ele se recusa a falar o dialeto do país, fica isolado entre seus colegas de classe, e está, além do mais, identificado de forma massiva com sua mãe adotiva, com quem divide os ideais católicos (ele é coroinha). Várias testemunhas relatam que seus colegas o acham afeminado, ele brinca mais com as meninas. É distante com seus companheiros de estudos e, ávido de leituras, passa longas horas solitárias em companhia de livros. Nenhum desses traços é significativo em si mesmo. Nota-se, entretanto, que ele passa também longos momentos isolado nos banheiros. Sartre relata igualmente “ausências”, que ele chama de momentos de êxtase ou ainda de “hierofanias fulgurantes” que irão enfeitar a vida de Genet desde a infância (o que não deixa de evocar as epifanias de Joyce).

Apesar desses elementos notáveis, ele é uma criança comportada (muito comportada?). Dá satisfação à família adotiva e estuda muito na escola. Um pouco antes dos dez anos de idade, entretanto, contam que realizou pequenos furtos (na carteira de sua mãe adotiva, principalmente). Ele não guarda o dinheiro, mas compra balas que distribui aos seus colegas.

Situa-se também aos dez anos um episódio ao qual Sartre dá muita ênfase em sua introdução à obra de Genet, em que ele pretende “mostrar os limites da interpretação psicanalítica”. O episódio é o seguinte: ele furta algumas balas em uma mercearia e logo em seguida é surpreendido. Uma mulher de idade disse-lhe grosseiramente, em público: “Você é um ladrão”.

Sartre faz desse elemento de denúncia na surpresa, a mola da alienação de Genet, a partir da qual ele assumirá sua liberdade tornando-se, por sua própria escolha, o ladrão que o Outro o acusou de ser. É certo que Genet guardará desse momento a lembrança de uma fala alienante que o relegará sob um significante maior, do qual ele se servirá para se identificar − escrevendo, por exemplo, o Diário de um ladrão. Contudo, o fato de furtar é anterior a esse flagrante dado pela fala do Outro. Frequente nas crianças, esse sintoma é uma questão endereçada aos adultos em um ponto fundamental que concerne o saber ou o ser: o falo, isto é, que concerne à identificação sexuada. A redução sartriana não inclui esse elemento e apresenta como livre escolha o que provém de um efeito do inconsciente.

Noto, na biografia de Edmund White que, pouco depois do início dos pequenos furtos, houve um acontecimento importante na vida de Genet: a morte de Eugénie, sua mãe adotiva. Ora, sabemos que ele se sustentava muito nas identificações ideais com essa mãe (catolicismo fervoroso, jeito afeminado). Interpretarei a sua morte como uma resposta à questão do falo por essa criança sem pai. O x do desejo da mãe encontra uma resposta em seu desaparecimento: nada. Muitos elementos da obra de Genet podem parecer originar-se da questão histérica “Sou homem ou mulher?”, principalmente pela feminização de certos personagens masculinos e a referência ao travestimento. Contudo, penso que, nesse caso, o nada que vem como resposta ao sintoma da criança é de outra natureza e que se trata de um nada foraclusivo: uma foraclusão do falo mais presente no Genet criança, mas que não produz os efeitos de uma psicose desencadeada.

Nesse contexto, o outro que fixa a criança sob a denominação infamante de “ladrão” interpreta o desejo do Outro e congela a criança sob um significante mestre que também lhe serve de recurso, de programa, como ele mesmo reconhecerá. Esse programa não está no princípio de um desencadeamento francamente delirante e mesmo o impede, mas deve-se notar que, pouco depois desse episódio, aconteceu a primeira fuga de Genet. Ela será seguida de inúmeros períodos de errância que correspondem ao que chamamos hoje de “desligamentos”.

Com a morte da mãe e o flagrante, que fixou o significante “ladrão”, a resposta à questão do falo e do desejo da mãe toca na raiz do simbólico ao apoiar-se na falta irreparável da metáfora paterna. À questão do simbólico que a criança colocava através do seu sintoma, ela respondeu pela morte de Eugénie. Sua interrogação concernindo o vivente e o falo lhe retorna sob uma forma inversa: “você será mortificado, à beira da morte”. Com efeito, Genet não poderá se desfazer disso. Ele é atormentado pelo tema da morte e do sexo, ele próprio se mortifica, de onde vem, sem dúvida, a importância de seu “masoquismo”. Em seguida, sua interrogação retorna como deslegitimação: “ladrão”. Se você tem um comércio com o falo, este será falseado, você não poderá possuí-lo.

Isso tem como resultado a primeira manifestação de recusa do laço social, a primeira recusa, feita por Genet, da “família”. Sartre vê aí o momento em que o sujeito, congelado sob o significante que emana do Outro, vai afirmar sua liberdade por uma decisão consciente, isto é, por uma escolha do eu assumindo-se como ladrão. Ele não percebe que o sintoma do sujeito era um meio de colocar a questão de sua inscrição simbólica no mundo sexuado e que as respostas obtidas retiram-no do registro simbólico, condenando-o a colocar sua questão a partir do registro imaginário. Assim, a análise de Sartre não leva em conta o gozo e o corpo que o significante atribui. Ele observa, contudo, que, em toda a sua vida, Genet será aquele que não tem.

A obra e o nome que Genet constrói para si mediante a obra, o lugar de escritor e de poeta que ele tanto preza, irão no sentido inverso de seus períodos de mortificação e de errância. Pode-se considerar que eles permitem, pelo imaginário, uma amarração ao tecido simbólico.

Depois do episódio dos dez anos, Genet tem que sair da escola e é enviado como aprendiz para um ofício manual. A criança estudiosa é retirada do saber, os furtos e as fugas são retomados e, depois de um furto importante, ele chega a ser enviado à penitenciária. A partir desse dia, ele toma a via da delinquência e da errância, mas será também nos locais de encarceramento que Genet encontrará o recurso da escrita que o conecta ao saber dos livros e dos poetas.

O sintoma homossexual

Há a homossexualidade de Genet e a homossexualidade descrita por Genet em sua obra, como existe, para Lacan, o Sade escritor e o Sade da vida. Em sua vida, a homossexualidade é exclusiva e afirmada desde a puberdade. Ela é, de acordo com o que se sabe, mais comumente passiva e, às vezes, ativa. Em sua obra ela é idealizada, blasfematória, ligada ao crime e à morte.

Ao longo da vida de Genet, haverá várias relações relativamente duráveis. Observamos também períodos de prostituição. Trata-se, sempre, seja pelo furto seja pela prostituição, de subtrair alguma coisa do Outro. Até o momento em que se tornará conhecido, Genet furta. Em particular, livros preciosos (o que liga o sintoma do furto e sua relação com o saber dos livros).

Homossexual, sua homossexualidade não é vivida por ele como um sintoma ao qual ele teria participação, tampouco como um fato biológico, mas, antes, como um fenômeno imposto, como um julgamento do Outro sem apelo. Como nota Edmund White, em O condenado à morte (obra inacabada), Genet pretendia expor sua teoria da homossexualidade, que ele via como uma maldição − ou pior, como uma sentença irrevogável: “A condenação que incide sobre os assaltantes e assassinos é remissível, não a nossa”.[11] Paradoxalmente, Genet desprezava os homossexuais. A raiz desse sintoma não pode ser atingida, é um ponto fora da dialética, ou melhor, é uma certeza. Sobre isso, Sartre observa “que ele estava morto”, o que evoca aquilo que Lacan indica sobre Schreber e “a morte do sujeito” no texto Questão preliminar.[12]

Essa crença não dialetizável concernindo sua sexualidade entra em consonância com o fato de se apresentar como o dejeto da operação simbólica de nomeação e com o desprezo social que o ameaça sem cessar.

Sartre faz valer – com toda razão − o ponto de vista segundo o qual “A abjeção em Genet é uma conversão metódica, tal como a dúvida cartesiana e a epoché usserliana: ela constitui o mundo como um sistema fechado que a consciência olha de fora, como o entendimento divino”.[13]

É, com efeito, pela via do imaginário que Genet vai poder lutar contra o desligamento. Sua escrita é sempre (ao menos de viés) um olhar que ele tem de si para si mesmo. Os fenômenos de eco narcísico e de repetição estão sempre presentes nos textos. Contudo, através de seus escritos, ele se faz um lugar no mundo da literatura.

Identificando-se com outros homossexuais literários já célebres dos quais havia se aproximado, como Cocteau, ele chega a obter certo reconhecimento. Ele é, aliás, muito exigente, quase reivindicativo para com eles. Assim, ele se faz um nome, tal como Joyce se fez um nome somente pela eficácia do eu.

Isso pode ser ilustrado nas notas tomadas por Jean Cau, então secretário de Sartre: “Como ele surgiu do nada, ele detestava a ideia de biografia, que poderia revelar o quanto ele havia se construido por si mesmo, por uma vontade de poder à la Nietzsche [...] sendo um autodidata, Genet era incapaz de escrever uma frase francesa simples, clássica, o que explica o lado enfático de sua correspondência [...]. Genet sabia escrever somente seu próprio gênero, num francês excessivo e magnífíco, era preciso alcançar um tom histérico e sustentá-lo, ele escrevia como um acrobata se equilibra sobre uma corda bamba, como um desafio cotidiano”.[14]

Com efeito, a escrita de Genet repousa em paradoxos que Sartre associa ao seu narcisismo. Trata-se, substancialmente, de colocar em cena, da forma mais clássica − ele diz ter tomado Gide como modelo, ou seja, o próprio classicismo − realidades bastantes sórdidas e magnificá-las. Ele tenta fazer o dejeto passar ao apogeu do belo, inserindo-o num recorte de escrita, o que explica o lado “produzido”, barroco, encantatório e blasfematório de sua escrita, que é inteiramente tomada por efeitos de espelhamento e inversões, de simulacros e derrisão (até ultrapassar limiares que Gide reprova: o amor do juiz pelo criminoso ou o amor homossexual pelos nazistas).

Há uma ironia constante em Genet, uma obstinação feroz em destruir os semblantes e, ao mesmo tempo, em convocá-los permanentemente com a ajuda de uma estética trash. Seu dever − e Sartre assinala justamente os acentos forçados desse movimento, sua tonalidade kantiana − é de apresentar à sociedade um espelho deformador onde cessam os semblantes e subsiste apenas o véu da beleza.

Sem dúvida, Genet não “decide”; ele é, antes, compelido por uma necessidade inconsciente. Ele inventa sua forma, apoia-se nela. Ele recobre assim o insuportável do real e da foraclusão da significação fálica. Esse é também o caso de Joyce: sua literatura deve forçar o Outro a se ocupar dele devido a sua posição de exceção. Lacan sublinha o quão é importante para Joyce tornar-se o quebra-cabeça de gerações de universitários. Ele irá se tornar, assim, um autor “cult”.

O dispositivo Genet-Sartre, o fenômeno elementar

Saint Genet, ator e mártir[15] tem um lugar à parte na obra de Sartre. Pode-se falar, como fazia o escritor argentino Juan José Saer,[16] de um verdadeiro dispositivo Genet-Sartre. Genet tem então quarenta anos, ele está em um momento de grande dificuldade de inspiração, ele erra pelos hotéis mal-afamados. Ele acaba por consentir à operação proposta por Sartre. O resultado literário disso é incrível, a escrita de Sartre é notável e a lógica de sua demonstração muito coerente: um saber sem falhas.

O efeito desse espelhamento de saber sobre si mesmo estendido a Genet foi, segundo seus próximos, muito deplorável, como poderíamos imaginar, uma vez que Sartre colocou o saber a seu lado. Já em um período de depressão, o estado de Genet se agravou de tal modo que resultou em seis anos de impotência criativa. White estima que o que o tirou dessa situação foi o convívio com o escultor Alberto Giacometti, que o tomou como modelo. Ele conta, em suas memórias, a interpretação que produziu um efeito de apaziguamento: “Como você é bonito”, disse o escultor, em seguida ele acrescentou esta constatação que o maravilhou ainda mais: “Como todo mundo, não é mesmo? Nem mais nem menos”.[17]

Essa intervenção, que teve como efeito restaurar o véu do belo sobre o corpo de Genet, não o nomeia. Ela o designa, contudo, como um objeto amável, respeitando, ao mesmo tempo, a reivindicação de anonimato que está, sem dúvida, na raiz de seus “apagamentos” periódicos, que alterna com uma furiosa exigência de reconhecimento de sua obra.

Como qualificar o que a publicação do livro de Sartre provocara nele? O que a manobra de Giacometti restaura?

O segredo disso aparece em um episódio que Genet traz em O que restou de um Rembrandt cortado em pequenos quadrados e jogado na privada[18] e que data do período que se seguiu à publicação do livro. Trata-se de um momento de “hierofania”, para retomar o termo utilizado por Sartre, e que, para nós, tem valor de fenômeno elementar absolutamente transitivista. Ele indica que, sob a vestimenta da literatura, não há corpo:

[...] alguma coisa que parecia assemelhar-se a uma podridão vinha gangrenando toda minha velha visão de mundo, quando um dia, num vagão, olhando para um passageiro assentado diante de mim, tive a revelação de que qualquer homem valia o mesmo que qualquer outro, eu não suspeitava [...] que esse conhecimento levaria a uma tão metódica desintegração... Foi então que meu olhar cruzou de repente com o do viajante, ou melhor, se fundiu nesse olhar... Seu olhar não era o de um outro, mas o meu que eu reencontrava num espelho, por inadvertência, na solidão e no esquecimento de mim. O que eu sentia não podia se traduzir a não ser sob esta forma: eu me escoava de meu corpo, pelos olhos, naquele do passageiro, ao mesmo tempo que o passageiro se escoava no meu. Mais precisamente: eu me escoara, pois o olhar foi tão breve que só posso me lembrar dele com a ajuda desse tempo verbal.[19]

Como Genet não tinha um corpo solidamente ancorado no simbólico, foi preciso todo o artifício do que ele obteve por seu estilo, estendendo um véu de beleza sobre a merda, para que não se tornasse, ele mesmo, o objeto dejeto do olhar do Outro. Sartre, estendendo a ele um espelho que, por ser desnudante, atingiu a construção de Genet. Giacometti permitiu a Genet ultrapassar esse episódio. Virão em seguida O balcão,[20] Os negros,[21] e Os biombos,[22] o grande teatro de Jean Genet, escritor, poeta e, mais secretamente, body-builder.

 

Pierre-Gilles Guéguen é psicanalista em Paris. É AME da ECF e da NLS.
 

Tradução: Fabiana Campos Baptista

Revisão: Yolanda Vilela

_______________________________________________

Referências

GENET, J. Ce qui reste d’un Rembrandt déchiré en petits carrés et jeté aux chiottes. In: ______. Œuvres complètes, tome IV. Paris: Gallimard, 1968. p. 21-31.

GENET, J. Le balcon. Paris: Folio Poche; Gallimard, 2002. [O balcão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970.]

GENET, J. Les nègres. Paris: Folio Poche; Gallimard, 1980. [Os negros. Rio de Janeiro: 7Letras, 1998.]

GENET, J. Les paravents. Paris: Gallimard, 2000. [Os biombos. Rio de Janeiro: 7Letras, 1999.]

LACAN, J. D’une question préliminaire à tout traitement possible de la psychose (1957-1958). In: ______. Écrits. Paris: Seuil, 1966. [De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 537-590.]

MERLET, A.; CASTANET, H. Le choix de l’écriture. Paris: Chimères; Rumeurs des Ages, 2004.

MILLER, J.-A. La psychose ordinaire. La Convention d’Antibes. Paris: Agalma, Seuil, 1999. [A psicose ordinária. A convenção de Antibes. Belo Horizonte: Scriptum; EBP, 2012.]

SAER, J. J. Journal Libération, du 11 mars 2005.

SARTRE, J.-P. Baudelaire. Paris: Gallimard, 1947.

SARTRE, J.-P. L’idiot de la famille. Paris: Gallimard, 1947. [O idiota da família. Porto Alegre: L&PM, 2013.]

SARTRE, J.-P. Saint Genet, comédien et martyr, Paris: Gallimard; NFR, 1952. [Saint Genet, ator e mártir. Petrópolis: Vozes, 2002.]

WHITE E. Jean Genet. Paris: Gallimard, NRF, 1993. [Genet: uma biografia. Rio de Janeiro: Record, 2003].

________________________________________

Notas

[1] GENET, 2000.

[2] SARTRE, 1952.

[3] SARTRE, 1947.

[4] SARTRE, 1947.

[5] MERLET; CASTANET, 2004.

[6] LACAN, (1957-1958).1966.

[7] MILLER, 1999, p. 275 et sv.

[8] Pierre-Gilles Guéguen refere-se aqui à fábula de Jean de La Fontaine (1621-1695) O carvalho e o junco. Nessa fábula o carvalho, forte e exuberante, é derrubado pelo vento, ao passo que o junco, mais discreto, enverga, mas não cai. (NDR).

[9] SARTRE, 1952.

[10] WHITE, 1993.

[11] WHITE, 1993, p. 389.

[12] LACAN, (1957-1958) 1966, p. 567.

[13] SARTRE, 1952, p. 145.

[14] WHITE, 1993. p. 335.

[15] SARTRE, 1952.

[16] SAER, 2005.

[17] WHITE 1993, p. 404.

[18] GENET, 1968, p. 21-31.

[19] GENET, 1968, p. 21-31.

[20] GENET, 2002.

[21] GENET, 1980.

[22] GENET, 2000.

Imprimir