Frederico Feu de Carvalho

Nas primeiras imagens de O homem das multidões, filme de Cao Guimarães e Marcelo Gomes, um homem anda só no meio de muitos outros homens. São passageiros desse mundo, e todos andam sós. Podemos ver o homem das multidões vagando entre os trilhos até entrar na cabine de comando do comboio que ele conduz. A não ser por um breve cochilo, esse homem que anda nos trilhos é o fiel condutor de anônimos com quem mantém uma estranha comunhão. Ele pertence às multidões, como expressa o título do filme; a multidão é o corpo que lhe faz parceria.

No corpo a corpo dos corredores e vagões do metrô a solidão se revela acompanhada. Tem-se a impressão de que esse homem quer apenas nela se encarnar. Já nas madrugadas insones, quando ele se recolhe aos seus solilóquios, longe do burburinho, dos olhares e de todos aqueles corpos, só lhe restam reminiscências e objetos desencarnados, como a voz do rádio, a imagem da TV ou a paisagem da janela. Estilhaços do dia e do outro. Apartado da multidão, ele só quer a ela voltar.

Seu mundo, reduzido ao ambiente de trabalho, aos arredores da estação de metrô e a um apartamento próximo, é como um círculo. As cenas o mostram seguindo o fluxo dos que entram e saem dos vagões ou das escadas rolantes. Ele observa, altivo, mas seu olhar nada vê. Tampouco fica cabisbaixo. Procura algo? Para onde vai? O homem das multidões não formula nenhum desejo, e este permanecerá um enigma. Não saberemos de sua história nem de seus dramas. Esse homem não procura por alguém, sequer suporta uma demanda, como ser padrinho de um casamento. Para ele, falar com o outro pode ser um estorvo.

No contraponto desse anonimato e do celibatário masculino, a controladora dos metrôs renova seus apelos. Ela controla os homens que controlam as máquinas que conduzem outros homens. “Difícil é o ser humano […] máquina você controla”. Entre alimentar seus peixinhos virtuais, visitar a lua sem sair de casa utilizando óculos 3D, estimular-se com um vibrador e buscar na rede um homem que se encaixe ao seu perfil, ela cuida de seu velho pai, que canta canções de ninar.

O que aproxima essas duas solidões? Por que elas se atraem? Secretamente, essa mulher parece saber que aquele homem nada quer. Por seu lado, ele sabe que ela se deixa iludir a o planejar um casamento com um homem encontrado num site de relacionamentos. “Casar pra quê?”.

Aos poucos, o filme revela o paradoxo do homem contemporâneo, esse homem ao mesmo tempo tão conectado e tão separado do outro. O homem das multidões é um homem cansado de se deixar conduzir e de vagar sem rumo. E se ele se perde em seus sonhos, onde seus desejos se escondem, será despertado pelo “homem morto”, essa figura do burocrata moderno encarnada por um dispositivo de controle instalado na cabine do metrô, que ele deve acionar a cada dez segundos para não se distrair com sonhos e fantasias.

Os breves encontros desses dois solitários e suas conversas silenciosas são como um copo d’água no meio do deserto. Pode-se sempre pedir um copo d’água para prolongar a conversa um pouco mais, até que a despedida os alivie. Assim sobrevivem no deserto.

É preciso que a água venha dos céus em chuva torrencial e que notas musicais irrompam para que os olhares enfim se cruzem, e o filme libere sua poesia. Ele, que apenas se deixava ver por ela pelos circuitos internos de TV, vagando a esmo na multidão em meio aos passageiros que conduz, lhe dirige agora um olhar mediado pelo aparato tecnológico que ela observa e controla. A câmera, liberada de seu artifício, gira e os coloca frente a frente, corpo a corpo, olho no olho. Mas disso nenhum dos dois saberá. É o espectador que os conecta. Ou não.

Para esse homem que consente enfim ser o padrinho do casamento, melhor calçar suas velhas botas do que usar sapatos novos e apertados. Na festa de casamento, o vemos só e à vontade. A conversa silenciosa entre ele e o pai da noiva é permeada pelo momento mais eloquente do filme: o condutor revela seu cochilo ao conduzir o metrô. “Eu fui acordado pelo homem morto”. “Pelo homem morto?”, pergunta o pai. Eles parecem se entender, enchem e esvaziam seus copos e brindam à saúde! Parecem felizes por terem sido capazes desse pequeno diálogo.

Fios d’água escorrem e se encontram em meio ao sonho como que por acaso. Desse sonho, o homem das multidões será despertado pela recém-casada, que bate à sua porta, que ele abre ainda com o terno de casamento. Entre os sós não há lugar para muitas perguntas. Basta apenas um copo para um pouco d’água, acolher e deixar o outro só, cada qual com sua própria solidão. Assim, eles se encontram, enfim, a sós. 

  

Frederico Feu de Carvalho é psicanalista, membro da EBP-AMP e doutor em Estudos Linguísticos pela FALE-UFMG.

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