Representar o irrepresentável?

João Camillo Penna

 

A exposição Mémoire des camps. Photographies des camps de concentration et d’extermination nazis (1933-1999), sob a curadoria de Pierre Bonhomme e Clément Chéroux, ocorreu em Paris, no Hôtel de Sully, entre 12 de janeiro e 25 de março de 2001. Essa exposição consistia basicamente de fotos muito conhecidas, tiradas em 1945, por fotojornalistas como Lee Miller, Margaret Bourke-White, George Rodger e Eric Schwab, quando da abertura dos campos de concentração nazistas, além de intervenções de artistas contemporâneos em torno do tema. Dentre as fotos, havia uma pequena série de quatro, que extrapolava em tudo o conjunto das outras. Eram fotos tiradas clandestinamente em agosto de 1944, por um membro do Sonderkommando (a “equipe especial”, encarregada especificamente da gestão material do processo de extermínio em Auschwitz-Birkenau), de quem nos resta apenas o nome Alex, um judeu grego. Duas delas mostram, segundo a reconstituição arqueológica de Jean-Claude Pressac, em Auschwitz: Technique and Operation of the Gas Chambers, de 1989, a cremação em fossa de incineração ao ar livre de judeus húngaros, em frente ao crematório V de Auschwitz. Essa cremação registra um momento extremo da engenharia do extermínio transcorrida nos Lager alemães, quando, no verão de 1944, quatrocentos e trinta e cinco mil judeus húngaros foram deportados e executados no espaço de quatro meses. As câmaras de gás eram obrigadas a funcionar 24 horas por dia, e os fornos crematórios não comportavam a demanda de destruição de corpos. Ao fim do verão, o estoque de zyklon B faltou, e os membros do Sonderkommando começaram a jogar pessoas vivas nas fossas de incineração. Em apenas um dia, vinte e quatro mil judeus eram mortos.

 

 

Sonderkommando – Wikiwand acesso em 24 de maio de 2021 https://www.wikiwand.com/pt/Sonderkommando.

Duas fotos são tiradas de dentro de uma sala escura, enquadrada, mas fora de esquadro por bordas negras de sombra, e mostram ao longe um grupo de homens suados, circundados de corpos nus estendidos no chão, tendo atrás uma cortina de fumaça, e mais atrás ainda uma floresta de abetos. Cinco planos, portanto: o da soleira da porta ou janela negra que enquadra a cena, o espaço de terra árida que separa o fotógrafo da cena, os corpos nus deitados e os membros do Sonderkommando que os jogam na fossa de incineração, a nuvem de fumaça e finalmente a floresta ao fundo. Uma terceira foto, inclinada, também inteiramente fora de esquadro, mostra, em seu canto inferior, enquadrada por árvores e folhagens, e quase imperceptível, um grupo de mulheres nuas correndo para a câmara de gás. A quarta e última, um pouco superexposta, e inclinada em 90º, mostra, em um fundo de luz branca, a sombra de árvores e folhagens. A complicada e arriscada operação de tirar essas fotos, que incluía fazer entrar e sair uma câmara fotográfica em Auschwitz-Birkenau oculta no fundo de um balde, foi levada a cabo pela resistência polonesa, com a finalidade de comprovar fora da Polônia, e em especial junto às potências aliadas, o que estava ocorrendo nos campos de extermínio nazistas.

 


Sonderkommando – Wikiwand acesso em 24 de maio de 2021 https://www.wikiwand.com/pt/Sonderkommando.

 O catálogo da exposição incluía, além de textos de Chéroux, um longo ensaio do crítico de arte Georges Didi-Huberman, intitulado "Images malgré tout", hoje incluído no livro homônimo (2003), onde essas quatro fotos eram longamente analisadas. O estardalhaço em torno delas, a “novidade” que elas apresentariam seria ligada ao fato de que tradicionalmente considera-se que há uma lacuna nas representações visuais do genocídio judaico da Segunda Guerra Mundial: há muitas representações entre 1933 e o início da guerra, retomado em 1945, após o término da guerra, havendo uma interrupção entre os dois períodos durante a qual não haveria nada ou quase nada a ser visto, retomado. As fotos expostas, com exceção dessas quatro, representam em sua totalidade imagens de campos de concentração, e não de extermínio, a distinção entre os dois sendo extremamente importante. A exposição pretendia de alguma forma preencher essa lacuna, mostrando pela primeira vez o que antes se concebeu não existir, ou seja, representar o “inimaginável”.

Uma semana após a abertura da exposição, Claude Lanzmann, autor do documentário Shoah, concedeu uma entrevista a Michel Gerrin no Le Monde (19.01.2001), sob o título "Claude Lanzmann, écrivain et cinéaste. La question n’est pas celle du document, mais celle de la vérité", na qual criticava enfaticamente o projeto da exposição como um todo, fazendo sérias ressalvas aos textos contidos no catálogo. As críticas de Lanzmann podem ser reduzidas a cinco pontos principais:

1) Em primeiro lugar, a exposição e seu catálogo contêm um aspecto publicitário, mercadológico, o lado “furo de reportagem” desonesto. Os expositores sugerem que os documentos apresentados são novos, e que deveriam modificar radicalmente a nossa representação do processo de extermínio de judeus, quando na verdade tudo ali, inclusive as quatro fotos, já era inteiramente conhecido do público. Basta ir aos diversos museus e memoriais dedicados ao Holocausto onde todo o material exibido é acessível. Problema ético;

2) A curadoria, ao montar a exposição, justapõe e equipara materiais que não são equiparáveis. Por exemplo, o paralelo sugerido “entre os rostos intumescidos dos deportados moídos de golpes e os de seus carrascos, espancados na liberação dos campos”. A exposição mistura imagens, não estabelecendo a hierarquia necessária entre elas, ao equiparar, de alguma forma, a experiência de carrascos e de vítimas. Tema que remete ao estatuto específico da imagem e do imaginário, e o problema da semelhança. As imagens são intercambiáveis, e avessas a uma distribuição ética;

3) A pretensão de que essas fotos viriam a preencher a lacuna imensa da falta de imagens dos campos de extermínio. O que temos em abundância são imagens dos campos de concentração, ou as fotos da abertura dos campos de extermínio em 1945. As quatro fotos clandestinas do Sonderkommando de Auschwitz-Birkenau seriam a resposta à provocação feita anteriormente por Jean-Luc Godard, citado por Chéroux no texto do catálogo, de que ele, Godard, acabaria por encontrar imagens dos campos de extermínio em funcionamento, com a ajuda de um bom jornalista investigativo, ao fim de vinte anos de pesquisa. Contra esta pretensão, que Lanzmann qualifica de “pedantismo [cruisterie] interpretativo”, ele apresenta três argumentos: a) as fotos não mostram câmaras de gás, elas mostram corpos dispostos no chão e sendo queimados fora da câmara de gás; b) não podemos ter certeza sobre a posição do fotógrafo ao tirar as fotos, ninguém pode ter certeza, como o afirmam Chéroux e Didi-Huberman, de que as fotos foram tiradas de dentro da câmara de gás. O texto de Chéroux continha um jogo de palavras estetizante contido já no título, “Les chambres noires ou l’image absente”, que associa a imagem da câmara escura da revelação fotográfica com a câmara de gás. A posição do fotógrafo permanecerá sempre hipotética, quando muito uma suposição; c) A suposição de Didi-Huberman consiste em um fetichismo. Há fantasia na suposição de que elas seriam tiradas de dentro da câmara de gás, com a intenção de nos fazer crer que dispomos de “fotos do que se passa no interior de uma câmara de gás durante a operação da execução com gás”. Esse tipo de foto não existe. A precaução investigativa de Lanzmann esconde uma premissa filosófica, e conduz a um diagnóstico psicanalítico.

4) Lanzmann, em “À propos de La liste de Schindler, dernier film de Steven Spielberg. Holocauste, la représentation impossible”, no Le Monde (03.04.1994), responde à crítica a respeito de uma declaração anterior sua, de que, mesmo que imagens como essas fossem descobertas, ele não apenas não as teria mostrado, como as destruiria. Ele corrige a afirmação anterior: falava de um hipotético filme, nunca encontrado, realizado por um SS, mostrando três mil judeus morrendo em uma câmara de gás do crematório II de Auschwitz. Quando fazia Shoah, ele vira um filme mudo de um minuto, feito por um soldado alemão, que mostrava judeus executados pelos Einsatzgruppen. Essas imagens, no entanto, registram o ponto de vista SS, e são “imagens sem imaginação”. Shoah foi feito contra todo o arquivo, ao adotar a estratégia estética de misturar imagem e voz testemunhal, recusando-se a mostrar as conhecidas imagens de arquivo feitas por fotógrafos e cinematógrafos aliados, quando da abertura dos campos de concentração ao final da guerra. Problema de fundo que remete ao projeto estético do filme de Lanzmann e contém uma noção de perspectiva ou ponto de vista da imagem.

5) As imagens de artistas contemporâneos incluídas na exposição são revoltantes, contendo um esteticismo imperdoável. Condenação iconoclasta da representação ficcional como um todo, que tem ramificações em toda uma linhagem de reflexões sobre o Holocausto, do qual a versão mais conhecida seria o famoso e polêmico veredicto de Theodor Adorno, em "Crítica cultural e sociedade" (1998), segundo o qual “escrever um poema após Auschwitz [seria] um ato bárbaro”.

Esse grupo de críticas será a seguir elaborado e expandido em dois longos artigos publicados na revista Les Temps Modernes (56ème année. Mars-avril 2001), dirigida pelo próprio Lanzmann: “De la croyance photographique”, assinado pelo psicanalista Gérard Wajcman, e Reporter photographe à Auschwitz, pela professora de literatura hispano-americana, Elisabeth Pagnoux. Gérard Wajcman havia sido interpelado diretamente, assim como o próprio Lanzmann, no texto de apresentação de Didi-Huberman:

Observa-se, notadamente, que certas obras de arte importantes suscitaram, em seus comentadores, generalizações abusivas sobre a “invisibilidade” do genocídio. É assim que as escolhas formais de Shoah, o filme de Claude Lanzmann, serviram de álibi para todo o discurso – moral, assim como estético – sobre o irrepresentável, o infigurável, o invisível e o inimaginável... Essas escolhas formais foram no entanto específicas, portanto relativas: elas não promulgam nenhuma regra. Não utilizando nenhum “documentário de época”, o filme Shoah não permite emitir qualquer julgamento peremptório sobre o estatuto dos arquivos fotográficos em geral. [Uma nota de rodapé aqui remete ao debate, equivocado segundo Didi-Huberman, entre Jorge Semprún e Claude Lanzmann sobre a existência, utilidade ou inutilidade de tais imagens que mostrariam as câmaras de gás em funcionamento.] E, sobretudo, o que ele propunha em troca constitui bem a trama impressionante – em uma dezena de horas – de imagens visuais e sonoras, de rostos, de palavras e lugares filmados, tudo isso composto segundo escolhas formais e um engajamento extremo sobre a questão do figurável. De sua parte o Dachau-Projekt de Jochen Gerz e seu invisível Monumento contra o racismo, em Sarresbrück, suscitaram igualmente numerosos comentários sobre a Shoah em geral. [Segue-se uma sucessão de citações retiradas do livro L’objet du siècle de Gérard Wajcman (1998): “A Shoah é e permanecerá sem imagem”, etc. E conclui:] As duas pobres imagens enquadradas pela própria porta de uma câmara de gás, no crematório V de Auschwitz, em agosto de 1944, não são suficientes para refutar esta bela estética negativa? Como um tal ato de imagem [as fotos tiradas pelo Sonderkommando de Auschwitz] seria legiferado por um pensamento, mesmo que justo, sobre o exercício da arte [o filme Shoah, os monumentos de Gerz e os comentaristas de ambos]?

Uma reconstituição rigorosa, mesmo que sucinta, desse debate seria impossível aqui; tratar-se-ia em todo o caso de uma polaridade entre duas grandes linhagens de pensamento, com desdobramentos políticos, estéticos e teológicos em torno do problema do negativo e da negatividade: uma “estética negativa”, de um lado e uma outra, difícil de nomear, e que sobretudo não remeteria a uma “estética positiva”, como quereria uma oposição simples, que opõe, por exemplo, simplesmente, uma teologia positiva a uma outra negativa.

Alguns marcadores, no entanto, para delimitar a questão: Georges Didi-Huberman parece ter como alvo explícito o debate com Lanzmann/Wajcman, ao sublinhar enfaticamente, desde o início de seu texto, o tema da imaginação e o dever de imaginar, contra uma tradição que pensa o genocídio judaico da Segunda Guerra Mundial como “inimaginável”. De fato, a objeção é bem mais ampla e atinge a toda uma linhagem de leituras do genocídio judaico que se reclama direta ou indiretamente do tema do sublime kantiano, que tem no documentário de Lanzmann precisamente o seu monumento mais impressionante, no qual se observa uma ênfase excessiva no indizível, e no irrepresentável, esquecendo-se dos interesses mais pedestres da pesquisa historiográfica pura e simples, interessada em multiplicar as representações do Holocausto, e não em pontificar a sua irrepresentabilidade de princípio.

Resumirei simplesmente os desdobramentos da polêmica em cinco campos diferentes. Em primeiro lugar, as ramificações teológicas do debate implicam uma oposição meio assumida, meio descartada ironicamente por ambas as partes – a imputação de crença religiosa mesmo que subliminar em projetos estritamente ateus servindo de escudo apotropaico para condenar o oponente como aparelho projetivo. É assim que Wajcman acusa Godard e Didi-Huberman de promover uma teologia cristã, mais precisamente paulina, da imagem, enquanto encontramos no campo oponente a acusação simétrica oposta de que Lanzmann e Wajcman praticam uma teologia judaica da lei (da “letra”), associada ao interdito da representação.

O motivo religioso remete, em segundo lugar, a uma discussão estético-clínica em estrita ortodoxia psicanalítica, tendo como pano de fundo a discussão sobre o fetiche. A discordância aparentemente vã em torno da posição do fotógrafo se dentro ou fora da câmara de gás tem ramificações profundas e remete, de um lado, à imputação de crença na interioridade da imagem do horror. Acreditar-se dentro da câmara de gás seria equivalente à fantasia de testemunhar a própria morte, no momento em que ela se dá ou, em termos filosóficos, a impossível apresentação da apresentação. Para Elisabeth Pagnoux, as câmaras de gás não contêm imagens – hipótese reconduzida pela afirmação posta como premissa reflexiva da inexistência de um filme que documentasse a morte dos deportados na câmara de gás. Elas são, portanto, vazias de imagem, já que não há, a priori, imagem do horror. E é desse vazio, dessa ausência de imagem, que qualquer reflexão ou representação estética sobre o Holocausto deverá partir.

A crença na interioridade da imagem de quem acredita ser possível mostrar o conteúdo de horror das câmaras de gás é fetichista em sentido freudiano estrito, isto é, como Verleugnung – “recusa” – e Verwerfung ‒ “rejeição” ou “forclusão”. A teoria da imagem como substituto fetichista que visa preencher uma ausência de imagem, aliviando precisamente a angústia (de castração) provocada pela ausência de imagem, se comunica com a suposição teológica da crença na imagem encarnada do absoluto que redistribui as posições dos dois oponentes. Wajcman e Lanzmann pressupõem que Didi-Huberman afirma o status de absoluto de uma imagem plena que registraria o funcionamento da engenharia da morte nas câmaras de gás mesmo que substituída por imagens da incineração de corpos fora da câmara de gás, mas tiradas de dentro, portanto, comunicando-se metonimicamente com a imagem absoluta que substituem. As imagens são uma espécie de relíquia religiosa que contém vestígios encarnados da experiência da morte que representam. Ao que Didi-Huberman responderá, com facilidade, que quem acredita em imagem absoluta como ausência de imagem absoluta ‒ portanto como absolutização da imagem ausente ‒ são os dois defensores da tese iconoclasta da ausência pura e simples de imagem do Holocausto. Não há, contesta ele, nem nunca houve, qualquer hipótese de imagem total, única, absoluta. Esta é mesmo a premissa básica de toda discussão sobre imagens ou ícones: não existe imagem única, mas imagens, plurais, “pobres imagens resgatadas do inferno”, como ele escreve sobre as quatro fotos do Sonderkommando.

Do ponto de vista estético, em terceiro lugar, a discussão remeterá ao tema da ausência, central no livro L’objet du siècle, de Wajcman. O século XX se inicia com a Roda de bicicleta de Duchamp (1913) e com o Quadrado negro sobre fundo branco (1915), de Malevich, e termina com os monumentos invisíveis de Jochen Gerz e com o monumento funerário fílmico que é Shoah (1985), de Claude Lanzmann. Se o objeto do século XX é precisamente a ausência em si, o objeto como ausência de objeto, é porque ele tem em seu centro esta imensa cesura que foi o genocídio judaico da Segunda Guerra Mundial. As artes visuais estão mais preparadas para indiciar este vazio no qual “não há nada a ser visto”, do que, por exemplo, as artes narrativas, irremediavelmente implicadas na ficção imaginária.

Essa estética negativa reconduz o debate sobre o sublime kantiano, na Crítica da faculdade do juízo, como “apresentação meramente negativa”, e sua relação implícita com a interdição mosaica da representação e o judaísmo. Sabemos que um dos exemplos emblemáticos citados por Kant do sentimento sublime é precisamente o “tu não deves fazer-te nenhuma efígie nem qualquer prefiguração, quer do que está no céu ou na terra ou sob a terra”. Será Adorno o grande pensador desta linhagem da estética negativa. Nos anos 1980, ressurgirá com grande força na França, no campo da filosofia, o debate sobre o sublime. As contribuições originalmente publicadas na revista Po&sie, dirigida por Michel Deguy entre 1984 e 1986, serão enfeixadas no volume Do sublime (Belin, 1988). Deste conjunto, notabilizam-se os estudos de Jean-François Lyotard (não retomado na coletânea), particularmente interessado na relação entre sublime, a arte abstrata e o Holocausto.

Em quarto lugar, a polêmica propõe duas maneiras de tematizar o arquivo, transmitir e pensar o Holocausto. Problema ao mesmo tempo historiográfico, estético e pedagógico. A estética da incomunicabilidade é acusada de perpetuar e repetir o silêncio sobre o Holocausto, instituindo como regra a rasura literal humana e simbólica perpetrada pelos nazistas, dando, a despeito das melhores intenções, munição para os negacionistas. Do outro lado, acusa-se os partidários da imagem de reduzi-la ao status de prova, empobrecendo-a (são “imagens sem imaginação”, dirá Lanzmann). Do ponto de vista estético-pedagógico, as imagens do horror são vistas por Lanzmann e Wajcman como paralisantes, produzindo no público uma extensão indesejável do horror que representam, e não permitindo uma perlaboração adequada do trauma que apenas o discurso – o testemunho – propiciaria.

Em quinto e último lugar, a premissa da permutabilidade das imagens, o dispositivo identificatório do imaginário, que está no cerne do mecanismo catártico descrito por Aristóteles vai mobilizar uma discussão ético-política importante. De um lado, a interdição da identificação entre carrascos e vítimas (Lanzmann fala, e depois os dois articulistas, sobretudo Wajcman, retomam este ponto em detalhe): o paralelo entre imagens da dor dos carrascos e da dor da vítimas é infame. As imagens devem ser hierarquizadas, isoladas. Para Wajcman, é precisamente esse dispositivo que mobilizará o tópos recorrente na atualidade da analogia entre genocídio judaico na Segunda Guerra Mundial e genocídio palestino. A frase “os judeus de agora são os palestinos, já que os israelenses se comportam como os nazistas alemães” tem, nessa lógica da permutabilidade infinita das imagens, a sua origem genealógica.

Do outro lado, Didi-Huberman escreverá longamente sobre a importância da identificação entre semelhantes como elemento essencial a uma política da imagem. O genocídio se dá precisamente por causa de uma “crise de identificação e uma falha do reconhecimento do semelhante”. Na verdade, todos os termos da discussão, de ambos os lados, retomam em detalhes a discussão proposta na Poética de Aristóteles. O conteúdo vazio do terror (phóbos) das imagens internas à câmara de gás, a interdição da identificação compassiva da piedade (éleos), sobretudo na premissa da identificação entre carrascos e vítimas, é um divisor de águas no debate, que se reclama, de ambos os lados, de Bertolt Brecht, sobretudo em Écrits sur le Théâtre. Didi-Huberman vai pensar de forma impressionante o dilema, ao propor uma comparação entre o tratamento imagético dado por Lanzmann em Shoah e o longo filme de Godard, Histoire(s) du cinéma, uma longa reflexão sobre a imagem cinematográfica. Os dois filmes apresentam analogias surpreendentes: a longa extensão, que extrapola de muito os limites do cinema comercial, além do fato aparentemente circunstancial, mas de relevo estrutural, de que ambos se fazem acompanhar de um suplemento textual livresco, remetendo a uma pretensão análoga de desempenhar um papel (literal) reflexivo-crítico.

Godard não se furta a utilizar as imagens de arquivo dos campos de concentração, embora diga enfaticamente que o cinema fracassou em sua missão maior ao deixar de filmar o Holocausto: “o cinema não soube cumprir o seu papel”. Ele utiliza as cenas de arquivo justapondo-as com outras do cinema, por exemplo, clássico hollywoodiano. É por meio de uma estética da montagem, e pela leitura de Godard, que Didi-Huberman vai poder formular uma teoria das imagens-lacuna, não plenas, nem absolutas, mas apenas imagens. Um exemplo instigante, que parece relançar o debate, necessariamente sem resolvê-lo, poderá servir para concluirmos esta apresentação. Godard, em Histoire(s) du cinéma, justapõe as imagens tomadas por George Stevens de Buchenwald-Dachau em 16 milímetros, utilizando película Kodachrome (confiadas a Stevens para experimentá-las – são provavelmente das primeiras imagens a cores de que se tem notícia), com uma cena de Um lugar ao sol (1951), dirigido pelo mesmo George Stevens, alguns anos após a filmagem de Dachau, que mostra Montgomery Clift e Elizabeth Taylor em cena idílica típica do erotismo hollywoodiano, Taylor de maiô, com Clift deitado em seu colo. A conexão entre os fotogramas vai além do fato de haverem sido feitas pelo mesmo homem: há todo um jogo de inclinações de corpos que unem as duas séries de imagens ao mesmo tempo mantendo a abissal distância que as separam, como aponta Didi-Huberman:.

E se George Stevens não tivesse utilizado o primeiro filme em 16 em cores em Auschwitz e Ravenbrück [Godard se engana: trata-se de Buchenwald-Dachau], jamais sem dúvida a felicidade de Elizabeth Taylor teria encontrado um lugar ao sol.” O que esta montagem faz pensar é, portanto, que as diferenças postas em jogo pertencem à mesma história da guerra e do cinema: será preciso simplesmente que os aliados ganhem a guerra real para que George Stevens possa retornar a Hollywood e a suas historinhas de ficção. É uma “história no singular” que é contada aqui, pois os cadáveres de Dachau permanecem inseparáveis do olhar de testemunha que Stevens dirige também ao corpo de Elisabeth Taylor – mesmo que seja sob o modo do impensável, de que Godard constrói aqui a hipótese –; são “histórias no plural”, pois os dois momentos procuram constantemente se ignorar, quando eles debatem juntos na mesma “tragédia da cultura".

A imagem crítica, a imagem-lacuna, indicia por meio da montagem uma articulação oculta e propriamente “impensável”, mas irresistível, que esvazia a imagem hollywoodiana, comunicando-a com o seu reverso e condição de possibilidade. É este tipo de articulação que Didi-Huberman chama de dialética, na esteira do Benjamin de Paris, capital do século XIX, mas uma dialética que não sintetizaria, que não fundiria nada. A articulação entre imagens é precisamente o irrepresentável a que ambos os campos da polêmica parecem se referir. De forma análoga, sem pretender resolver a polêmica, no contexto estrito desta apresentação, esta montagem de imagens, precisamente articulatória, pode quem sabe relançar a discussão sobre a representação do irrepresentável, e, mais especificamente, sobre a representação do Holocausto judaico.

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