O luto entre clínica e política, de Carla Rodrigues

 

Carla Rodrigues. O luto entre clínica e política: Judith Butler para além do gênero. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2021.

 

<style="text-align: justify;">A força do novo livro de Carla Rodrigues, O luto entre clínica e política: Judith Butler para além do gênero, se mostra, antes mesmo do próprio livro, na dedicatória: “Este livro é dedicado aos meus mortos, aqueles que carrego vivos comigo”. Na verdade, podemos dizer que começa ainda mais cedo, nas belíssimas epígrafes cuidadosamente escolhidas: “Só o que morreu é nosso, só é nosso o que perdemos”, de Jorge Luis Borges, precedida de: “quem sobrevive / é sempre / outro”, da poeta Danielle Magalhães. <style="text-align: justify;">Essa força é resultado de um livro que vem se escrevendo em Carla Rodrigues há cerca de vinte anos. Mas o acontecimento que precipitou a decisão de transcrever essa escrita para o papel foi o velório de Marielle Franco em 15 de março de 2018. Isso porque “o trabalho de luto por Marielle Franco fornece um paradigma para pensar a distribuição desigual de luto público, mais uma, talvez a mais aguda desigualdade na sociedade brasileira” (p. 14). Além disso, Carla chama a atenção para a concepção de temporalidade mais ou menos implícita no vocabulário geralmente mobilizado em torno do luto, que evoca, em geral, termos como “processo, trabalho, elaboração”, insinuando um tempo mais ou menos linear, quando o luto parece exigir outra temporalidade, mais errática e mais circular. “De modo muito peculiar, os mortos reivindicam dos vivos uma atualização no/do tempo”, na medida em que “a singularidade como o sujeito responde a cada um dos lutos que realiza ao longo da vida e o modo como um novo trabalho de luto convoca e atualiza lutos anteriores. São lutos iguais e diferentes ao mesmo tempo [...]. A perda é de outro objeto, mas ao sujeito cabe de novo se deparar com a falta e o vazio instaurados por cada perda, uma a uma. Há um elemento familiar na experiência e há algo de infamiliar a cada nova perda.” (p. 16).

Sempre atenta ao presente, ao tempo do agora, a autora aborda que “a radical transformação promovida pela Covid-19 nas formas de homenagear os mortos pode ser indicação de que a pandemia talvez venha a ter força para estabelecer outro modo de morrer, uma das formas de perceber o fim de um mundo” (p. 18).

Carla Rodrigues é uma pensadora brasileira. Uma pensadora fortemente marcada pela filosofia, especialmente por Jacques Derrida e por Judith Butler, pelo feminismo e pela Psicanálise. Esse enquadre é importante para situar porque seu livro não é “sobre Butler”, mas “com Butler”. No Brasil, é bastante comum reduzirmos a experiência intelectual da autora estadunidense aos estudos de gênero, que funcionariam como núcleo de seu pensamento e de sua obra. Trata-se de um curioso viés, na medida em que o tema do gênero ‒ aliás, desconstruído por Butler há mais de uma década ‒ constitui apenas um capítulo de sua vasta obra ético-política. Como afirma Rodrigues: “ao longo dos últimos vinte anos, Butler desenvolveu sua obra em torno do luto como um direito, como operador da distinção entre vida vivível e vida matável – separação que opera na naturalização das mortes –, e, sobretudo, em torno da perda como experiência de desamparo e despossesão, fundamentos para o reconhecimento da nossa interdependência e da nossa responsabilidade ética”. É justamente esse ponto que nos interessa, como psicanalistas atentos que somos à subjetividade de nosso tempo.

Butler aborda o luto a partir de uma leitura cruzada de dois clássicos freudianos: “Luto e melancolia” e “O Eu e o Isso”. Freud distingue, em 1917, o luto como processo finito “após o qual o sujeito recupera sua capacidade de refazer o investimento libidinal em um novo objeto”, ao passo que a melancolia seria um processo infinito, “em que a perda do objeto se transforma também numa perda do Eu, identificado com a condição de objeto perdido”. Conforme nota a filósofa, Freud, em 1923, passa a conceber o processo de internalização dos amores perdidos como “um aspecto crucial na formação do Eu”. Como adverte Rodrigues, “Butler se vale de Freud para reforçar o que já vinha sendo seu argumento central desde Subjects of Desire: o Eu é uma categoria instável, em permanente atravessamento pelo outro” (p. 69).

Já em O clamor de Antígona, de 2000, Butler confronta Hegel: “se, para o filósofo alemão, a morte é compreendida como o Absoluto”, Butler propõe um deslocamento da morte para o luto. Antígona funciona como um duplo paradigma: "por um lado, nem todos os mortos têm o mesmo direito de ser enlutados (...); por outro, nem todos os vivos têm o direito de reconhecer seus mortos” (p. 70). Ao fim e ao cabo, o que aprendemos com Butler, via Carla Rodrigues, é que há necessidade de “universalizar o direito ao luto e superar a hierarquia entre quem tem direito a ser enlutado e quem não tem, porque essa distinção enquadra certos modos de vida como inteligíveis e outros como não". Ou, como ela vai argumentar depois, essa é a distinção que separa humanos de não humanos. Há um movimento permanente de relação entre a vida e a morte, perceptível a partir do processo de luto como mecanismo de elaboração de todas as perdas que nos constituem. Essa relação entre vida e morte depende de "uma concepção de vida que não seja absoluta, mas interdependente, e de um conceito de morte que não esteja marcado pela noção de fim” (p. 70).

Nesse sentido, o luto deixa de ser uma categoria exclusivamente clínica e adquire também uma conotação política. Como escreve Rodrigues, 

Minha vida começa antes e continua depois de mim, de tal modo que a própria noção de indivíduo autônomo fica abalada. Somos feitos e desfeitos uns pelos outros, numa rede de relações que nos antecedem, das quais dependemos mesmo sem saber, e continuamos a existir em um trabalho de luto como política de memória (p. 71). 

Não basta dizer que todas as vidas importam: é preciso também entender “como se produz, sustenta-se e se move a distinção entre os corpos que importam e os corpos que pesam” (p. 71), seguindo aqui a ambiguidade da expressão Bodies that Matter.

Embora necessário, o movimento de “politizar o luto” não basta: urge ainda “pensar o que enquadra certas vidas como enlutáveis” (p. 76). A categoria de “precariedade” entra em cena, tornando-se então crucial, embora igualmente insuficiente. Para além da politização do luto e da categoria de vidas precárias, é preciso ainda mobilizar a noção de “enquadramento” (na plurivocidade do inglês “to be framed”): 

Pensar a precariedade, essa que acomete as mulheres, os negros, os pobres, os gays, as lésbicas, as pessoas trans, também é insuficiente sem refletir sobre qual é a condição de possibilidade de enquadrar exatamente essas vidas como precárias e outras não. Enquadrar o enquadramento é outra maneira de dizer que a tarefa é pensar não apenas na precariedade de cada uma dessas formas de vida, mas também no que sustenta a condição de possibilidade de manter essas vidas precárias (p. 76).

No momento em que vivemos, nessa devastadora experiência de morte elevada à última potência, o livro de Carla Rodrigues não é apenas um presente, mas uma necessidade. Afinal, after all that has been said and done, after all that we've been through, quem ainda tem medo de Judith Butler?

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