Ram Avraham Mandil

Acredito ser possível destacar algumas respostas freudianas para o que se apresenta como um enigma para o masculino, sobretudo este presentificado pelo encontro com o Outro sexo. Duas dessas respostas são apresentadas por Freud nos estudos sobre a psicologia da vida amorosa, como verdadeiras condições para a sexualidade masculina. Uma terceira será apresentada vinte anos mais tarde, à luz do interesse freudiano pelo tema da sexualidade feminina.

É na sua segunda contribuição para uma psicologia da vida amorosa que Freud chama a atenção para um sintoma que pode ser considerado um dos enigmas do masculino. Introduz seu estudo a partir da “impotência psíquica”, caracterizada como “recusa dos órgãos executores da sexualidade de levar a cabo o ato sexual”,[1] especialmente com certas mulheres, ainda que tenha todas as condições para realizá-lo e mesmo a disposição para tal.

Freud relaciona essa impotência seja a alguma característica do objeto sexual, seja à presença de uma força contrária inconsciente que estaria interferindo sobre a vontade consciente. Esses dois fatores o levam a associar a impotência a alguma fixação incestuosa, não superada, sobre o objeto sexual, o que acabaria por levantar uma barreira contrária à realização do ato, que passa, assim, a tomar o sentido de uma transgressão, por exemplo, à lei do incesto.

Na verdade, segundo Freud, o que caracterizaria esse objeto sexual interditado é a sua supervalorização psíquica. É a idealização da figura feminina que acaba por fazer com que o objeto sexual passe a ser considerado como um objeto proibido, a lei do incesto estendendo-se assim também sobre a mulher que foi buscada fora do âmbito familiar.

Um outro aspecto chama a atenção de Freud nesse artigo. Dada a universalidade das condições que conduziriam à impotência psíquica (inibições ao longo do desenvolvimento da libido, as dificuldades de convergência das correntes afetivas e sensuais, as vicissitudes da substituição da figura da mãe por novos objetos sexuais), como não pensar numa impotência generalizada?

Saídas masculinas para a impotência

Se, por um lado, Freud encontra as marcas da impotência psíquica na cultura, se chega a reconhecer nas conquistas culturais a expressão de satisfações buscadas fora do ato sexual, por outro lado, também procura responder, sobre o fundo da impotência generalizada, à questão de como um homem pode não ser impotente, ou seja, de como um homem pode encontrar uma saída distinta daquela que se fixou no seu sintoma como gozo da impotência.

Uma primeira resposta lhe vem da própria clínica. A típica divisão da escolha de objeto masculina, divisão entre uma mulher respeitada, a Dama, mas com a qual o homem experimenta gradativa diminuição da atração sexual, e outra mulher, aos seus olhos moralmente depreciada, a Dirne, mas diante da qual sente recuperado o seu desejo sexual, indicaria, para Freud, uma primeira saída diante dos impasses da potência psíquica masculina.

É nesse sentido que devemos inserir a solução “desagradável e paradoxal” que Freud, em seguida, aponta para essa forma de recusa diante do Outro sexo, representada pela impotência. Contra essa inibição de sua potência psíquica, afirma Freud, o homem deve “sobrepujar seu respeito pelas mulheres e aceitar a ideia do incesto com sua mãe ou irmã”.[2]

Sobrepujar o respeito pelas mulheres

Se a supervalorização da figura feminina é uma fonte de inibição diante do Outro sexo, se é próprio a qualquer idealização o erguimento de uma barreira que torna o objeto idealizado inacessível, por conseguinte o acesso a esse objeto, na perspectiva de Freud, só pode ser viável se percorrido o caminho oposto, se for tomada a via de depreciação do objeto valorizado, a via contrária à idealização. Na verdade o que Freud nos indica é que esse caminho muitas vezes só pode ser tomado quando, ao mesmo tempo, o homem introduz uma outra mulher, a seus olhos moralmente inferior à mulher proibida. Fica dessa forma evidenciado o lado “desagradável e paradoxal” dessa solução: caso um homem deseje ser realmente “livre e feliz no amor”, para ficarmos com os termos de Freud, a escolha desse objeto feminino deve recair sobre uma mulher situada fora dos seus ideais.

Há um outro modo de aprender essa via da depreciação, um outro sentido possível para esse caminho que leva à superação do respeito pelas mulheres. Antes de enxergarmos aí qualquer traço de misoginia, é preciso considerar o que vem a ser esse “respeito” que reveste a mulher idealizada. Seguindo algumas indicações propostas por Jacques-Alain Miller,[3] o respeito, tanto quanto o pudor, pode ser considerado como um modo de velar a castração. O respeito, sob certos aspectos, indica que há algo que não se deve tocar, que há algo diante do qual alguém deve deter-se. O respeito que acompanha a supervalorização de uma mulher, poderia também estar indicando que o sujeito busca manter distância diante do que estaria presentificado pelo feminino, isto é, a castração. Manter a distância, recusar ir adiante seria um modo de encobrir a ausência, a falta no Outro, com o manto do respeito. Poderíamos chegar a dizer que lá, onde não há nada, há agora o respeito.

“Sobrepujar o respeito pelas mulheres”, parece ser, portanto, uma indicação freudiana de que o homem deve não apenas caminhar no sentido contrário à idealização do objeto feminino, mas também no sentido da subjetivação da castração.

É nesse contexto que pode ser entendida a depreciação como condição para a sexualidade masculina. É a indicação, antes de mais nada, de que a condição de acesso a uma mulher deve tomar como ponto de partida uma mulher como não-toda. Uma mulher “depreciada”, para ficarmos com os termos de Freud, é uma mulher em que, antes de mais nada, a falta está colocada de início. Por outro lado, seguir a direção oposta ao respeito pode ser compreendido como um consentimento à castração, pode ser tomado como um sim à falta no Outro, que a impotência, como uma modalidade da recusa, buscaria apagar.

…e aceitar a ideia do incesto

Há, no entanto, uma segunda condição para a superação da impotência psíquica apontada nesse texto de Freud. Para superar a divergência entre amor e desejo, encontrada na vida sexual masculina, um homem deve ainda “aceitar a ideia do incesto com sua mãe ou irmã”. Para Freud um homem deve admitir a representação do incesto caso queira usufruir de sua potência masculina. A segunda condição para a sexualidade masculina evoca, portanto, uma transgressão. Para poder desejar, um homem deve aceitar a ideia de que há, no desejo, algo que o vincula a uma lei, a uma interdição.

Fundamentalmente a lei do incesto seria uma indicação — para continuarmos com as indicações de Miller — que a mulher desejada é, estruturalmente, a mulher de um Outro. Aceitar a ideia do incesto como condição para o desejo é, portanto, reconhecer que, para desejar uma mulher, um homem deve se confrontar à ideia de uma infração à lei, reconhecer, em última análise, que seu desejo caminha em direção contrária, por exemplo, ao sentimento de culpa.

Na verdade, nessa íntima relação entre o desejo e a lei, o que se verifica é que o sujeito necessita da interdição do Outro para poder encontrar as coordenadas de seu desejo. Aceitar a lei do incesto indicaria, mais que uma transgressão, a necessidade de admitir o objeto feminino como pertencente ao campo do Outro. De certo modo estaria aí evocada uma outra condição da sexualidade masculina. Do mito freudiano do pai primevo às modulações da infidelidade e do ciúme da vida cotidiana, o que se indica é que a mulher desejada é, por estrutura, “a mulher de um Outro”.

A presença do “terceiro prejudicado”, daquele que teria direito à mulher em questão (cuja encarnação é condição para a realização de tantas fantasias), indicaria que, no nível do gozo, é como o que escapa ao Outro, é como não-toda submetida à ordem do significante, é que uma mulher poderia ser reconhecida como tal diante do desejo masculino.

O controle sobre o fogo

Vinte anos mais tarde, envolvido com o tema da sexualidade feminina, Freud parece apontar para uma outra saída diante do enigma do Outro sexo. Em seu artigo A aquisição e o controle do fogo (1932),[4] no qual o fogo nos é apresentado como “símbolo da libido”, metáfora do gozo da pulsão, Freud lança a hipótese segundo a qual, para adquirir um controle (Gevinnung) sobre o fogo — ponto de partida de várias conquistas culturais da humanidade — o homem teve que renunciar ao gozo de buscar apagar o fogo com a urina.

Seguindo uma indicação de Pierre Bruno na apresentação do número 4 da Revista Barca!, em que sugere tomar os enigmas do masculino como efeitos produzidos pela tentativa de tratar o gozo através da universalização do significante fálico, é possível fazer uma releitura desse artigo de Freud exatamente desde essa perspectiva de generalização do falo que seria própria do masculino. Em outras palavras, tratar o gozo a partir do significante fálico produz enigmas para o masculino, isola verdadeiros “pedaços de real” diante dos quais o sujeito surgiria como tentativa de significação.

É nesse contexto que podemos ler, nesse gozo de buscar apagar o fogo com um jato de urina, como tentativa de universalização de uma função fálica sobre as brasas da libido.

A clínica freudiana do “jato de urina”

O interessante é que, a partir dessa imagem freudiana do jato de urina, que busca apagar o fogo ou, para colocarmos em termos lacanianos, do significante fálico visando a universalização do gozo, é possível fazer um retorno a algumas passagens da obra freudiana em que essa questão parece estar presente.

Assim é, por exemplo, no sonho recorrente de Dora da casa em chamas. No momento em que sua mãe procura salvar a caixa de joias do incêndio, Dora ouve a voz de seu pai — alguém que sempre temia o fogo — dirigida à sua mãe: “recuso-me a deixar que eu e meus dois filhos sejamos queimados por causa de sua caixa de joias”.[5] A caixa de joias da mulher circundada pelo fogo, imagem de um gozo Outro como devorador, tem, por parte do pai de Dora, uma única resposta: a recusa, recusa essa que não podemos deixar de associar à caracterização fantasmática do pai como “ein unvermögender Mann”, um homem impotente.

A antítese entre a água e o fogo também pode ser encontrada nas elaborações de Freud sobre a enurese e sua relação com a masturbação. A interdição às brincadeiras com o fogo por parte das crianças decorreria de um saber sobre a relação entre o gozo fálico e o gozo Outro. Sonhando com fogo, outro modo de evocar a excitação sexual, as crianças tentarão apagá-la com a urina, eis, para Freud, o sentido da enurese noturna e de seu caráter autoerótico.

Freud também aponta como prolongamento do “erotismo uretral”, outro modo de referir-se ao gozo fálico, as formações de caráter que levam à “ambição” ou à “megalomania”, formações essas situadas no programa de universalização do erotismo fálico.

O jorro de urina que apaga o fogo, signo de grandeza, também é encontrado nos exemplos literários, seja no romance de Gulliver, o gigante extinguindo o incêndio de Lilliput com seu jato de urina, seja noGargantua, de Rabelais, o personagem sentado sobre a Notre-Dame de Paris e urinando sobre a cidade num ato de vingança contra os parisienses.

Mas é num sonho, relatado em sua Interpretação dos sonhos, que encontramos a indicação de uma limitação da ação fálica. Sobre uma colina, diante de um buraco que se assemelha a uma privada, em cuja borda vê pedaços de fezes, Freud sonha que está urinando sobre o assento, limpando com a urina as fezes aí depostas (experimentando um prazer que se expressa em latim, “Afflavit et dissipati sunt”.[6] O sonho, no entanto, conclui-se de forma enigmática: “um longo jato de urina deixou tudo limpo; as massas de fezes saíram facilmente e caíram na abertura. Era como se, ao fim, ainda sobrasse alguma coisa”.[7]

A renúncia ao gozo

A evocação de Hércules limpando as estrebarias de Augias permite que retornemos ao artigo de Freud a respeito do controle do fogo. Uma outra postura aí se enuncia, um outro posicionamento dos homens diante do fogo parece indicado, um posicionamento que não visaria mais apagar o fogo, mas tomar posse dele, sem que essa atitude aponte para a sua extinção. É como se Freud reconhecesse que essa universalização da urina sobre a brasa é uma resposta ao fogo interpretado como algo devorador, como algo destrutivo por si. A impotência, portanto, estaria diretamente vinculada a essa “alguma coisa” que ainda sobra, a esse resto sobre a borda do assento que não se dissipa com o falo.

O gozo da impotência, podemos dizer, é o que, ao final, leva o sujeito à divisão do “ser ou não ser capaz de?” um gozo perpetuamente relançado a partir do que não se dissipa com o sopro fálico.

É no mito de Prometeu que Freud encontra suporte para um novo posicionamento perante o fogo.[8] A hipótese freudiana é a de que, para obter controle sobre o fogo, o homem teve de renunciar ao gozo de buscar apagá-lo com sua urina.

Freud não o diz, mas podemos inferir que a renúncia ao gozo de apagar o fogo com a urina parte de uma mudança da posição do sujeito diante do fogo, uma verdadeira mudança de interpretação diante do enigma-fogo. Só renuncio à ideia de apagar o fogo se não considero o fogo unicamente como fonte de destruição, em outras palavras, se não interpreto o fogo como “vontade de gozo”.

O mito de Prometeu, de certo modo, enunciaria para Freud uma nova posição do sujeito diante do fogo da libido. O fogo como algo necessário, por exemplo, para a instauração da cultura.

Nesse mito ressurge a vinculação entre o desejo e a lei. O “desejo de fogo” de Prometeu, se assim podemos dizer, o desejo de “tomar posse” sobre o fogo — não seria esse “Gevinnung” freudiano um equivalente da subjetivação? — também está associado a uma transgressão, a um crime contra aqueles a quem é garantida toda a satisfação a que os homens têm que renunciar.

Freud encontra também no modo como Prometeu transporta o fogo — dentro de um pau oco, dentro de um “tubo-pênis” — a imagem de uma nova relação do falo com a libido. Aqui, podemos dizer, não estamos diante de um falo que busca apagar o gozo Outro, mas diante do falo como um autêntico semblante, do falo como um significante-oco, numa relação de extimidade com o fogo.

De certo modo podemos dizer que Freud acrescentaria nesse artigo uma nova perspectiva para o enigma do masculino diante do Outro sexo. À ideia de sobrepujar o respeito pelas mulheres e de aceitar a transgressão simbólica como consultiva do desejo, Freud acrescenta uma outra condição: a renúncia a esse gozo que visa universalizar o Outro sexo através da significação fálica.

O enigma do masculino perante o fogo torna-se, assim, sob certos aspectos, uma questão sobre os fins da psicanálise. Diante do fogo, ultrapassar a visão limitada que só enxerga seu caráter devorador e aí produzir uma subjetivação. Diante do fogo, poupar o fogo, conduzi-lo consigo e submetê-lo ao próprio uso.

Dito de outro modo, diante do fogo, atravessar a fantasia de que o que resta é evitar ser destruído por suas chamas; e mais, diante do fogo, reconhecer o falo como um semblante e não como uma mangueira; e, por fim, poder reconhecer nesse fogo, instalado no oco do significante, a causa do próprio desejo.

 

Derivas analíticas agradece a Ram Mandil e a Angelina Harari, diretora da revista Opção Lacaniana, por autorizarem a republicação deste artigo. O masculino diante do fogo foi publicado originalmente na revista Opção Lacaniana n. 18, de 1997.

 

NOTAS

Texto apresentado na II Jornada da EBP – Minas Gerais, em outubro de 1996.

Ram Avraham Mandil é professor adjunto da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais e pesquisador do LIPSI (Núcleo de Pesquisas em Literatura e Psicanálise). Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). Autor do livro Os efeitos da letra. Lacan leitor de Joyce. Rio de Janeiro: Contra Capa; UFMG, 2003.

[1] FREUD, (1912) 1970, p. 163.

[2] FREUD, (1912) 1970, p. 169.

[3] MILLER, 1994, p. 86.

[4]FREUD, (1932 [1931]) 1970.

[5] FREUD, (1905 [1901]) 1970, p. 61.

[6] “Ele soprou e elas se espalharam”, frase cunhada em homenagem à destruição da poderosa armada espanhola por uma tempestade no momento em que se preparava para enfrentar a frota inglesa.

[7] FREUD, (1900-1901) 1970, p. 501.

[8] O titã Prometeu recupera o fogo que havia sido retirado dos homens por Zeus como punição por ter sido enganado pelo mesmo Prometeu num rito de sacrifício aos deuses. Prometeu rouba o fogo de Zeus, transportando-o num caule de pau oco. Como castigo, é acorrentado a um rochedo e todos os dias uma ave vem comer-lhe uma parte do fígado, sempre regenerado.

 

REFERÊNCIAS

FREUD, S. A aquisição e o controle do fogo (1932 [1931]). In: ______. Novas conferências introdutórias sobre psicanálise e outros trabalhos. Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1970. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 22).

FREUD, S. A interpretação dos sonhos (1900-1901). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996.(Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 5).

FREUD, S. Fragmento de análise de um caso de histeria (1905 [1901]). In: ______. Um caso de histeria, três ensaios sobre a teoria da sexualidade e outros trabalhos (1901-1905). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1970. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 7).

FREUD, S. Sobre a tendência à depreciação na esfera do amor (1912). (Contribuições à psicologia do amor II). In: ______. Cinco lições de psicanálise, Leonardo da Vinci e outros trabalhos (1910[1909]). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro, Imago, 1970. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 11).

MILLER, J.-A. De mujeres y semblantes. Cuadernos del passador, Buenos Aires, p. 86, 1994.

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