PESO MUERTO:

O DUPLO COMO SEMELHANÇA INFORME NA PERFORMANCE

 

 

MARIANA ROCHA [1]

 

Me pruebo en el lenguaje que compruebo el peso de mis muertos. (Alejandra Pizarnik)

 

Meu trabalho artístico reflete sobre temporalidade, contemplação e subjetividade por via de experimentações com a matéria, o corpo e o espaço, visando à construção e à irrupção de novas temporalidades. Em diversos trabalhos na última década, enquanto "ser-para-a-morte", utilizei a morte do outro para tentar entender a minha própria finitude[2]. Meu trabalho prático e acadêmico se mistura na lida com questões existenciais relacionadas com a identidade, finitude, violência e necroestética a partir de uma perspectiva pluridisciplinar das artes visuais, da poesia, da filosofia, das narrações cinematográficas e da literatura. Meu trabalho abrange desenho, performance, fotografia, vídeo e escultura. Interesso-me pelo conceito de performance como episteme, como conhecimento incorporado que constitui um domínio específico da linguagem e da razão, bem como cria um espaço para a experimentação artística como método de pesquisa teórica. Neste texto, abordarei alguns trabalhos artísticos que tratam da temática do duplo, intercalando-os com reflexões teóricas que permeiam minha produção.

A palavra grega soma significava originalmente cadáveres. Gradualmente, passou a significar corpo vivo e corpo inanimado. O corpo é a coisa morta ou aquele que carrega a morte. O “não ser” ou “o não mais ser” é guardado dentro do invólucro da carne. A morte representa certa alteridade, um desconhecido face a qualquer discurso ou texto, e está inscrita na autocompreensão daquele ainda vivo.


Em Preparação para o abutre, de 2013, conecto-me a outra artista pelas pontas de nossos cabelos. Enquanto uma permanece de pé, olhos fechados, no meio de um círculo imaginário que tem como raio o comprimento dos dois cabelos, a outra gira por horas no entorno, enforcando lentamente a mulher do meio.

Partindo do pressuposto de que o nosso corpo frágil encara o cadáver como seu duplo, muito já foi discutido sobre essa relação em várias áreas do conhecimento, principalmente na filosofia e na arte. Aristóteles faz uma analogia entre o duplo criado através de uma antiga punição etrusca e a situação entre corpo e alma, onde o corpo mortal aprisiona a alma. A tortura etrusca supracitada é descrita por Virgilio em Eneida, VIII 483-488. O castigo imposto pelo rei etrusco Mezentius aos soldados de Eneias era cumprido amarrando um vivo a um morto de forma espelhada. Um homem ou mulher vivos eram amarrados a um cadáver em decomposição, face com face, boca com boca, membro com membro, com uma precisão obsessiva em que cada parte do corpo correspondia à sua contraparte em decomposição. Acorrentado ao seu duplo podre, o homem ou a mulher se pereciam. Para evitar a fome da vítima e garantir que os laços entre vivos e mortos fossem totalmente estabelecidos, os ladrões etruscos continuavam a alimentar a vítima adequadamente. Quando os dois corpos apodreciam, os etruscos consideravam apropriado desatá-los. Esse é um bom exemplo de como o ser humano entende e usa a morte como forma de controle e poder.

 


No trabalho Vítima da circunstância, realizado em 2016, amarro-me a uma boneca inflável pelos punhos, braços, coxas, canelas, cintura e pescoço com fita isolante preta. Ficamos espelhadas, costas com costas. Um embate de duas horas se inicia entre os corpos para que a dominante dite os movimentos. A liberdade de uma se dá através da destruição da outra, e as peles se rasgam até se soltarem.

O corpo vítima de violência será irreversivelmente um corpo deslocado. As imagens produzidas nessas circunstâncias constituem o emblema mais poderoso para o exercício do medo, seja através do amálgama de nigredo criado pela punição estrusca, seja através das mortes violentas hodiernas causadas no exercício da necropolítica. Os cortes que transformam o corpo a partir da fragmentação das partes e da redistribuição delas funcionam como um deslocamento da sua ordem natural, criando um tipo de anomalia na qual se constitui um novo sistema de significados. Esse outro corpo implica uma alteração da gramática corporal convencional. É um corpo desmontado que traz uma aniquilação de toda ordem corporal. Ele é apenas uma pilha de peças, vestígios, ruínas do que um corpo já foi.

Pressupondo que a expressão máxima da soberania, em grande medida, reside no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer, Achille Mbembe propõe que as formas contemporâneas que subjugam a vida ao poder da morte (necropolítica) reconfiguram as relações entre resistência, sacrifício e terror. As noções de necropolítica e necropoder são propostas para abarcar “as várias maneiras pelas quais, em nosso mundo contemporâneo, as armas de fogo são dispostas com o objetivo de provocar a destruição máxima de pessoas e criar ‘mundos de morte’, formas únicas e novas de existência social, nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o estatuto de ‘mortos-vivos’”[3].

Em um jogo de anacronismos, as imagens atuais de cadáveres mutilados reúnem diversas temporalidades: das iconografias sacrificiais pré-hispânicas registradas em mitos e códices que expõem a dimensão iconofílica de uma cultura, passando pelos martírios barrocos que tornaram o martírio e os fragmentos corporais como objetos de representações pedagógicas e devotas às alegorias neobarrocas do medo com as suas repetidas aparições espetacularizadas.

O que proponho com o meu trabalho artístico é uma espécie de meditatio mortis ou uma autópsia: uma reflexão sobre a matéria mortal de nossos corpos e da forma como tento entender a minha própria aniquilação. O medo de a carne apodrecer traz a putrefação como elemento-chave dessa escritura e o cadáver como um duplo, uma imagem do futuro. Estou interessada na identificação do ser com a sua matéria, peso e transformação. Tentando ser contemporânea à minha própria morte, performei reflexões e exercícios que ajudaram a aumentar a minha compreensão sobre o tempo, o espaço, o sacrifício e a decadência. O meu corpo e a sua ausência são as bases do meu trabalho.

 

 

É possível performar uma autópsia em alguém ainda vivo? Como carregar nosso próprio cadáver? Tentando responder a essas questões, na performance Solo, de 2015, posiciono-me face a um espelho sem moldura, de 1,80 x 0,60 metros, com formato retangular de tampa de uma caixa onde cabe o meu corpo e que se mantém de pé apoiado somente em minha testa por três horas. Eu e o espelho temos o mesmo peso e permanecemos imóveis durante toda a performance.

Em performances recentes, tenho usado o meu corpo e corpos de outras mulheres vivas para tratar de questões referentes a mulheres assassinadas, dando voz a esses corpos, como uma resistência post mortem. Trata-se de um desdobramento da minha investigação sobre os circuitos que operam em conexão com a produção e circulação de violência e morte, e sua relação com a história econômica e política da colonização, violência social e da pobreza. Tenho trabalhado com o corpo feminino em um contexto de morte, tortura, aprisionamento patriarcal e vulnerabilidade, em que as noções de identidade colocam juntos corpos torturados e desorganizados, vítimas e heroínas híbridas.

 

 

Em Finita, de 2019, dez mulheres escrevem com caneta preta a palavra “morta” em seus rostos, até que eles se tornem completamente pretos. Durante a realização do trabalho prático, deparei-me com o problema da representação dos efeitos da violência, especialmente sobre o corpo feminino. No caso da violência de gênero, que é o caso do feminicídio, como podemos mostrar a violência em ação? Como mostrar as mutilações nos corpos que as sofrem?

“A violência explícita se mostra, em geral, nos corpos das vítimas que são apropriados, de certa forma, com um objetivo político de denúncia; no entanto, em muitas ocasiões, a apropriação dessas imagens das vítimas pelos artistas é interpretada como um uso ilegítimo do sofrimento de outras pessoas, como pornoviolência”[4].

Muitas vezes, uso a performance como estratégia estética, como possibilidade de resistência. O corpo que se apresenta faz outros corpos aparecerem: os corpos desaparecidos durante guerras e ditaduras, os corpos enterrados em valas comuns, vítimas de feminicídio, corpos censurados, corpos castigados por não se adequarem às normas de sexo-gênero. O corpo que aparece, que se apresenta a outros, cita e reitera outras presenças.

“Em circunstâncias de extrema violência, (...) as artimanhas do necropoder são capazes de transformar a vulnerabilidade natural do sujeito em um estado inerme que limita drasticamente suas decisões e ações, ou seja, sua própria humanidade”[5].

A partir do feminicídio como exemplo, em sua acepção mais básica como o assassinato de mulheres cometido por homens, temos um conceito político que assinala uma posição de subordinação, desigualdade, marginalidade e risco em que se encontram as mulheres. A destruição física das mulheres e a crueldade empregada no exercício da morte chegam muitas vezes a ser teatral. A necroestética, a disposição e apresentação desses corpos profanados, muitas vezes tratados como bonecas anatômicas do século XVIII, é sempre o que mais me impressiona e o que me levou a aprofundar as minhas investigações sobre o tema no meu doutorado. Matar nunca é o bastante; sobre o corpo vem estampada a sentença de morte. O corpo, em sua violação, é a mensagem.


 

Referências:

 

[1] Artista visual, pesquisadora e advogada. Atualmente, doutoranda na European Graduate School na área Pensamento literário, musical e visual, além de ser pesquisadora no Programa de Estudos Independentes (PEI) no Museu de Arte Contemporânea de Barcelona (MACBA). Para conhecer outros trabalhos, acesse http://www.mariana-rocha.com/

[2] Para Martin Heidegger (1927), a transição para o não mais ser presença retira a possibilidade de fazer a experiência dessa transição e de compreendê-la como tendo feito essa experiência. No que tange à morte dos outros, o findar da presença é objetivamente acessível.

[3] MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 edições, 2019. p. 71.

[4] ROSAURO, Elena. Historia y violência em América Latina. Prácticas artísticas, 1992-2012. Murcia: Cendeac, 2017. p. 13. (Tradução livre)

[5] GARZA, Cristina Rivera. Los Muertos Indóciles. Necroescritura y Desapropriación. Mexico: Tusquet Editores, 2013. p. 35. (Tradução livre)

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