Uma vida escrita com literatura, psicanálise e pintura

Entrevista com Ruth Silviano Brandão

  

 

Em meados dos anos 1970, época em que poucos professores de literatura se aventuravam pelos caminhos da psicanálise – e em que a própria psicanálise era pouco difundida em Belo Horizonte –, Ruth Silviano Brandão iniciava dois projetos que definiriam os rumos de sua vida: um tratamento analítico e um mestrado na Faculdade de Letras da UFMG. Tais experiências levariam a professora a se interessar pelo estudo da psicanálise e, futuramente, a fundar naquela mesma Universidade uma linha de pesquisa inédita, intitulada Literatura e Psicanálise.

Em entrevista concedida a Cecília Lana para Derivas, Ruth Silviano Brandão conta como literatura e psicanálise inevitavelmente se entrelaçaram em seu percurso profissional – percurso que Ruth chama de “caminho esburacado” e que, apesar de aparentemente fragmentado, foi sempre guiado pela paixão literária. Segundo Ruth, cada pessoa encontra sua própria maneira de fazer o diálogo entre psicanálise e literatura. Ruth partiu do interesse pela construção das personagens femininas na literatura e acabou chegando a investigações acerca da irredutibilidade da escrita, como Lacan, que trilhou um caminho do simbólico ao real. Após alguns anos como pesquisadora e professora de literatura, Ruth se tornou escritora, com vários livros de ensaios publicados, além daqueles de poesia e ficção. Mais recentemente, após a aposentadoria e o final de sua análise, “sem nenhum compromisso com nada nem ninguém”, passou a se dedicar também à pintura de telas.

 

 

Derivas Analíticas: Quando você começou a se interessar por literatura?

RSB: A leitura e a escrita me encontraram cedo na vida. Impossível marcar datas. Na infância, lendo Monteiro Lobato e outros escritores, ouvindo meu pai, médico, amante da literatura, recitar Guerra Junqueiro, com o entusiasmo de um ator. Mais tarde, no curso clássico (havia curso clássico e científico, no colegial), em fins dos anos 1950, hesitei entre literatura e filosofia, optando pela primeira, já sabendo que uma estava misturada à outra, pois a literatura recebe todos os saberes, as fantasias, as loucuras e os encena. Tendo que optar entre as duas, para juntá-las de novo, mais tarde, fiquei com a filosofia guardada no bolso. Aos 19 anos, fiz vestibular para o curso de letras, mas não tinha, àquela época, nenhuma expectativa de me tornar professora, muito menos de me tornar escritora. Tudo veio, me parece, ao acaso, segundo as oportunidades que surgiram, como meu primeiro concurso, feito para a UFMG, que tive a coragem de enfrentar (com ajuda da psicanálise, pois me achava absolutamente incapaz de vencer qualquer coisa na vida), mas já devia haver o desejo brotando forte, me empurrando, sem eu saber.

Derivas Analíticas: Como começou a se interessar pela psicanálise em sua relação com a literatura?

RSB: A articulação da literatura com a psicanálise se deu com minha primeira análise, com o Dr. Elias Haddad, de 1970 a 1975 ou pouco mais. Anos depois, em 1980, ele me convidou para dar aulas de literatura no Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG), o que durou por volta de cinco anos, até 1985. A análise e meu mestrado, cujo tema foi um livro de Adonias Filho, Corpo vivo, e o título da dissertação Corpo vivo: tessitura da violência, se entrelaçaram em direção à literatura com o suporte teórico psicanalítico. Meus laços não se desfazem, nesse campo das letras, das aletrias. Das alegrias. O que me levou a essa aventura foi a questão da violência e da redenção pelo amor, com um suporte mítico muito forte e com a presença dos temas do destino, do sacrifício e da saída de uma espécie de labirinto infernal, pela via do amor e a descoberta de um lugar utópico de felicidade e harmonia. Lembrando disso, agora me espanto com tanto sangue e luta dos livros de Adonias Filho e a atração que exerceram em mim, em minhas fantasias. E com tanta utopia também. Um outro texto literário que me causou um enorme impacto foi um soneto de Jorge de Lima Pavana para uma defunta infanta, que eu li e reli, escrevi sobre ele e reescrevi, obsessivamente. Carreguei essa menina estranha, meio morta meio viva, flutuando entre berço e tumba! Mórbido e belo. A escolha de textos e minha própria análise deram no que deram: uma efervescência vulcânica. A literatura escolhe seus amantes, atraindo seu olhar para páginas surpreendentes, em que se encontram, travestidos, seus enigmas que nunca se dão a ler. São da ordem do mistério.

 

 

Derivas Analíticas: Já existiam outros trabalhos sobre literatura e psicanálise no Brasil?

RSB: No Brasil, havia uma mistura teórica nada precisa, e, mesmo na Faculdade de Letras, as análises ligadas a leituras de ordem psicanalíticas estavam começando, com todos os tropeços inevitáveis. Nessa época, as teorias que permitiam a leitura literária pelo viés da psicanálise, pelo menos aquelas a que tive acesso, eram, além de Freud e Jung, ensaístas como Bellemin-Noël e Bruno Bettelheim, o estudo dos mitos e da antropologia de Lévi-Strauss: tudo junto, precisando ser costurado, o que nunca foi, claro! A experiência com os psicanalistas do CPMG foi fundamental para minhas reflexões nesse campo. Eu supunha neles um saber que me abriria as portas da psicanálise, quis acompanhar aulas teóricas no CPMG, mas me impediram, nunca soube por quê. Os supostos saberes deviam saber mais do que eu de meu suposto perigo para a sagrada psicanálise. Tempos de abertura, tempos de censura, de hierarquia.

Derivas Analíticas: Fale mais sobre o início de seus estudos psicanalíticos.

RSB: No início, quando fui dar aulas no CPMG, eu tinha um incômodo muito grande com o fato de as pessoas acreditarem que o diálogo entre a literatura e a psicanálise se resumia a uma análise patológica das personagens literárias. Eu achava que era preciso estudar mais literatura, com uma visão crítica e teórica mais abrangente, privilegiando-se o texto literário, tendo conhecimento das teorias da literatura, antes de qualquer abordagem que permitisse uma interface, em que a literatura não fosse apenas um pretexto para diagnósticos de personagens pelo viés psicopatológico. Em outras palavras, não me parecia que o melhor caminho fosse elaborar “patografias”. Com o tempo, os seminários interdisciplinares me levaram a flexibilizar meus conceitos, talvez um pouco rígidos. Aprendi muito com os psicanalistas, o que me ajudou a escrever sobre essa questão, em leituras várias, o que teve como resultado um livro, Literatura e psicanálise, publicado pela editora da UFRS, em 1996, e já esgotado. Cada vez mais interessada pela psicanálise, passei a frequentar alguns seminários sobre a obra de Freud, ministrados pelo psicanalista Antônio Ribeiro. Ele e sua família eram amigos meus e de minha família, e os seminários aconteciam em meu apartamento, com colegas e amigos que convidávamos. Tive contato com o Simpósio do Campo Freudiano, onde segui seminários, dei cursos, cheguei a ser membro por um dia somente, já que houve a dissolução do simpósio no dia seguinte: meus caminhos construídos em direção à psicanálise eram bem esburacados.

Derivas Analíticas: De lá para cá, como evoluíram os estudos sobre psicanálise e literatura? Você diria que, atualmente, as intercessões entre psicanálise e literatura se fazem menos do ponto de vista do simbólico – ou seja, que os trabalhos nessa linha tratam menos das semelhanças temáticas entre as obras literárias e a psicanálise, que se dedicam menos às análises “patográficas” de personagens – e privilegiam o ponto de vista do real – estudos sobre o irredutível da escrita, o resto?

RSB: O que de início me interessou foram as questões ligada ao simbólico, para, pouco a pouco, tentar entender o que seria o conceito de letra e de sinthoma. Uma de minhas parcerias mais constantes, nessa via dupla da literatura e psicanálise, onde os caminhos se bifurcam, foi minha colega e amiga, Lúcia Castello Branco, que se interessou desde o início pelo irredutível da escrita, o irredutível da letra. A tese da Lúcia no doutorado tratava da escrita feminina, da escrita do real. Só algum tempo depois, desde o início do que chamo uma experiência nessa dimensão psicoliterária, se posso assim dizer, é que fui me interessar pela vertente da letra. Minha outra experiência foi com a pintura, essa passagem da escrita à imagem, que marcou meu trabalho e minha vida. É o irredutível de minha escrita, aí onde ela se esgarça, fazendo quase desaparecer as ruminações neuróticas que tomaram conta de meu trabalho durante tanto tempo.

 

 

Derivas Analíticas: Entre 1985 e 1989, você fez doutorado na UFMG. Sua tese, publicada sob o título de A mulher ao pé da letra, era um estudo sobre a representação das mulheres, em livros escritos por homens, ou seja, sobre a personagem mulher vista pelo olhar dos homens. Por que você se interessou, desde o início, pela questão da mulher?

RSB: Acho que as questões que a gente investiga no mestrado e no doutorado são as questões que a gente percorre a vida toda. Estamos sempre falando da mesma coisa.

Derivas Analíticas: Que questão, afinal, você diria que perseguiu ao longo de toda a vida, nesse caminho de pesquisas sobre a literatura e a mulher?

RSB: Muita gente pensa que minha questão era a mulher, o feminino, mas eram os homens [risos]. O desejo dos homens em relação às mulheres. Claro que tinha a ver com o feminino, mas, na minha escrita, no que ela achava que apontava, eram os homens. Para mim, o grande mistério era a masculinidade, a virilidade e seus percursos, o olhar masculino sobre as mulheres, seu narcisismo. Sempre gostei mais de ler os escritores que as escritoras: Machado de Assis, Lúcio Cardoso, Pascal Quignard, Jean-Michel Rey.

Derivas Analíticas: Como foi sua maneira de estabelecer um diálogo entre psicanálise e literatura?

RSB: Tudo o que eu disse aqui, meio desordenadamente, esclarece um pouco esse diálogo entre a literatura e a psicanálise. Cada pessoa encontra uma maneira de falar e de fazer a conexão entre psicanálise e literatura, a partir de seu suporte teórico, claro. Eu, desde o início, sempre me interessei mais pelos estudos de representação – a imagem da mulher, a escrita de escritores sobre as mulheres, a construção da personagem feminina. É importante destacar a parceria que tive, e ainda tenho, com Lúcia Castello Branco, minha amiga, colega e coautora. Foi ideia da Lúcia juntar nossos textos sobre as mulheres e fazer nosso primeiro livro – A mulher escrita, que fez muito sucesso, no meio universitário ou não universitário. Foi muito lido e discutido. Com a Lúcia, continuei a trabalhar, a produzir e a criar a linha de pesquisa Literatura e Psicanálise no Programa de Pós-Graduação em Letras da Faculdade de Letras da UFMG. Essa linha tem uma longa história, com sucesso e com o interesse de psicanalistas que fizeram o doutorado conosco na Letras, o que produziu uma troca de saberes muito grande. Essa linha teve uma repercussão imediata, com muita gente procurando nossa orientação. Mais ou menos nessa época, tive a ideia de criar o LIPSI, Núcleo de Estudos de Literatura e Psicanálise. Nos anos 1990, fizemos inclusive um Congresso que juntou muita gente interessante e um número da revista Aletria, com o título Literatura e Psicanálise. Essa linha também criou um convênio CAPES/COFECUBE, entre a FALE/UFMG e a Universidade de Paris 8, com um congresso internacional aqui e outro lá. Em Paris, no Collège International de Philosophie, com a participação de professores brasileiros e franceses.

Derivas Analíticas: Se, ao final de sua análise, você fez a passagem da literatura para a pintura, você diria que a escrita literária funcionava para você como maneira de dar conta dessas questões, digamos, mais pesadas e difíceis, que ainda não se esgotavam apenas na análise?

RSB: A passagem da escrita para a pintura coincidiu com meu fim da análise com Eduardo Vidal e com a escrita do testemunho do passe, realizado na Escola Letra Freudiana, no Rio, e publicado em forma de literatura no livro Minha ficção daria uma vida. Minha passagem da literatura para a pintura coincide com o momento da minha aposentadoria na Universidade, em 2006, e também com meu final de análise, em 2007. Depois do passe, as questões difíceis da minha vida foram perdendo o peso, escorrendo. Aí eu fui para a pintura. Eu não queria ser artista, não queria ser pintora, não queria fazer pintura realista. Nada disso. Não havia nada além daquela tela. Era só aquilo. Eu não penso em nada quando pinto. Não quero o realismo. Quero ir pintando e desmanchando. Passando tinta branca em cima do que faço, fazendo outra coisa e outra coisa, como num palimpsesto. Não posso dizer que minhas ruminações sumiram do meu mapa, mas não me ocupam mais com o peso antigo. Isso quando não pulo no abismo, como na história que Pascal Quignard conta de Boutès, um argonauta impulsivo, que pulou no mar atrás de uma sereia. E pagou um preço. Tenho uma característica, que é a necessidade de desmanchar meu próprio traço. Às vezes, eu pinto uma tela e, depois, passo tinta branca por cima para, então, começar de novo. Às vezes pinto duas, três vezes por cima de uma mesma tela. As telas que ainda guardo são relativamente poucas, se se pensar que fiquei cinco anos com a Selma Weissman e com a Sandra Bianchi. Tinha muito mais! Eu passei tinta branca por cima de um monte delas.

 

 

Derivas Analíticas: É muito curiosa essa característica de apagar seu próprio traço! O que isso representa para você?

RSB: Fico curiosa para saber o que vai surgir, com a mistura de cores, com o espaço da tela, depois que vou modificando inúmeras vezes, sem nenhum compromisso com nada e ninguém. 

Derivas Analíticas: Do ponto de vista subjetivo, o fato de passar da escrita técnica, acadêmica (que você já praticara no mestrado e no doutorado), para uma escrita literária representou alguma mudança em sua vida?

RSB: Não houve exatamente uma passagem. A escrita se faz por caminhos múltiplos e diversos. O primeiro livro ficcional que escrevi foi o Para sempre amada (1999). Para sempre amada conta a história de três gerações de mulheres. Assim como você, muita gente já me perguntou se é autobiográfico. De certa forma, sim. Toda escrita é biográfica, uma vez que passa pelo corpo do escritor.

Derivas Analíticas: Você possui algum método de criação literária?

RSB: Atualmente não falo em método, que é o caminho que me faz esperar que a escrita escreva, pois a escrita nem sempre vem na hora que quero. Costumo pensar: deixa a escrita escrever. A escrita é misteriosa. A gente nunca sabe o que pode vir. Teve um livro de poesia que escrevi, Pássaro em voo, que me veio pronto à cabeça de uma vez, quer dizer: vinham os versos, um a um. Depois não vinha nada. Depois vinham, como pássaros. Vieram aos poucos, como um ditado, um depois do outro. Só algum tempo depois foi que percebi que esse poema era a escrita de um desejo de liberdade. Na época eu não sabia. É curioso como o inconsciente vai trabalhando silenciosamente, sem que nem sempre se perceba. É assim comigo.

Derivas Analíticas: O que você nos diz destes amores literários: Machado de Assis, Lúcio Cardoso, Pascal Quignard?

RSB: A psicanálise está na escrita de alguns escritores, de certa forma. Só falta descobrir. Machado é sensacional. Ele foi o predecessor de muitos conceitos da psicanálise, sem que tivesse esse objetivo. A ideia dele de “leitores ruminantes”, por exemplo, tem a ver com a psicanálise, não sei onde, e também com a ideia de Walter Benjamin de ruminação, que vem do verbo grübeln, em alemão. A ruminação tem a ver com o conceito de melancolia, que faz o sujeito revisitar os mesmos lugares, com o perigo de aí se fixar. O conto O Alienista, por exemplo, mostra como Machado de Assis anunciou a questão da loucura, descreveu uma situação que seria formalizada e defendida na luta antimanicomial, um século depois, sem nem ter visto nada disso acontecer. Lúcio Cardoso. Fiquei impactada com a Crônica da casa assassinada e, a partir daí, fui me interessando pela vida dele. Ele tinha uma vida muito perigosa, se expunha a muitos riscos. Isso me interessou. Li os livros de Lúcio, o diário, que anos mais tarde ganhou uma edição crítica. Tenho certeza de que Lúcio merece fazer parte dos melhores escritores da literatura universal. Percebi numa certa hora que o texto de Lúcio, tenso, dramático, pesado, precisava ir para o limbo de meus amores literários, para dar lugar ao humor de Machado de Assis, que, me pareceu, tomou uma distância de suas dores, fazendo uma travessia semelhante à travessia do fantasma, até escrever o Memorial de Aires, M. de A., Machado de Assis. Trabalhei com essa questão em A vida escrita, mostrando como Machado, sem fazer análise, depurou-se, ficou mais leve, fez um sinthome. Lúcio mergulhou na dor, encontrando alguma paz, depois que sofreu um AVC, segundo testemunho de sua irmã, Lelena, em Vida vida. Tive a alegria de compartilhar a leitura de Machado de Assis com um antigo orientando, que se tornou meu amigo e coautor, José Marcos Resende Oliveira, com quem escrevi dois livros: Machado de Assis leitoruma viagem à roda de livros e Machado de Assis – o feitiço das crenças e a escrita do bruxo, ainda inédito. É uma rica parceria que já dura uns 20 anos, de trabalho contínuo. Para mim, é importante ter um outro para conversar, ler, escrever, publicar, o que depois da aposentadoria fica difícil, mas que, no meu caso, tive a sorte de manter, com Lúcia e José Marcos.

 

 

Derivas Analíticas: Existe um fio condutor que a levou a percorrer o caminho da literatura para a psicanálise e, daí, para a pintura? Há um ponto de intercessão entre essas paixões em sua vida?

RSB: É difícil determinar isso, pois a vida faz e desfaz laços e nós. Para a psicanálise, fazer nós é uma saída. Para a literatura, se a vida é um nó, melhor desamarrá-lo, rezar para Nossa Senhora desatadora de nós! Agora que você está perguntando é que estou me lembrando de um detalhe: na época de minha primeira análise, com Elias Haddad, (que era um freudiano que rejeitava Lacan, mas era um ótimo analista), os psicanalistas tinham o costume – que hoje não se usa mais – de pedir que os analisandos fizessem um “protocolo” da análise, o que envolvia escrever e desenhar, tendo como foco as sessões. Se você parar para pensar, desde aquela época, as três coisas já estavam lá: psicanálise, literatura e pintura.

 

 

Derivas Analíticas: A escrita é um sintoma ou a escrita é uma solução?

RSB: A vida é maior que o divã. A vida em estado puro. A vida está aí, ela resiste. Escrevi um livro após ter tido câncer de mama, em 2004. Escrevi-o logo depois da cirurgia, durante minha recuperação e ficou claro que, naquele momento, a literatura me sustentou e posso dizer que, se não foi uma solução, foi uma saída para a leveza. Dei-lhe o título de Em frente do coração e foi muito consolador escrevê-lo. Posteriormente, este texto foi incluído em Minha ficção daria uma vida.

Derivas Analíticas: Se a vida é um texto, uma psicanálise pode ser uma reescrita?

RSB: Se a escrita se escreve através dos traços de memória e vai reescrevendo e refazendo a própria vida, o narrador vai mudando de ângulos, cortando parágrafos e até capítulos, depurando os excessos, transformando as tragédias em dramas com alguma lágrima e mais humor. Então, a psicanálise pode, sim, ser uma reescrita. Fiz o passe pela Escola Letra Freudiana, do Rio de Janeiro, em 2007, e depois, através dos testemunhos, reescrevi essa experiência fundamental em minha vida através de pequenos textos e, mais tarde, de um livro, Minha ficção daria uma vida. E deu. Depois de carregar a defunta infanta, bela e sinistra, além da Nina, da Crônica da casa assassinada, cancerosa e arruinada, um poema baixou nas minhas páginas. Tenho a impressão de que a poesia cai, baixa como um santo, se a deixamos se escrever:

 

O vestido roxo 

E aquele vestido roxo
com que eu entrava no caixão
para experimentar a morte
este vestido ficou todo rasgado
e cheio de tirinhas
com que fiz cintos
laços
Mas depois queimei tudo
e deu uma fogueira de arco-íris.
Quando fiquei louca
ou me disseram assim
fui para uma casa
branca
sem janela
havia lá uma colcha feita de minhas tiras coloridas
aquelas do vestido roxo 

Não é uma loucura? Deus (ins)escreve certo
por tiras tortas? 

Costurei as tirinhas e fiz
uma grande corda
furei um buraco
fiz uma janela 

e saí da casa branca fechada
como uma caixa  

 

Entrevista realizada e editada por Cecília Lana entre os dias 16 de agosto e 07 de setembro de 2016. Cecília Lana, colaboradora da revista Derivas Analíticas, é jornalista e psicanalista. 

Conheça alguns livros de Ruth Silviano Brandão:

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