logoder Revista Derivas Analíticas - Nº 22 - Março de 2025. ISSN:2526-2637 


EDITORIAL 22

Música, margens e psicanálise

Virgínia Carvalho
Daniela Viola
Ludmilla Féres
Miguel Antunes
Raquel Guimarães
Vinícius Lima

editorial22Chelpa Ferro. Chelpa osso, 2005. Amplificador, osso, tape de rolo, autofalante. Imagem cedida pelos artistas.

Vejo que nunca te disse como escuto música
– apoio de leve a mão na eletrola e a mão vibra
espraiando ondas pelo corpo todo: assim ouço a
eletricidade da vibração, substrato último no
domínio da realidade, e o mundo treme
nas minhas mãos.
E eis que percebo que quero para mim
o substrato vibrante da palavra repetida em canto
gregoriano.

(LISPECTOR, 2018, p. 28-29)

Falemos da música! Com Lacan, pelas margens, e com Clarice Lispector (2019, p. 28) que sabe que “não se compreende música, ouve-se”.

Falemos da música no osso, com Chelpa Ferro, coletivo sonoro ao qual agradecemos pela possibilidade de utilizar, neste número de Derivas Analíticas, algumas imagens gentilmente cedidas. Formado em 1995, no Rio de Janeiro, pelo pintor paulista Luiz Zerbini, o escultor carioca Barrão e o montador de cinema Sérgio Mekler, também carioca, o coletivo se propõe a realizar, no âmbito da arte contemporânea, através de instalações, performances e shows, o encontro inusitado e original de elementos sonoros com esculturas e objetos de uso cotidiano.

No vídeo de apresentação desta Derivas Analíticas, acrescentamos, às imagens sonoras de Chelpa Ferro, trechos da belíssima apresentação da Sétima Sinfonia de Mahler, interpretada pela Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, a quem agradecemos pela amável autorização de uso nesta edição, que também publica uma entrevista, realizada por Sérgio Laia, com o maestro Fabio Mechetti e da qual participa Diomar Silveira, Presidente do Instituto Filarmônica. Nessa entrevista, música, psicanálise e cultura se enlaçam: somos transportados ao encontro de Mahler com Freud, no século XIX e, ao mesmo tempo, às subversões realizadas por compositores eruditos, sobretudo a partir do início do século XX. Dessa entrevista, entre tantas outras pérolas, extraímos a seguinte afirmação do maestro: “a música, a gente nunca escolhe, a gente é escolhido por ela”.

Também nesta edição, que partiu do voto de Lacan (1972-73/1985, p. 158) quanto a falar, um dia, “da música, nas margens”, nos pautamos pelos regentes Diego Masson e Seiji Ozawa, pelo compositor John Cage, pelos escritores Haruki Murakami, Mário de Andrade e Pascal Quignard – graças às contribuições, que aqui publicamos, vindas de Judith Miller, Daniela Viola, Frederico Zeymer Feu de Carvalho, Heloísa Caldas, Olivier Brisson, Sandra Grostein e Sérgio de Mattos.

Na nossa conversa com a música e a psicanálise, o corpo não ficou fora. Olivier Brisson, em seu texto “A música, nas margens”, nos apresenta uma dimensão da música à margem dos circuitos standard da indústria musical, fazendo aparecer o registro sonoro fora de qualquer uso previamente regrado, naquilo que ele afeta materialmente um corpo e suas vibrações. Esse giro de perspectiva permite reconhecer modalidades de uso artesanal da música, pela invenção de um uso singular do som, como mostra no fragmento trazido do caso de Elsa, em sua experimentação com o registro sonoro como forma de construir uma borda a um “corpo indiscernível” que se apresenta no autismo.

A música nos afeta para o melhor e para o pior, nos diz Sérgio de Mattos, ao se perguntar sobre sua dimensão “suprema”, em seu texto “Música: por que uma arte suprema?”. Ele destaca a concepção lacaniana de que, na teoria dos conjuntos, o “supremo” é o maior número de um conjunto e está relacionado à ordenação de seus elementos, na medida em que tendem para um ponto comum, que é o limite superior desse conjunto. Trata-se de um texto que nos ensina sobre a analogia entre o supremo e o objeto a, a relação entre o falasser e o Outro, destacando aproximações possíveis entre música e psicanálise.

Essa aproximação ganha um contraponto importante no texto de Daniela Viola, “O som e o sem sentido: sobre a não-relação entre música e psicanálise”. Nele, a autora se vale da formulação lacaniana de que “as pulsões são, no corpo, o eco do fato de que há um dizer”, mostrando-nos que, para que haja ressonâncias, “é preciso que o corpo lhe seja sensível”. Localiza, então, nas margens, os acordes e suas ressonâncias no corpo falante, por meio do sem sentido dos harmônicos, ruídos e ritmos, que repercutem em cada corpo de uma maneira única. Segundo ela, “por meio da música, podemos aprender sobre a particularidade do objeto sonoro, sobre a função da modulação da voz numa análise, bem como sobre a noção de acontecimento de corpo”. Logo, sua aposta é de que a psicanálise escute a música.

Por sua vez, na seção ...Aquele texto, publicamos “Lacan, a música”, uma entrevista conduzida por Judith Miller, filha de Lacan, com Diego Masson, maestro a quem seu pai recorria quando queria saber algo sobre música. Nessa conversa vibrante, Diego Masson refere-se a diferentes ocasiões nas quais Lacan o procurou, como, por exemplo, para conversarem sobre uma ópera de Mozart: As Bodas de Fígaro. Lacan chegou a dizer que, não somente pelas falas do enredo, mas também pelo que a própria música transmite, torna “muito claro” o que ele, ao longo de seu ensino, considerava que ainda não conseguia fazer ouvir: a inexistência da relação sexual. Agradecemos a Ève Miller-Rose pela sua amável autorização para publicarmos essa entrevista, até então inédita em português.

Mas o que é a música, da qual procuramos falar, aqui, nas margens? Frederico Zeymer Feu de Carvalho, em “Música, som e ruído”, nos apresenta algumas possibilidades de respostas, recorrendo ao personagem Sainte Colombe, de Todas as manhãs do mundo, romance de Pascal Quignard. A música é um refúgio, “um pequeno manancial para aqueles que a linguagem abandonou”. Ela também é um tipo de “língua humana”. Nesse sentido, “exercitar-se com a viola da gamba, ou com qualquer outro instrumento, é apenas uma continuação, por outros meios, do que ressoa no corpo como voz”.

A confluência entre música e literatura também é abordada na resenha “Sobre música”, escrita por Sandra Grostein, a partir do livro Música, só música. Nesse livro, o escritor Haruki Murakami se vale de suas conversas com o regente Seiji Ozawa, ambos japoneses. Do lado do escritor, temos a ideia de que a escrita é “uma forma de composição, em que cada palavra e cada frase deve se encaixar harmoniosamente, assim como notas em uma melodia”. Do lado do maestro, a regência se compara à direção de uma peça de teatro, destacando a necessidade de interpretação e transmissão de uma narrativa e uma história sem palavras. O texto de Sandra Grostein é um convite para uma exploração desse livro, ouvindo as músicas que são referenciadas por esses dois “artistas excepcionais”, que nos dão a oportunidade de abordar temas caros aos psicanalistas: “os cuidados com a escuta, a importância do tempo, a escrita, a linguagem, o silêncio, o vazio, as pausas e a música como combustível que recarrega o apetite pela vida – o desejo”.

Como falar da música sem falar do silêncio? Em “Notas que tecem silêncio: uma resenha do Silêncio, de John Cage”, Heloísa Caldas apresenta-nos sua leitura sobre a coletânea de conferências e escritos desse musicista que, desde o século XX, produz “uma revolução criativa no campo da arte musical, tanto quanto ao material sonoro que convencionamos chamar de notas musicais, como quanto à forma inédita com que ele usa a fala e a escrita”. O que seria o silêncio, já que não é apenas a ausência de som? Em seu texto, Heloísa Caldas nos convida, com Cage e Lacan, a descobrirmos maneiras de deixar os sons serem eles mesmos, em vez de veículos de teorias ou expressões de sentimento. Um convite à escuta, que é flutuante.

E é no tom dessa aposta na escuta que lhes convidamos a ler este número 22 de Derivas Analíticas, no qual se verifica como a música inclui o silêncio, o som, os ruídos, a vibração do mundo e nos permite revisitar referências importantes para a psicanálise, como a não relação sexual, o corpo, o desejo, a pulsão e o objeto a.

É também com música que fechamos o trabalho desta nossa equipe editorial, que esteve às voltas com o delírio, os mergulhos no dark continent e a tradução do impossível, até chegar a essas últimas notas. Gostaríamos de agradecer a todo(a)s que nos acompanharam nesse trabalho, em especial, nessa nossa gestão, a nosso querido diretor da Seção Minas Gerais da Escola Brasileira de Psicanálise, Sérgio Laia, pelo trabalho fino e dedicado de nos auxiliar a encontrar nosso próprio tom durante esses dois anos de intenso trabalho. Desejamos à equipe que chega, com Cristiana Pittella, as boas-vindas e um excelente trabalho nos próximos números que virão.

Referências

LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1972-73).

LISPECTOR, C. Água viva – Edição com manuscritos e ensaios inéditos. Rio de Janeiro: Rocco, 2019.

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 Equipe Editorial

Virgínia Carvalho (Coordenação)

Daniela Viola
Ludmilla Féres
Miguel Antunes
Raquel Guimarães
Vinícius Lima

Revisão: Sílvia P. Barbosa
Edição de vídeo: Bruno Senna

Conselho Editorial da EBP-MG

Andrea Eulálio
Elisa Alvarenga
Frederico Feu
Maria Wilma Faria
Jorge Pimenta
Lázaro Elias Rosa
Virgínia Carvalho

Diretoria da EBP-MG

Sérgio Laia (Diretor Geral)
Ludmilla Féres (Diretora Adjunta)
Mônica Campos (Diretora Secretária - Tesoureira)
Anamáris Pinto (Diretora Adjunta Secretária –Tesoureira)
Gilson Iannni (Diretor de Biblioteca)
Márcia Mezêncio (Diretora de Cartéis e Intercâmbios)  

 

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