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Editorial 21

logoder Revista Derivas Analíticas - Nº 21 - Agosto de 2024. ISSN:2526-2637


EDITORIAL

Traduzir o Impossível

Virgínia Carvalho
Psicanalista

Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP)
e Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
virginiacarvalhopsicanalise@gmail.com

editorial21 2Elida Tessler - VOCÊ ME DÁ SUA PALAVRA?, 2004. Imagem cedida pela artista.

Traduzir, fazer passar de uma língua à Outra, é um exercício ao mesmo tempo de redução e de permitir que algo se perca. Essa perda nos permite uma aproximação com o próprio real do inconsciente, tal como Lacan o indica em um texto de 1973, intitulado “Le jouir de l’être parlant s’articule” (“o gozo do ser falante se articula”), publicado no número 101 de La cause du désir. O bordejamento do real com a letra na tradução, ao nos fazer passar de uma língua à Outra, também pode se apresentar como um “esforço de poesia”, e retomamos aqui a expressão que Miller trabalhou em seu curso de 1996 para abordar um enfrentamento do impossível, demarcado não sem as palavras.

Quando lemos o Ulysses, em português, esse impossível ecoa tanto quanto o “entusiasmo” do tradutor com o modo singular com o qual James Joyce se vale da linguagem. Aliás, “entusiasmo” foi a palavra da qual se serviu Caetano W. Galindo para traduzir o que na psicanálise aprendemos com Lacan, no Seminário 23, a chamar de gozo do escritor. Caetano W. Galindo é professor do curso de letras da UFPR, tradutor e escritor. Sua versão de Ulysses recebeu diversos prêmios, dentre eles o Jabuti, em 2013, e o da Academia Brasileira de Letras, em 2012. Seu currículo conta ainda com traduções de T. S. Eliot, Samuel Beckett, Charles Darwin, David Foster Wallace, entre outros. A editora Companhia das Letras o apresenta em cinco faces: além do tradutor, o romancista, com sua recente publicação Lia; o pesquisador, com o Latim em pó; o contista, com Sobre os canibais; e o leitor crítico, com o guia de leitura Uma visita guiada ao Ulysses de James Joyce. Exclusivamente para este número de Derivas Analíticas, Caetano W. Galindo nos honrou com uma entrevista muito viva e bela, contando-nos que, para manter esse entusiasmo, prefere fazer as traduções “a quente”, traduzindo à medida que lê, para manter a surpresa do que está por vir.

Da realização e da leitura dessa entrevista, saímos com a sensação de que há uma aproximação entre o trabalho de tradução e a interpretação analítica, o que o texto de Yolanda Vilela, intitulado “‘Flor que se cumpre sem pergunta’ – considerações sobre Lalíngua e Tradução”, examina detidamente e de uma maneira bastante original. A partir desse texto, podemos concluir que a análise nos leva ao consentimento com o intraduzível em cada um de nós, do que Jorge Assef, nosso colega de Córdoba, nos oferece um esclarecedor testemunho em “A linguagem do meu inconsciente e a cidade de Nova York”.

Diante do insólito presente na palavra Penisneid, muito utilizada por Freud e que no português traduziu-se por “inveja do pênis”, Inés García López, nossa colega da Espanha, dedica-se a um exercício etimológico, mostrando a distância entre o alemão Neid e o espanhol envidia. Seu texto, que pode ser lido aqui, “Sobre o Penisneid: algumas contribuições terminológicas”, nos ajuda a reler a concepção freudiana sobre o feminino.

Neste número, apresentamos, ainda, uma importante contribuição de Bruce Fink, responsável por grande parte da tradução de Lacan para o inglês. Na sua tradução inglesa dos Écrits encontramos uma espécie de glossário que explicita as decisões que precisou tomar nessa empreitada. Agradecemos a esse colega e à editora W. W. Norton & Company por nos autorizar a traduzir essas notas para o português, permitindo-nos aprender com o modo pelo qual as palavras de Lacan chegam à língua inglesa.

O Aquele texto deste número conta com “O passe entre as línguas ou ‘dire’ Babel”, de Éric Laurent, texto publicado anteriormente em Opção Lacaniana, número 60. Sabemos que o passe foi um dispositivo inventado por Jacques Lacan para dar lugar ao mais singular e vivo de cada analista como produto de uma análise. Ele nos permite trabalhar a relação com a tradução e um dos achados do texto de Laurent é sua ideia de que “o passe é das línguas”, uma passagem da língua materna a uma língua Outra, passagem que se apresenta como um novo amor.

No Campo Freudiano, não há uma língua única, e sim diversas línguas que se conjugam numa orientação Una. Aprendemos isso com a entrevista que nos concedeu Angelina Harari, colega da EBP em São Paulo que, além de responsável pelas edições das traduções de Lacan, Miller e de muitos outros psicanalistas do Campo Freudiano no Brasil, tem um importante lugar na história da psicanálise de orientação lacaniana. Através do que ela nos transmite sobre o contexto histórico das traduções, chegamos ao lançamento, no Brasil, de mais um Seminário de Lacan, A lógica do fantasma, o Seminário 14, bem como às razões de se traduzir “fantasme” por “fantasma”. Aprendemos, nessa entrevista, que a tradução em psicanálise não se dissocia da leitura e da nossa formação como psicanalistas, assim como da relação que mantemos com a Escola.

Apresentando-nos a presença da tradução no âmbito da ficção, temos a resenha do conto “O tradutor cleptomaníaco” do escritor húngaro Dezsö Kosztolányi, feita por nossa colega Fernanda Costa. Nesse surpreendente conto, a cleptomania do personagem intervém no seu trabalho como tradutor, através do furto de palavras, no que ele arranca dos textos, e Fernanda Costa se serve dessa ficção para sustentar como a psicanálise não deixa de ser um esforço de tradução, “pois permite o roçar da fronteira entre o real do gozo e o que pode ser capturado em palavra”.

Para o que não tem tradução, os norte-americanos têm uma expressão, “lost in translation”, que é, também, o título do filme de Sofia Coppola, comentado aqui por Elisa Alvarenga. Seu texto é um convite para uma viagem pelo Japão – o “império dos semblantes” – na companhia de Lacan e Roland Barthes, mostrando-nos como o erotismo e o amor se apresentam ali. Esse filme, traduzido para o português como Encontros e desencontros, evidencia, segundo a leitura de Elisa, que “a existência do inconsciente nos seres falantes constitui o destino e o drama do amor”. Enquanto esse texto se dedicou à “Coisa japonesa”, Daniela Viola trabalhou a “Coisa mineira”, bem como a noção de intradução do poeta e tradutor Augusto de Campos, através do belíssimo documentário dirigido por Ana Rieper, em 2023 – Nada será como antes: a música do Clube da Esquina. Daniela destaca o intervalo (intra-) entre línguas e textos, lembrando-nos que a existência desse resto intraduzível não impede o movimento entre as línguas, ou mesmo entre os registros, como é a tentativa do Clube da Esquina de traduzir as montanhas de Minas Gerais em letra e música.

Este número de Derivas Analíticas dedicado à tradução é atravessado pela fluidez presente no trabalho de Elida Tessler, artista plástica, pesquisadora e professora do Departamento de Artes Visuais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Em Desertões, temos uma obra composta por diversas lupas com imagens fotográficas de trechos sublinhados e anotados por Donaldo Schüler em seu antigo exemplar do livro Os Sertões, de Euclides da Cunha. As lupas afixadas na parede formam um lindo conjunto. Na imagem que acompanha a rubrica Aquele texto nesta edição, temos a chance de ler em duas dessas lupas as seguintes expressões: “como se faz um deserto” e “como se extingue o deserto”. Seria esse exercício de Elida um exercício de tradução? A obra integra o Acervo Sesc de Arte Brasileira de São Paulo e está instalada na biblioteca da sede SESC Avenida Paulista de forma permanente. Recomendamos fortemente uma visita até lá, bem como um passeio detalhado por seu website: https://www.elidatessler.site/.

Elida não só nos autorizou a usar outras imagens de seu trabalho nesta edição, como nos proporcionou uma conversa muito inspiradora sobre ele. Agradecemos-lhe a amável disponibilidade. Tocados por sua sensibilidade aos efeitos da palavra e à interlocução da psicanálise com a arte e a literatura, selecionamos cinco imagens de suas obras que carregam a peculiaridade de um “esticar dos fios” da palavra: Dubling (2010), Desertões (2015), A Conversação (2017), Métrica (2017) e Você me dá sua palavra? (2004). Essa última surgiu a partir de uma conversa com um motorista de táxi, em Macapá, quando ele a informou de que “o prefeito da cidade havia sido preso por faltar com a palavra”. A artista nos conta, em seu site, que “a noção corrente do valor ético de uma palavra dita ou escrita é o primeiro elemento de Você me dá a sua palavra?”, e que a associação entre a prisão do político e a função de um prendedor de roupas promoveu a escolha desse objeto doméstico como elemento de trabalho. A partir daí, pede que as pessoas com quem se encontra escolham uma palavra e a escrevam na superfície de prendedores de roupas, que são fixados a um fio de varal. Trata-se de um trabalho em processo contínuo, “word in progress”, e que já foi apresentado em diferentes cidades e países, tais como Macapá/AP, Umbertide/Itália, Paris/França, Petrópolis/RJ, Melbourne/Austrália, México DC/México, São Paulo/SP, Campinas/SP, Itajaí/SC, Porto Alegre/RS.

O trabalho “ético e poético” de Elida já recebeu palavras de diversas línguas e geografias, tal como japonês, tupi-guarani... garatujas de crianças... A palavra, a grafia, o tipo de caneta, a cor, a origem de quem dá a palavra e a da própria palavra... todos esses elementos vão dando corpo a essa obra que hoje já conta com mais de sete mil palavras. Fazemos chegar aos leitores de Derivas Analíticas o convite feito por Elida para uma visita à exposição Word Work World, que celebra os 20 anos de Você me dá sua palavra? e que vai acontecer a partir do dia 28/09/24, no Atelier V744, situado na Rua Visconde do Rio Branco, 744, em Porto Alegre, essa cidade que, após tanto sofrimento com as enchentes de 2024, encontra-se em um intenso trabalho de reconstrução. A exposição World Work World permanecerá aberta à visitação de 30 de setembro a 14 de novembro deste ano.

Além de pendurar as palavras no varal, Elida faz listas, como a lista das palavras únicas, que é o caso de Cupópia, um dialeto africano falado no quilombo de Cafundó; ou a lista das palavras que ainda faltam. Da lista de ocorrência dos termos, você pode adivinhar qual é a palavra mais repetida? É “amor”! Intrigante que essa mesma palavra apareça em quase todos os textos desse número 21! Tradução, impossível e amor: essa é uma boa tríade para nosso convite de leitura, a partir do “amor ao inconsciente”, o que, segundo Laurent, não é o amor da suposta língua primeira, a materna. É um amor que inclui um movimento entre línguas. Inspirados por isso e pelo tema desta edição, pedimos à Regina Carvalho que traduzisse o impossível no piano. Sua tradução pode ser escutada no vídeo de apresentação deste número. Agradecemos à pianista por prontamente topar esse desafio.

Está lançada, então, esta Derivas Analíticas, número 21. Amorosamente, agradecemos a cada um dos tradutores do impossível que a compuseram e nos ajudaram a torná-la este presente que entregamos, agora, a nossos leitores. Boa leitura!

Equipe Editorial

Virgínia Carvalho (Coordenação)

Daniela Viola
Ludmilla Féres
Miguel Antunes
Raquel Guimarães
Vinícius Lima

Revisão: Sílvia P. Barbosa
Edição de vídeo: Bruno Senna

Conselho Editorial da EBP-MG

Andrea Eulálio
Elisa Alvarenga
Frederico Feu
Maria Wilma Faria
Jorge Pimenta
Lázaro Elias Rosa
Virgínia Carvalho

Diretoria da EBP-MG

Sérgio Laia (Diretor Geral)
Ludmilla Féres (Diretora Adjunta)
Mônica Campos (Diretora Secretária - Tesoureira)
Anamáris Pinto (Diretora Adjunta Secretária –Tesoureira)
Gilson Iannni (Diretor de Biblioteca)
Márcia Mezêncio (Diretora de Cartéis e Intercâmbios)