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logoder Revista Derivas Analíticas - Nº 20 - Março de 2024. ISSN:2526-2637

 

A obscura claridade de Fatoumata Diawara

 

Raquel Guimarães Lara
Psicanalista

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Com uma consolidada carreira musical na Europa, mas ainda pouco conhecida no Brasil, Fatoumata Diawara, atriz, cantora e compositora malinesa, vem se destacando como uma das mais recentes revelações africanas. A sua obra exprime o pulso criativo de uma mulher que une em sua voz a tradição Wassoulou, gênero musical oriundo do folclore malinês e protagonizado por mulheres, ao afrobeat, jazz, pop, rock, electro e até ao hip hop. 

No site oficial da artista, ela conta ser uma das onze crianças nascidas de pais malianos na Costa do Marfim, em 1982. Fatoumata cresceu na década de 1990 na capital do Mali, Bamako, como uma criança independente desde tenra idade, tornando-se uma célebre atriz infantil. Em 2001, estrelou Sia, O Sonho da Píton, filme de Dani Kouyaté baseado em um antigo mito sobre uma jovem que foge de sua família.

A vida real seguiu a ficção e, contra a vontade dos pais, que queriam que ela se casasse, Fatoumata fugiu de Bamako aos 19 anos para ingressar na companhia francesa de teatro de rua Royale de Luxe. Lá, durante os bastidores de ensaios, a artista cantava para se divertir e acabou sendo ouvida pelo seu diretor. Encantado com seu talento, ele pedia que Fatoumata cantasse durante as produções teatrais e seu canto tornou-se uma característica das apresentações da companhia. Encorajada também pelo público, a cantora passou a se apresentar em cafés e clubes de Paris, durante os intervalos das turnês. Daí para a estreia de seu primeiro álbum, Fatou, em 2011, foram apenas alguns passos, lançando a cantora e guitarrista do Mali como um dos grandes nomes da música africana. 

Alguns anos mais tarde, Fatoumata Diawara lança Lamomali (2017). Em 2018, ela divulga seu terceiro álbum, Fenfo, descrito pela crítica como “um cruzamento de culturas”. O álbum também é acompanhado por fotografias e um vídeo filmado na Etiópia por Aida Muluneh.[1] Seu trabalho mais recente foi lançado ano passado, o álbum London Ko (2023). 

A música como linguagem que ultrapassa o sentido é o que marca o trabalho de Fatoumata Diawara. A artista, que já teve sua performance adjetivada pela revista Rolling Stones como “hipnótica e cativante”, diz trabalhar para criar belas melodias para transmitir suas mensagens. Em suas músicas, ela aborda temas de empoderamento, feminismo e questões controversas, como a mutilação genital feminina e a venda de migrantes negros nos mercados de escravos. Destacando-se como uma ativista social, Fatoumata é uma importante voz nas lutas das mulheres africanas, com uma trajetória que evidencia sua resistência como mulher negra, diante de costumes conservadores e imposições à população feminina de seu país. 

Suas músicas são cantadas principalmente em Bambara, sua língua nativa. Em seu site oficial, a artista explica: “Eu não queria cantar em inglês ou francês porque queria respeitar a minha herança africana”.[2] E em uma entrevista para o site Dirty Rock, ela acrescenta: “As pessoas se conectam com minha música. É incrível ver como as pessoas ficam tão entusiasmadas com certas melodias sem saber o significado das letras. Mas essa é a magia da música. Afinal, a música é, em si, uma linguagem internacional”.[3]

Wisnik (2017), em seu livro O som e o sentido, aponta um limiar da música que a coloca dentro e fora da história: a música fala ao mesmo tempo, ao horizonte da sociedade e à subjetividade de cada um, sem se deixar reduzir às outras linguagens.

A música não refere nem nomeia coisas visíveis, como a linguagem verbal faz, mas aponta com uma força toda sua para o não-verbalizável; atravessa certas redes defensivas que a consciência e a linguagem cristalizada opõem à sua ação e toca em pontos de ligação efetivos do mental e do corporal, do intelectual e do afetivo. Por isso mesmo é capaz de provocar as mais apaixonadas adesões e as mais violentas recusas. (WISNIK, 2017, p. 30)

A música como som que comporta algo indizível é o que articula o trabalho de Fatoumata ao continente negro da feminilidade, um território outro que não se traduz em nenhuma via de sentido compartilhada. Ao comentar a expressão de Freud (1926/2017, p. 240) de que “a vida sexual da mulher adulta é um dark continent para a Psicologia”, Clotilde Leguil (2019) evidencia a atualidade da metáfora freudiana do continente negro, ainda que o contemporâneo se apresente como uma época do tudo saber. Ela localiza que esse dark continent não se refere a uma questão de fracasso do conhecimento psicanalítico, mas ao encontro com um território diferente. Ela diz: “É essa obscura claridade da feminilidade, seu brilho e sua opacidade irremediável que se apresentam a nossos olhos” (LEGUIL, 2019, p. 6, tradução nossa).  

A música de Fatoumata apresenta aos nossos olhos e ouvidos o encontro com um território diferente, que, por mais nítido que possa ser, é invisível e impalpável:

A música, sendo uma ordem que se constrói de sons, em perpétua aparição e desaparição, escapa à esfera tangível e se presta à identificação com uma outra ordem do real: isso faz com que se tenha atribuído a ela, nas mais diferentes culturas, as próprias propriedades do espírito. (WISNIK, 2017, p. 30)

No trabalho de Fatoumata Diawara, a melodia chega primeiro, hipnotizando o público. Mas suas letras e as imagens de seus clipes indicam uma realidade diante da qual é preciso não recuar, pois encarnam um real estranho, inquietante, convocando seus ouvintes a pensar a África sob uma perspectiva outra, em uma transmissão do inapreensível que se apresenta nos costumes e vivências do povo africano. O que a artista nos ensina é sobre como não recuar diante do feminino, “o lugar dessa Outra coisa, litorânea, mar aberto sem limites que nos habita” (FUENTES, 2020, p. 3-4). O clipe e a música desta edição da revista apresentam NTERINI, do seu álbum Fenfo, que se traduz como “algo para dizer”. 

Referências

FREUD, S. A questão da análise leiga. Conversas com uma pessoa imparcial. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud: Fundamentos da clínica psicanalítica. Vol. 6. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. (Trabalho original publicado em 1926).

FUENTES, M. J. F. O feminino e o infamiliar. Disponível em: https://www.encontrobrasileiro2020.com.br/wp-content/uploads/2020/09/Sota-Fuentes-O-feminino-e-o-infamiliar.pdf. Acesso em: 20 fev. 2024.

LEGUIL, C. Lacan, messenger de la féminité. Ornicar?: Dark Continent, n. 52, jan. 2019. 

WISNIK, J. M. O som e o sentido: uma outra história das músicas. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

Notas

[1] Sobre essa artista, ler o Editorial deste número 20 de Derivas Analíticas.

[2] Cf.: https://fatoumatadiawara.com/la-biographie/

[3] Cf.: https://www.dirtyrock.info/2023/10/fatoumata-diawara-jazzmadrid-villanos-entrevista/

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