Ednei Soares 

Uma mutação sem precedentes está em andamento na história humana, e O olho absoluto é o nome dessa mutação, como afirma Gérard Wajcman em seu livro.

Na medida em que pedimos para ver, essas mudanças nos pertencem cada vez mais. Em tempos da TV Full HD, Google Eye, Google Earth, Facebook, circuitos fechados de segurança (closed circuit television), imagens por ressonância magnética (IRM) e inúmeras outras tecnologias, essa mutação parece irreversível e natural. O mundo se faz um imenso campo do olhar. Vivemos a extensão crescente do domínio do olhar e do olho que desenham a nova paisagem deste século, nos colocando diante da passagem de uma sociedade a outra. Se anteriormente tudo era escondido, hoje tudo se mostra. Tal mutação modifica nossa relação com o mundo, com nossos corpos e com nós mesmos. Mais do que isso, ela não se realiza secretamente, mas sob nossos olhos.

Psicanalista e escritor, Gérard Wajcman é professor no Département de Psychanalyse da Université de Paris 8, membro da École de la Cause Freudienne e diretor do Centre d’Études d’Histoire et Théorie du Régard. A forma ensaística e sua agradável escrita nos revelam o Olho absoluto não somente pelos comentários acadêmicos e especializados sobre a trama do olhar, mas também através de investigações que recorrem aos gadgets, à tecnologia, à arte e à cultura de nossos dias.

Diante da atualidade da investigação, encontramos pelo texto Bob Dylan, Mick Jagger, Tom Waits, bem como J.-L Godard, Woody Allen, Stanley Kubrick, Brian De Palma e Steven Spielberg. Todos tão bem situados na discussão quanto Jeremy Bentham e Walter Benjamin. Em entrevista concedida a Marie-Hélène Brousse, o autor admite: “é verdade que eu não mantive esse rigor lacaniano, se posso dizer assim, conceitual sobre o olhar e o olho”.

Contudo, entre ver, ser visto e se fazer ver, outras teses parecem subjacentes à pesquisa de Wajcman: a mutação do olhar em O nascimento da clínica, de Foucault, a pulsão escópica e o supereu freudianos, o olhar como objeto a em Lacan e o enraizamento do eu no plano imaginário. Essas teses, embora não nomeadas precisamente, parecem sustentar a atualidade das reflexões no/do texto.

Quando tudo deve se render ao império do olhar, Wajcman situa a instalação de uma ideologia a partir das últimas décadas do século XX. Trata-se de supor a visibilidade do real de modo que nenhuma opacidade possa resistir ao Olho absoluto. Inspirada na ciência e na técnica, essa ideologia responde a todos os domínios da sociedade. A exaltação desse princípio de transparência viabiliza a ideia de que o real é inteiramente transparente e recusa sua potencial opacidade. Ao acolher essas mudanças como signo do progresso tecnológico, fazemos do olhar o mestre hipermoderno.

Implantado no smartphone, nos centros urbanos, em miniatura nas câmeras dos mísseis de guerra e no endoscópio de fibra óptica, o olhar do mestre não está mais escondido (como no modelo Panóptico, de Jeremy Bentham), mas revelado. Visível, ele se mostra em todo lugar.

Nota-se, então, que a política do olhar se mostra na segurança, na medicina, na espionagem e na geografia, de modo que o Olho absoluto se define como forma hipermoderna de poder.

A analogia entre observação médica e vigilância se reforça ao instalar nos corpos dispositivos visuais de alerta em caso de agressão. Sob o comando de Masayuki Sumida, na Universidade de Hiroshima, pesquisas com bactérias geneticamente manipuladas produziram tecnologias biológicas para avanços em endoscopia (olhar para dentro do paciente). Introduzidos no corpo como um olho minúsculo, girinos transparentes permitirão rastrear o crescimento e o envelhecimento dos órgãos internos, o desenvolvimento e o progresso do câncer e os efeitos dos produtos químicos nos órgãos. Como resultado, há uma passagem daquele que se vê para aquele que é visto integralmente. Para Wajcman, passa-se do estádio do espelho ao estádio de transparência, isto é, da imagem do corpo à imagem integral do corpo.

Assim, o olho do biólogo se repercute como olhar policial. Ao procurar a verdade, o olhar da polícia científica sobre a impressão digital também se prolifera na impressão genética e psicológica do comportamento de sujeitos revelados criminosos.

O gigantesco scanner que divide o real em fatias de imagens põe em prática a ideia de que todo real se vê, e nada daquilo que é humano escapa ao olhar. O real do homem é visível,portanto seu corpo, seu cérebro e seus comportamentos, por serem visíveis, são hoje o que há de mais real. Das minúcias das obras de arte à estrela mais longínqua ou ao menor neurônio, toda verdade deve ser vista. Mesmo se fundando em enigmas, a ciência parece não mais considerar a opacidade do real. Surge, assim, a ideia de um real potencialmente transparente que se torna predominante via discurso da ciência. O mundo assim visível pode se transformar em máquina de ver.

Se o que é real deve ser visto, tal máxima traz consequências que limitam o pensamento científico. Como resultado, se vê a crença na materialização do “imaterial” através de um enfraquecimento da ideia de matéria, hoje modelada sobre a imagem. Nesse sentido, tecnologias como a NeuroSpin, que procura compreender o cérebro pela imagem, levam J-P Changeux, neurobiólogo do Collège de France, a afirmar a “naturalização do espírito”.

Por meio da fusão de telas e câmeras, chega-se ao ponto de não haver mais necessidade de falar muita coisa, visto que falamos sem cessar da imagem. Para o autor, a imagem produz o pensamento suave, pois o discurso sobre a imagem é essencialmente prisioneiro da imagem.

Descrente de que os protestos contra essa mutação possam modificar o curso dos fatos, Wajcman afirma que o que nos resta é mostrar. Apesar de em determinados momentos do texto nos deixar sem ter onde nos escondermos do Olho absoluto, Wajcman parece propor uma nova circunscrição à opacidade. E encerra seu texto
 reivindicando o direito de esconder e até mesmo fazendo o elogio à escuridão e à sombra.

O livro de Gérard Wajcman deixa entrever ainda uma questão que diz respeito à psicanálise: no settinganalítico, com as portas fechadas, onde o sujeito não tem esse olhar absoluto, senão um olhar suposto do psicanalista, resta pensar sobre o que faz a psicanálise em um mundo onde prevalece a exibição generalizada dos sujeitos.

WAJCMAN, Gérard. L’Œil absolu. Paris: Éditions Denoël, 2010. 323 p.

 

Ednei Soares é psicanalista e professor do curso de Psicologia do Centro Universitário UNA, Belo Horizonte (MG).

REFERÊNCIA

<http://www.dailymotion.com/video/xf0cj7_interview-g-wajcman-par-mh-brousse_news>.

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