Elisa Alvarenga
O que é o corpo falante? Esperávamos que, depois do VIII Congresso da Associação Mundial de Psicanálise (AMP) sobre a ordem simbólica (que já não é o que era) e do IX, sobre o real no século XXI, teríamos um Congresso, o terceiro dessa série, sobre o imaginário. Mas após o VII Encontro Americano de Psicanálise de Orientação Lacaniana, sobre “o império das imagens”, que mostrou como o imaginário se apresenta hoje na clínica e na civilização, o X Congresso da AMP não será propriamente sobre o imaginário.
Embora haja uma equivalência, ao longo de todo o ensino de Lacan, entre o imaginário e o corpo, Jacques-Alain Miller nos surpreendeu propondo que o “corpo falante” muda de registro. Assim, se “o imaginário é o corpo” é uma expressão válida ao longo de todo o ensino de Lacan, a recíproca, como me disse Jésus Santiago ainda o ano passado, “o corpo é o imaginário”, não é sempre verdadeira. Prova disso é que o corpo falante é um mistério.[1] É o que anuncia Lacan ao final do capítulo 10 do Seminário 20, capítulo no qual introduz suas rodinhas de barbante. “O real, eu diria, é o mistério do corpo falante, é o mistério do inconsciente”.[2] No Seminário 23, Lacan afirma que “é na medida em que Freud articulou o inconsciente que eu reajo a isso. [...] É na medida em que Freud fez verdadeiramente uma descoberta [...] que podemos dizer que o real é minha resposta sintomática”.[3] Então, penso que o corpo falante é a invenção sintomática de Lacan que, como ele próprio diz, vem substituir o inconsciente freudiano. Em Joyce, o sintoma ele o chama de parlêtre, que traduzimos por falasser.[4]
A relação entre as palavras e os corpos, entre o inconsciente e a pulsão, ou ainda, entre o significante e o gozo, sempre esteve em pauta na obra de Freud e no ensino de Lacan, até desembocar em uma mudança de perspectiva no Seminário 20, onde aparece o “mistério do corpo falante”. Se nos seus primeiros seminários Lacan nos apresenta o significante (simbólico) que incide sobre o corpo (libido no imaginário) para mortificá-lo – o significante mata a coisa – e os objetos a, nos seminários seguintes, como restos de gozo dessa operação significante, teremos, a partir de um certo momento do seu ensino, o significante como causa de gozo.
Minha hipótese é que, no nó borromeano, o imaginário, enquanto consistência corporal, não mais subsumido ao simbólico, vem enodar e manter separados, o simbólico – inconsciente freudiano – e o real do sinthoma do corpo falante.[5]
O corpo e suas marcas
Freud nos apresenta um inconsciente feito de traços, em íntima relação com a pulsão, que define como algo que se origina no corpo e que é representado no psiquismo pelo representante da pulsão. Esse representante se dividiria, por sua vez, na representação e no afeto. A primeira seria recalcada no inconsciente, e o segundo, vivido no corpo, por exemplo, sob a forma da conversão histérica. Freud diz no seu texto O inconsciente que nada saberíamos da pulsão se ela não se fixasse a uma representação, ou ideia, ou se não aparecesse como um estado de afeto.[6] Uma representação, para Freud, é um traço de memória investido com a energia da pulsão: um objeto, um acontecimento, uma palavra se inscrevem no psiquismo, vindos do campo do Outro, sob a forma de traço, signo, o que provoca uma impressão, indestrutível. O núcleo do inconsciente freudiano consiste então em representações carregadas com o investimento da pulsão, que podem produzir todo tipo de efeitos sem passar pela consciência. Como diz Lacan, as pulsões são o eco, no corpo, do fato que há um dizer.[7]
O modelo freudiano do inconsciente e da pulsão, como quantidade de energia libidinal, deu margem, na atualidade, à velha ambição de fazer da psicanálise uma ciência, assimilando-a às neurociências cognitivas. Eric Kandel, médico próximo ao psicanalista Ernest Kris, descreve a capacidade do sistema nervoso de ser modificado pela experiência como sua plasticidade, e propõe uma leitura dos comportamentos que se desenvolvem sem recorrer à consciência como a realização da hipótese freudiana dos processos inconscientes.
Ansermet e Magisttreti conservaram a homonímia proposta por Kandel entre o traço deixado por uma experiência de aprendizagem no sistema nervoso e os traços dos quais fala Freud no Projeto para uma psicologia científica.[8] Para eles, a reassociação constante de traços culmina na produção do único, cada vez mais singular. Éric Laurent[9] interroga esse ponto de conexão do sujeito que fala com o funcionamento da atividade biológica, a partir das neurociências. O Projeto, de Freud, se constrói a partir da neurologia do final do século XIX, com a teoria da inscrição no sistema psíquico de uma “facilitação”, provocada por uma descarga e a experiência de satisfação que ela constitui. Entretanto, a energética de Freud é irredutível às quantidades biológicas. A libido é postulada por Freud como uma quantidade constante nas operações que marcam as representações do sexual na atividade psíquica. O modelo do princípio do prazer concebido como descarga da libido é gradativamente posto em dúvida, até a ruptura com os mecanismos biológicos em Além do princípio de prazer[10] e a invenção da pulsão de morte. Em O mal-estar na civilização,[11] Freud afirma que há um impossível de descarregar no cerne mesmo da satisfação sexual. Passamos aí à hipótese de uma antibiologia, que Jacques-Alain Miller chamou de “biologia lacaniana”.
É o que Lacan leva em conta em Formulações sobre a causalidade psíquica, já em 1946. Ele se recusa a localizar no sistema nervoso a gênese da perturbação mental, que procede de uma outra dimensão que não aquela da física. Lacan opõe à atividade psíquica da neuropsiquiatria a função subjetiva, sempre marcada pela falha e pela falta. Ao funcionamento neuronal, Lacan opõe a “[...] cadeia bastarda de destino e de inércia, lances de dados e estupor, falsos sucessos e encontros desconhecidos, que compõe o texto corrente de uma vida humana”.[12] Mais do que na neurose, os fenômenos clínicos da psicose colocam em jogo uma significação pessoal que visa o sujeito. Desde que o homem fala, suas identificações respondem aos paradoxos do seu laço com o que lhe foi dito e com o que ele diz. A materialidade do inconsciente é feita não de aprendizagem, mas de coisas ditas ao sujeito, que o feriram, e de coisas impossíveis de dizer, que o fazem sofrer. A memória inconsciente parasita o vivente.
Então, os traços freudianos não se inscrevem no sistema nervoso, embora eles sejam significantes. A biologia freudiana nada tem a ver com a biologia. Desde o Seminário 2, Lacan ressalta a autonomia do simbólico na ligação com a pulsão de morte. Isso implica que o inconsciente deve ser entendido como uma rede de impossibilidades, ou uma rede de nós. O ponto de partida é o impacto da linguagem, o trauma, que produz gozo, que Freud chama de fixação. O caminho no qual o evento primordial de gozo é inscrito no corpo é contingente e diferente dos aspectos cerebrais. Trata-se muito mais da marca de uma experiência de perda, pois a mensagem não circula livremente: existem furos, impossibilidades e nós. É o que Miquel Bassols[13] chama de inconsciente como ausência, aquilo que falta irreversivelmente na memória, ou ainda, aquilo que não cessa de não se escrever. Em um acontecimento traumático como a explosão de uma bomba na estação Atocha, em Madrid, o que foi traumático para um sujeito atendido foi o que não ocorreu, por exemplo, não ter socorrido um ferido cujo olhar o marcou.
Assim, as “marcas” das quais falamos em psicanálise, as marcas que buscamos nos sujeitos e nos analistas, são distintas dos marcadores biológicos buscados por uma “medicina baseada em evidências”. Lacan na Nota italiana diz que “[...] por alguma faceta de suas aventuras, o analista deve trazer a marca. Cabe a seus congêneres ‘saber’ encontrá-la”.[14] Essa marca, que buscamos nos testemunhos dos AE, não é uma marca inscrita nos neurônios ou no cérebro, como quer demonstrar Marc Solms, localizando as instâncias freudianas no sistema nervoso central,[15] ou Antonio Damasio, buscando para os acontecimentos subjetivos seus correlatos neuronais.[16] Voltaremos a essas marcas para definir melhor o corpo falante. Mas vejamos primeiro o que a clínica pode nos ajudar a esclarecer sobre o corpo e suas imagens.
A fibromialgia – doença imaginária?
O diagnóstico de fibromialgia é hoje muito difundido, especialmente nos países ocidentais do hemisfério norte. Entretanto, a síndrome da fibromialgia foi descrita pela primeira vez em 1816. No século XX a fibromialgia foi frequentemente considerada uma doença “imaginária”, mas em 1987, a Associação Médica Americana declarou-a uma doença “verdadeira”, e sua autenticidade foi reconhecida pela OMS em 1992. Ela é reconhecida em 3 a 5% da população dos países industrializados, dos quais 80 a 90% são mulheres. O principal sintoma da fibromialgia é a dor crônica, sem um correlato visível nos exames de imagem ou na superfície do corpo. Essa ausência de lesões faz com que ela não seja considerada uma doença psicossomática.
A paciente da qual vou lhes falar brevemente é acompanhada por um colega, Marcelo Quintão, em um Centro de Saúde. Ela circula na rede pública, entre ambulatórios, especialistas e serviços de urgência, há vários anos. Sua queixa de uma dor enigmática que migra em seu corpo, acompanhada de angústia, insônia e tristeza, já deu ensejo a vários diagnósticos. Não se sente em condições de trabalhar, tentou suicídio e foi afastada do trabalho.
Frequenta clínicos, neurologistas, ortopedistas e reumatologistas, sempre com a mesma queixa e uma demanda: que descubram o que ela tem. Tanto insiste que acaba recebendo pedidos de exames de imagem, ressonâncias magnéticas, tomografias computadorizadas. Os resultados já compõem uma grande coleção que ela traz às consultas. Não mostram nada positivo, mas às vezes algum dado sugestivo gera grande expectativa. Entretanto, logo a dor já se deslocou, os médicos não sabem o que fazer e encerram a investigação. Considera-se então rejeitada, menosprezada: ninguém acredita nela. Procurou diversas vezes receber um benefício do INSS e decide recorrer à justiça em busca desse direito. Um dia recebe a prescrição de um soro com morfina e se faz fotografar enquanto recebe a medicação, com foto adicional da prescrição. Assim terá algo a mostrar quando alguém duvidar de sua dor.
Inicialmente não dá seguimento às consultas agendadas com o psiquiatra, mas reaparece de maneira fortuita. Uma direção parece surgir quando ele lhe permite trazer seus exames e falar deles. Só assim é possível transpor a dimensão das imagens em que se sustenta, para depois falar de sua história. Ela vai passar então da pura satisfação pulsional de ser vista e se queixar a um germe de sujeito suposto saber. Ela vai falar de algo invisível, ausente das imagens, que é um modo de gozo que vai se ordenando a partir de uma fantasia de não reconhecimento e exclusão.
Passa a falar do Outro que não a reconhece, desde a mãe que, na infância, não acreditava nela, a privava e punia quando se queixava que os meninos abusavam dela. Na mesma lógica, foi casada com um homem que a maltratava e tinha uma amante. Quando esta engravidou de um filho homem, ele a abandonou com as três filhas mulheres, levando tudo o que tinha. Da mesma forma que, na ausência do pai alcoólatra, a mãe a fazia trabalhar, seu patrão a fazia de escrava, dispensando-a quando fez reivindicações.
O diagnóstico de fibromialgia lhe dá alguma sustentação, mas não lhe oferece garantia, já que até mesmo a ciência duvida desse diagnóstico. Só lhe resta o corpo, sem significação fálica, em cuja imagem tenta localizar um furo, fonte de sua dor. O que lhe falta, parece, é justamente o furo do inconsciente como troumatismo que possa ser subjetivado pelo ser falante, que reveste esse furo com seu corpo. Parece-me esclarecedor pensar que a marca de gozo produzida no corpo pelo significante pode faltar, quando nenhum significante se distingue em sua função de significante mestre. Haveria, então, segundo Jacques-Alain Miller, dois status do S1: o Um sozinho, que se destaca e marca o corpo, e o essaim, enxame significante (S1, S1, S1, S1...). Neste último caso, não é possível prever qual significante marcará o corpo.[17]
No caso dessa paciente, cujo corpo não se sustenta sem as imagens fornecidas pela ciência, ou as fotos com as quais ela tenta provar o seu sofrimento, a fibromialgia cumpre uma função – provisória – nomear o seu sofrimento. Falta-lhe a crença no próprio corpo para lhe dar consistência, e sua dor é uma tentativa desesperada de dar consistência ao corpo, que não encontra essa consistência no desejo ou no olhar do Outro. Penso em uma paciente esquizofrênica que andava com um pedaço de espelho no bolso e que se olhava nele dizendo: “quero ver no espelho senão eu morrerei”. Na falta de unidade do próprio corpo, que não lhe foi dada simbolicamente, ela precisava sempre olhar no seu espelhinho de bolso, recurso imaginário para se assegurar da existência do seu corpo. No caso da nossa paciente, temos um significante ao qual ela adere e um delírio de reivindicação, mas falta-lhe igualmente a crença do Outro para dar consistência ao seu corpo.
O corpo e seus gozos
No Seminário 23, Lacan diz que
[...] no sujeito que se sustenta no falasser, que é o que designo como sendo o inconsciente, há a capacidade de conjugar a fala e o que concerne a um certo gozo, aquele dito do falo, experimentado como parasitário devido a essa própria fala, devido ao falasser.[18]
Miller esclarece que
[...] quando o inconsciente é conceitualizado com base na fala e não mais na consciência, ele porta um novo nome: o falasser. O ser de que se trata não precede a fala, é [...] a fala que outorga o ser a esse animal por um efeito a posteriori. Trata-se do corpo falante com seus dois gozos, gozo da fala e gozo do corpo: [...] gozo da fala que Lacan identifica, com audácia e com lógica, ao gozo fálico, uma vez que este é desarmônico em relação ao corpo. O corpo falante goza [...] em dois registros: por um lado, ele goza de si mesmo, ele se goza [...] por outro, um órgão desse corpo se distingue de gozar de si mesmo, ele condensa e isola um gozo à parte que se reparte entre os objetos a. [...] Esse corpo não é unitário como o imaginário o faz crer.[19]
Por isso, o gozo fálico deve se separar na operação de castração. O corpo falante fala em termos de pulsões, apresentadas sob o modelo da cadeia significante. Se em sua lógica da fantasia Lacan disjunta o isso e o inconsciente – sou onde não penso, penso onde não sou – o conceito de corpo falante está na junção do isso com o inconsciente. As cadeias significantes que deciframos são conectadas com o corpo e são feitas de substância gozante.
Desde 1995, em uma Conferência sobre a imagem do corpo em psicanálise,[20] Miller ressalta a importância da separação entre o gozo fálico e o gozo do corpo. A maneira constante como Lacan dá conta da preeminência da imagem do corpo próprio nos seres humanos tem a ver com a suposição de uma falta, de um furo, que a imagem do corpo próprio viria recobrir. Não se trata apenas de um tema dos anos 1950, a partir da elaboração do estádio do espelho, pois Lacan continua a dar conta do privilégio da imagem também em seu último ensino, a partir da suposição de um furo. A primeira versão desse menos, no estádio do espelho, é um menos orgânico, com a ideia da prematuridade do organismo humano que a imagem viria remediar.
No Seminário 4, diz Miller, Lacan acrescenta ao júbilo da criança diante da imagem no espelho, a depressão. É possivelmente uma consequência do fato de que a unificação da imagem implica também uma separação em relação ao Outro. Para Miller, não devemos pensar que primeiro está a imagem e que a castração viria depois, senão que a castração invisível motiva o interesse da criança pela imagem especular.
No Seminário 23, Lacan fala da consistência corporal em termos de saco vazio, ou de pote.[21] “O que quer dizer consistência?” – pergunta Lacan. Ele responde que é o que mantém junto, por isso é simbolizada pela superfície.
Mesmo o corpo, nós o sentimos como pele, retendo em seu saco um monte de órgãos.[22] [...] O falasser adora seu corpo, continua Lacan, porque crê que o tem. Na realidade, ele não o tem, mas seu corpo é sua única consistência, consistência mental, bem entendido, pois seu corpo sai fora a todo instante. [...] Ter um corpo para adorar é a raiz do imaginário.[23]
Lacan é mais claro ainda na conferência dada em Nice, em 1974, onde diz que
[...] o homem [...] ama sua imagem como o que lhe é mais próximo, isto é, seu corpo. Simplesmente, de seu corpo, ele não tem estritamente nenhuma ideia. Ele crê que seja eu. [...] É um furo. E depois, fora, há a imagem. E com essa imagem, ele faz o mundo.[24]
Na mesma conferência, ele diz:
Vou dizer-lhes [...] a palavra da qual me sirvo para designar o inconsciente – [...] falasser. Permito-me aqui [...] uma pequena equivocidade – é o ser que fala, mas é também aquele que fala essa coisa fabulosa que, estritamente, só se sustenta pela linguagem, a saber, o ser.[25]
Podemos talvez pensar que em nossa paciente, cuja dor poderia lhe dar uma consistência corporal pela via da fantasia masoquista do maltrato – pela mãe, marido e patrão – não consegue essa consistência, da mesma forma que Joyce não a consegue com a surra que levou dos colegas. Seu corpo sai fora, o imaginário se esvai. Em nossa paciente, a dor muda de lugar, é inapreensível, e ela pede constantemente para ser vista e escutada, na tentativa de dar consistência ao seu ser. E é pela imagem que ela busca isso, mas a imagem não resolve, pois o Outro não acredita nela. Só quando nosso colega Marcelo, na função de analista, olha suas imagens e quer saber delas, e depois de sua história, dando crédito a ela, é que há um apaziguamento e um esboço de laço com o Outro. É a partir desse laço que o enxame, ou a constelação de significantes que a regem pode ir se reduzindo a um número mínimo de significantes, com a possibilidade, ou não, de construir uma ‘bricolagem’ que lhe dê uma certa estabilidade. Mas não me parece que ela possa prescindir do Outro para dar consistência a esse corpo que, até então, consistia através da dor.
Ainda nessa conferência, Lacan diz:
O que há como furo no centro da linguagem vale como o que há de furo no centro desse corpo, do qual só sabemos a proliferações imaginárias. Deve haver também um furo no centro, no cerne do real. É o que permite figurar essa configuração tórica que articulo, do nó borromeano.[26]
O que permite então fazer um bom nó é a articulação dos furos, da linguagem, do corpo e do real. Dessa forma, podemos tentar dizer o que é analisar o corpo falante.
Analisar o corpo falante
Em seu argumento para o Congresso da AMP, Miller propõe tomar a substituição do inconsciente freudiano pelo falasser lacaniano como o índice do que muda na psicanálise no século XXI.[27] E mais adiante ele afirma que fazer uma análise é trabalhar a castração do escabelo para trazer à luz o gozo opaco do sintoma, ao passo que fazer o passe seria jogar com o sintoma assim esvaziado, a fim de fazer dele um escabelo, sob os aplausos do grupo analítico. E acrescenta: isso é evidentemente um fato de sublimação. O escabelo seria a última defesa contra o real e, uma vez derrubado, resta ao falasser analisado demonstrar seu saber fazer com o real, saber bem dizê-lo.[28]
O que é o escabelo, quando estamos falando do percurso de uma análise, e não mais de Joyce, a propósito de quem Lacan introduziu esse conceito, como um neologismo, a partir do fato de que Joyce, “il se croit beau”? “Escabeau”, ou SKABO, que deu nome ao nosso boletim preparatório ao Congresso, é o pedestal sobre o qual o falasser sobe para se fazer belo.[29]
Patricio Alvarez aponta, em Papers 1, a relação entre o escabelo e a fantasia, esclarecida por Miller em Los signos del goce e em Sutilezas analíticas. Assim, a “escabelastração”[30] da qual fala Lacan em Joyce, o sintoma, implica uma destituição da fantasia fálica para revelar o gozo opaco do sintoma. Mas por que, desmontado o escabelo da fantasia, o passe consistiria em fazer do sinthoma um escabelo? Para Miller, o passe assume o sentido de como fazer com o sinthoma, e fazer o passe é um convite a fabricar sentido, mas “sentido que denota o sinthoma”. Não é a liberdade de um sujeito barrado, vazio, mas a “prisão do parlêtre”.[31] Essa prisão, creio, não é sem relação com a pergunta de Lacan, no final do Seminário 11, sobre como o sujeito vive a pulsão depois da travessia da fantasia. Ou sobre um saber fazer com o sinthoma no final da análise, saber fazer com o impossível.
Para Mauricio Tarrab,[32] o escabelo não substitui nem abarca o conceito de fantasia, mas está em relação com o gozo sentido e, assim, comparte essa borda com a fantasia. Ainda que o escabelo pareça ter um pé no Outro, não vem do Outro. É o que o torna inédito. Ele vem da “medíocre desgraça”,[33] como Miller chama, em Piezas sueltas, o acontecimento de corpo que é a matriz do sinthoma e, portanto, leva a marca do singular com que o parlêtre se apresenta no mundo. A questão, para Tarrab, é saber se o escabelo conserva algo do singular com o qual ele constrói um semblante. O escabelo é fruto de um trabalho e é a carta de apresentação do parlêtre no mundo, que se constrói a partir de um pedaço de real, e não do Outro. Ou seja, a partir da relação singular de cada um com lalíngua, o escabelo faz com que a resposta singular à existência entre com esforço no laço social.
Éric Laurent, na sua aula sobre “Falar com o corpo escabelo”,[34] explora a relação entre o escabelo e a sublimação: o pedestal sobre o qual o falasser se ergue é o que lhe permite “elevar-se à dignidade da Coisa”, tal como propõe Lacan no Seminário 7, A ética da psicanálise. O problema da sublimação consistiria em dar conta de como o gozo autoerótico da pulsão vai em direção ao desejo do Outro.
Miller ressalta que o conceito de escabelo comporta a sublimação freudiana em seu cruzamento com o narcisismo. Mas trata-se de um narcisismo modificado, esclarece Laurent, na medida em que não se trata mais somente da imagem, mas da relação de crença que liga o falasser ao corpo. Narcisismo em que o corpo é idolatrado, em uma relação de desconhecimento particular.
Retomando as referências de Lacan sobre o corpo como consistência mental e como furo, por fora do qual há a imagem, Laurent ressalta que para Lacan o que vem primeiro não é a representação, a imagem, mas o corpo, marcado pelo trauma. O corpo é um furo, e o falasser tenta preencher esse furo com a crença. Se na época do Seminário 7 Lacan instalava o lugar do gozo como um vazio e se interessava pelos objetos que o povoam. Em 1975 temos primeiro o furo e depois a imagem como primeira representação que faz barreira a esse furo. O escabelo condiciona no homem o fato de que ele vive do ser, ou esvazia o ser – vit de l’être ou vide l’être, diz Lacan.[35] O corpo é o furo, o trouma. O falasser tem seu corpo a partir do furo, é um ser de vazio.
Podemos verificar isso, de maneira particular, nos testemunhos de passe do AE, Ram Mandil. Ram com o vazio no saco, que não tem mais que ser preenchido como imperativo superegoico. Com o sintoma “ensacador de demandas”, ele procurava dar uma medida fálica a tudo que se apresentava como demanda do Outro. Através de sua fantasia, procurava converter a falta no Outro em objetos passíveis de ser “ensacados”. Com sua mochila pesada, ele procurava carregar todos os objetos que pudessem ser demandados pelo Outro. A fórmula “há um vazio em seu corpo, e ele precisa ser preenchido” permite apreender a significação fálica dada a esse vazio. A interpretação do analista – voici le sac-à-dos du clandestin, toujours lourd – lhe permite perceber o seu esforço sacrificial e como é impossível ter a justa medida. É justamente a partir do vazio que um corpo pode se estruturar. Emerge, então, a figura do saco vazio, que é da ordem de um sinthoma, que lhe traz satisfação.[36]
Ram explica que, na sua experiência, a abertura dos orifícios corporais foi vivida, no imaginário, como um encontro com a inconsistência corporal. O masoquismo pode ser um modo através do qual o falasser procura se assegurar da consistência do seu corpo. Por mais aterrador que seja o modo de viver a cena fantasmática, seu corpo estava lá. O consentimento com um vazio inassimilável em seu corpo, a consideração da consistência corporal na perspectiva do não-todo, abre a possibilidade de extrair uma nova satisfação a partir desse vazio, ali onde a resposta fantasmática era fazer consistir um corpo pesado e mortificado.[37]
Vemos então que a castração do escabelo está ligada à destituição de uma fantasia fálica, onde está em questão um gozo masoquista, sacrificial. E a escabelastração esvazia o ser e dá existência ao vazio, com uma nova forma de satisfação. Mas para fazer o passe, não é suficiente encontrar o gozo opaco do sinthoma, despojado da fantasia fálica. É preciso refazer um laço com o Outro, e é aí que o escabelo reaparece como aquilo sobre o qual o falasser pode içar-se para se fazer belo diante da comunidade analítica. Para Ram, trata-se da passagem da oblatividade, que implica uma mortificação do desejo, à generosidade, que significa dar o que não se tem.
Levando em consideração o último testemunho de Ram Mandil apresentado em outubro de 2015, em Belo Horizonte, e uma conferência de Marie-Hélène Brousse, na mesma ocasião, sobre a invenção em Lacan, penso que podemos perceber a passagem do inconsciente freudiano, recalcado, representado pelo nome Avraham, que constitui o sujeito como sintoma do par parental, ao corpo falante marcado por lalíngua, inconsciente real inventado com as letras AVD, imagem significantizada que lhe aparece em um sonho no final da análise, tal como a fórmula da trimetilamina para Freud. Avdalah, palavra hebraica evocada a partir dessas letras, significa separação, nos diz Ram. Mas pode-se também ouvir aí – há vida lá – o corpo está vivificado.
Como nos disse Rômulo Ferreira da Silva no recente ENAPOL, cada vez mais os sujeitos tomam distância do simbólico e se aproximam das imagens, o que dá um novo estatuto ao imaginário, mais próximo do real. Se o simbólico não é mais o que era, é preciso contar com o imaginário para abordar o real sem lei, não regulado pelo simbólico. É o que o caso de fibromialgia, por um lado, e o caso desse AE, por outro, nos mostram. Na clínica contemporânea, podemos realmente fazer um bom uso das imagens, que não se submetem ao sentido, imagens significantizadas, lugar em que o imaginário se enoda ao gozo. Isso é consoante com o ultimíssimo ensino de Lacan, que propõe que o imaginário se imiscua no real ou que tentemos imaginar, ou “imajar” o real. Trata-se, segundo Rômulo,[38] de dar uma imagem do real desvinculada do simbólico, ou seja, sem nenhum compromisso com o sentido. Nas análises, imagens sonoras e visuais sutis interferem no programa de gozo dos analisantes, como mostram algumas intervenções dos analistas nos testemunhos dos AE.
Trata-se ainda do que faz Lacan com o nó borromeano: “[...] imaginar o real passa pela estranha materialização que constituem estas figuras [...] materialização do pensamento [...] imaginar o saber das coisas”.[39] O nó borromeano, diz Lacan, é o que, no pensamento, faz matéria, o que se sustenta junto e é maleável”.[40]
Elisa Alvarenga é psicanalista membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). Elisa é AME da EBP/AMP e AE da EBP/AMP [2000-2003]. É médica psiquiatra, com mestrado em filosofia (UFMG) e doutorado em psicanálise (Universidade de Paris 8).
Derivas analíticas agradece a Elisa Alvarenga por sua colaboração com este número da revista.
[1] MILLER, 2015, p. 24.
[2] LACAN, (1972-1973) 1985, p. 178.
[3] LACAN, (1975-1976) 2007, p. 128.
[4] LACAN, 2003, p. 561.
[5] LACAN, (1975-1976) 2007, p. 135.
[6] FREUD, (1915) 1976, p. 203.
[7] LACAN, (1975-1976) 2007, p. 18.
[8] FREUD, (1950 [1895]) 1996.
[9] LAURENT, 2013, p. 76-77.
[10] FREUD, (1920) 1996.
[11] FREUD, (1930) 1996.
[12] LACAN, (1946) 1998, p. 160.
[13] BASSOLS, 2015.
[14] LACAN, (1973) 2003, p. 313.
[15] Cf. SOLMS, M. (Pour la science, 2004, p. 78) citado por Éric Laurent no texto Las vías sin salida del psicoanálisis cognitivo, publicado em Lost in cognition, Diva, 2005, p. 65: “Las cartografías neurológicas recientes están en adecuación con la descripción hecha por Freud. La región central del tronco cerebral y el sistema límbico – responsable de los instintos y de las pulsiones – corresponden al Ello de Freud. La región frontal ventral, que controla la inhibición selectiva, la región frontal dorsal, que controla los pensamientos conscientes, y el cortex posterior, que percibe el mundo exterior, corresponden al yo y al superyó”.
[16] DAMASIO, 1995.
[17] MILLER, 2012, p. 112.
[18] LACAN, (1975-1976) 2007, p. 55.
[19] MILLER, 2015, p. 29-30.
[20] MILLER, 2007, p. 377-394.
[21] LACAN, J. (1975-1976) 2007, p. 19.
[22] LACAN, J. (1975-1976) 2007, p. 63.
[23] LACAN, J. (1975-1976) 2007, p. 64.
[24] LACAN, 2014, p. 18.
[25] LACAN, 2014, p. 19.
[26] LACAN, 2014, p. 21.
[27] MILLER, 2015, p. 26.
[28] MILLER, 2015, p. 28-29.
[29] MILLER, 2015, p. 27.
[30] LACAN, p. 563.
[31] MILLER, 2011, p. 162.
[32] TARRAB, 2015, p. 68-69.
[33] MILLER, 2013, p. 81.
[34] LAURENT, <www.radiolacan.com>.
[35] LACAN, 2001, p. 565.
[36] MANDIL, 2015, p. 186-187.
[37] MANDIL, 2014.
[38] SILVA, 2015, p. 168.
[39] MILLER, 2012, p. 194.
[40] LACAN, 20 déc. 1977. Inédit.
Referências
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