Nata Minor
“Não se pode evitar uma metamorfose”
Uma noite, um amigo leu para mim essa frase de Léon Bloy, e eu pensei no traço do T. Desde a morte de meu pai, minha letra não era mais a mesma, seu aspecto geral não era mais igual, certos caracteres tinham nitidamente sofrido uma modificação: o traço do T havia mudado. Prudente e discreta, minha letra tinha imperceptivelmente começado a mudar enquanto ele ainda estava vivo, mas nós já sabíamos que o tempo que lhe restava estava reduzido a quase nada. Assim, antecipando o instante da separação, minha letra se adiantara, estendendo suas redes e se apropriando progressivamente da letra de meu pai. Apenas alguns detalhes, alguns traços, curvas, pernas. Ela permanecia minha, mas às suas singularidades se acrescentaram certas particularidades da outra letra, que pareciam nutri-la, torná-la mais cursiva, mais legível, como se essa interiorização, essa apropriação, esse domínio de uma escrita sobre outra trouxesse um elã não ao mesmo, mas ao novo, ao vivo.
Essa legibilidade nova de minha letra não apareceu imediatamente, foi preciso um tempo, longo, curto, eu não saberia estimá-lo – eu diria, o tempo de consentir. Simultaneamente a esse grafismo que se instalava, se ancorava, perdia sua aparência errante, algo diferente acontecia, começava a nascer. Algo que eu percebia e que talvez sempre soubera. Isso dizia respeito à herança, à linhagem, ao fato de que as gerações que nos antecedem deixam para as seguintes seu quilo de plumas, seu quilo de chumbo e que o passado de nosso futuro está sempre ali, sob a pele, à disposição. Deixar-se tocar por essas evidências é uma coisa. Formulá-las, escrevê-las nessas condições não seria satisfatório. É como uma fruta, ainda verde, de uma colheita a ser feita, de um trabalho de luto em curso.
Na vida ocorrem incidentes bizarros que adquirem depois o estatuto de acontecimento.
Assim, um dia, recebi uma carta. Ela tinha sido postada num lugar que não figura nos mapas rodoviários, vinda de uma pessoa que eu não conhecia, que não me conhecia e que extraíra de uma revista passagens de um texto que eu publicara. “Onde podemos encontrar o seu livro, dizia a carta, de qual língua ele foi traduzido?” Seguiram-se suposições a respeito da língua original: nórdica, germânica ou eslava? Eu contava aos outros esse fato curioso, que recebi como um presente, e respondi: “traduzido do inconsciente”.
A reação não tardou, foram agradecimentos breves e decepcionados, e o mal-entendido levou-me a refletir sobre o que no meu texto tinha levado a isso. Algo na minha escrita havia revelado a presença, sob as palavras, de outras palavras de uma língua estrangeira que haviam se insinuado ali clandestinamente. O incidente se transformou num acontecimento e se impôs como uma evidência, pois inegavelmente eu traduzia.
Pobre daqueles que, tentando escrever numa língua usual – para eles, língua de adoção – se obstinam, sem saber, a encontrar a palavra justa que retomará, num único som, toda a seiva das palavras da língua materna. Como se se tratasse de restaurar, no terreno de seu cotidiano, a paisagem de uma terra longínqua, de uma língua hoje esquecida ou destituída. Passado, agora morto, que tentamos reviver nos agarrando ao mesmo, repetindo-o. Disso resulta um impossível, que é próprio de nenhuma língua, um entredois pobre e desidratado. A língua de adoção parece recoberta por uma sombra, tomada por uma solidão e uma melancolia. A carga pulsional da fala primeira não conseguiu alcançá-la, não conseguiu atingi-la. A libido parece ter se demorado num lugar distante, proibido, ignorado. É uma libido clorótica, que erra e flutua antes de adormecer. Língua perdida, imagem perdida de si mesma. Imagem sem laços sobre a qual o Eu [Je] nada mais sabe.
O que acontecia entre mim e essa língua que se tornou minha desde muito tempo? Às vezes as palavras me traíam, eu as recitava sem poder transcrevê-las, reforçadas por rumores, por murmúrios indistintos, e eu permanecia ali, buscando-as na ubiquidade dos tempos e dos espaços. Poucas palavras me convinham. Sucediam-se infinitos rascunhos, as manchas, as repetições, as rasuras assinalavam o mal-estar e a inadequação. As palavras se encontravam ali, deslocadas, como essas pessoas em tempos de guerra, de grandes turbulências, abarrotadas de pacotes que não servem para mais nada e que mal se lembram do que há dentro. Apenas alguns gestos esboçados, para tirar os barbantes e extrair deles algum objeto sem forma, sem nome, que perderam até mesmo sua cor e que parecem ter um sentido para as pessoas mais próximas. Mas são gestos de falso sentido, de mal-entendido, pois aqueles a quem eles se endereçam saíram das memórias, e somente o corpo da pessoa deslocada conservou deles uma espécie de marca.
Havia também rascunhos de outra ordem. Eles continham brancos, muitos brancos. O movimento, as sensações estavam suspensos, e a página esperava a palavra, mágica e “justa”, que, dando ao corpo do escrito sua ancoragem indispensável, faria dele um texto onde cada palavra seria uma multidão de palavras, cada imagem surgida, uma multidão de imagens, cada letra, todos os meus alfabetos. E a espera se prolongava. Frequentemente eu podia presumir o número de sílabas de que precisaria para que cessasse a confusão, a vacilação, a vacuidade que tomavam conta de mim. Mas as sílabas não bastavam. Era preciso outra coisa, uma pronúncia, uma tonalidade, uma música, que eu sabia existir, que eu ouvia pulsar e que eu não conseguia fixar, compreender. Como se nenhuma palavra pudesse delimitá-las, contê-las. Como se elas escapassem a essa língua, recusassem a se apropriar dela. Minha língua de adoção me parecia, então, arruinada e muda, e as palavras se apresentavam, mas não alcançavam sua finalidade ou, então, a ultrapassavam, e os espaços brancos se tornavam páginas, páginas brancas e quadriculadas.
“Nenhum erro em meu ditado”: eu sacudia meu boletim diante de minha mãe indiferente. Para minha mãe faltava charme às palavras francesas. Por mais que ela as arrumasse, elas não eram suficientemente maleáveis. Elas não se prestavam como as palavras russas a múltiplas variações. Elas não podiam imprimir a uma frase inteira posturas, languidez, “turqueries,”[1] coisas saborosas e engraçadas que nos faziam morrer de rir. Não, nenhuma palavra francesa podia nos fazer ouvir o que uma única palavra russa, uma única, tinha o poder de dizer.
“Venha, vamos crepuscular, boudim soumirkovat” dizia ela, me convidando a assentar ao seu lado e a olhar em silêncio, através das janelas, a noite indecisa e pálida. Essas noites de maio em Leningrado, famosas por serem brancas e perfumadas, marcaram a menina que eu era com uma impressão de profunda melancolia. Desde então, o distanciamento e a nostalgia enfeitaram-nas de mil reflexos, de pios de pássaros, de um halo claro-escuro e tinidos leves que nessas terras acompanham o desgelo.
“Crepusculemos”, dizia minha mãe. “Nostalgiemos” teria sido mais correto, pois é à nostalgia que ela me convidava na expectativa interminável de um exílio que viria, que eu temia, que me desesperava. Partimos, então, e chegamos. A palavra soumirkovat não quis dizer mais nada, “nenhum erro” tomou o seu lugar. Mas além da fronteira, as noites brancas se demoravam, e a nostalgia se instalou para sempre.
O francês se tornou rapidamente a língua de todos os dias, aquela de todas as leituras, dos estudos e das brincadeiras. Minha língua de origem não tinha mais direito de existir. Eu a sabia errante por outros caminhos, anárquica, triste, revoltada, fora das leis da gramática e dos bons modos. No entanto, eu ignorava ou não queria ver o sulco que a nostalgia pacientemente escavava nela, nem como as duas línguas me acompanhavam, afetavam a minha fala, teciam minha escrita, faziam retorno em cada uma de minhas palavras, as infiltravam de ritmos, de locuções bizarras, e também de muitas canções. Os rascunhos testemunhavam disso com seus brancos, suas manchas, suas onomatopeias e o modo como o texto tomava forma. Pois um mapa se desprendia dessa desordem onde se via, ao examiná-lo, linhas forçadas com traços pálidos, fontes subterrâneas, emaranhados e falas, sons bárbaros, vozes isoladas, cantos. Falas, músicas, cadentes como estrelas. E como elas, inapreensíveis.
“Traduzido do inconsciente”, eu respondera. Na pressa, a fórmula parecia satisfatória, eu não corria muito o risco de me enganar: todos nós traduzimos uma língua longínqua, laboriosamente escondida e solidamente tricotada. Contudo, um ato suplementar advém quando a existência, em todos os seus aspectos, é vivida sob o pano de fundo de uma língua primeira, aparentemente destituída de sua função, ocupando com seu rumor nossa língua de uso, de adoção. É um rumor exigente e precioso, feito de palavras que um dia pronunciamos, que outros nos disseram, que nos foram ditas ao pé do ouvido, ou em voz alta e forte, antes, bem antes de nós.
A nostalgia, a falta nos leva constantemente a reinventar essas palavras, a fim de nos apropriarmos delas, de semear nelas essa outra língua que se tornou nossa. E nós queremos palavras vivas que retomarão a plenitude, toda a sensualidade, todo o gozo da palavra de origem, carnal, sexuada, portadora de todos os traços que ela imprimiu nas memórias cuja herança carregamos. É uma língua terceira que procuramos, e quando, enfim, a escrevemos, é a história de um casamento e de uma metamorfose.
Tradução: Camila Nuic
Colaboração: Márcia Bandeira
Nata Minor é psicanalista, romancista, tradutora e ensaísta francesa. É tradutora de autores russos, notadamente Puchkin. Entre seus romances destacamos La partie des dames (2001).
Derivas analíticas agradece a Jean-Michel Rey por sua amável autorização de tradução e publicação deste texto, publicado originalmente na revista L’Écrit du temps, n. 13, de 1987.
[1] Na arte, representação de cenas turcas, obra de inspiração turca. Modo de agir à maneira turca, aspereza, dureza. (N.T.).