Todxs maravilhosxs

Duelo de vogue: corpos, política e modos de gozo

 

Camila Alvarenga

 

 

O contemporâneo se caracteriza como um tempo de mudanças grandes e rápidas no campo das lutas de grupos oprimidos socialmente, tais como mulheres, negros e LGBTs. O conservadorismo e o preconceito geram segregações importantes nesses grupos. Mas igualmente importantes são as reações e as articulações, ou seja, as respostas à segregação sofrida.

É visível o aumento da mobilização de jovens no seio desses grupos − eles trazem um discurso de luta por direitos e igualdade social. E sua atuação pela via da realização de intervenções variadas nos contextos social e político, muitas com caráter bastante criativo ou artístico, podem ser pensadas no campo da psicanálise lacaniana pela via da clínica do ato, que também se apresenta no contemporâneo sobretudo pelas infrações, pela rebeldia e pelas transgressões.

Gostaríamos de examinar, no contexto dessa reflexão, uma modalidade artístico-cultural específica no âmbito da luta relacionada às questões de gênero e LGBT: o “duelo de vogue”. Essa manifestação artística encontra certas ressonâncias com aquilo que, na psicanálise de orientação lacaniana, Jacques-Alain Miller chamou de “socialização pela via do sintoma” na intervenção de encerramento da III Jornada do Instituto da Criança, em 2015.[1]

No campo das discussões sobre gênero e questões LGBT, encontramos em Belo Horizonte diversos grupos e movimentos que realizam intervenções artísticas nesse sentido. Entre elas se destaca o “duelo de vogue”, que ocorre na festa Dengue, promovida desde 2013 por Guilherme Morais, criador da plataforma artística cultural This is noT. Além dessa festa, Belo Horizonte tem se destacado na cena do voguing no Brasil, promovendo, por exemplo, o maior festival brasileiro de Vogue, o Vogue Fever.[2]

Em uma breve entrevista que nos foi concedida por e-mail, Guilherme nos ajuda a levantar questões que permitem pensar sobre uma das formas de se manifestar frente aos problemas de gênero no campo do social que tem a juventude de hoje.

A primeira coisa que chama a atenção em relação ao duelo de vogue é justamente seu nome. A palavra “duelo” indica, já de saída, que se trata de um campo onde se trava uma batalha. Qual é a luta desses jovens? O que está em jogo num duelo de vogue?

Vogue ou voguing[3] é uma dança moderna estilizada, caracterizada por linhas e poses semelhantes àquela de modelos, inspirada na revista de moda de mesmo nome. Esse estilo de dança surgiu na década de 1960, nas Ballrooms: festas sediadas por Houses, coletivos de artistas, dançarinos e performers LGBTs completamente segregados, que, expulsos de casa, eram acolhidos nas Houses, tornando-se seus “filhos” e mudando inclusive seu nome, a fim de mostrar esse pertencimento. No início, a dança era chamada de apresentação e performance; com o tempo foi se complexificando até receber o nome de vogue.

Na década de 1990, ao lançar o hit pop mundial com o nome da dança, Madonna popularizou o termo e seu estilo[4], integrando inclusive em seu staff de bailarinos negros e gays da periferia, o que tornou conhecida aos olhos do grande público essa cena anteriormente segregada e desconhecida. Guilherme Morais fala da importância primordial do voguing nos seguintes termos:

[...] o que mudou para as pessoas que estavam ali construindo aquela história foi, primeiro, encontrar uma família, uma casa ou uma família de trabalho, onde eram supervalorizadas. Era uma situação de encontro, de realizações, de aceitações e, principalmente, de expressão; elas se transformavam em agentes criadores de identidade, de gênero e de cultura.

O voguing é, portanto, antes de tudo, um meio de construção de um lugar, o que permite que os sujeitos construam identificações, nomeações e um lugar no laço social.

Desde a década de 1970 as discussões sobre gênero já ocorriam de forma significativa no campo das ciências sociais. E ainda que nos anos 1980 tenha ocorrido um retrocesso nessas discussões − em relação aos direitos LGBTs, devido sobretudo à epidemia de AIDS, que lançou a homossexualidade novamente no campo das patologias, a partir da década de 1990 há uma reconfiguração desse movimento e dos estudos de gênero, marcados especialmente pela teoria queer, a partir da publicação do livro Problemas de gênero,[5] de Judith Butler.

Os anos 1990 trouxeram uma série de transformações relativas à cultura LGBT, e a repercussão das questões de gênero não ficava mais restrita a um grupo social. Isso começa a ser levado a público de forma mais contundente, e a arte certamente contribuiu muito para essa disseminação. Hoje o cenário é outro e, apesar dos avanços, a segregação persiste, carregando inclusive uma violência grande em relação aos LGBTs. É frente a isso que os movimentos culturais e artísticos desses grupos parecem se posicionar como resistência.

Atualmente, em Belo Horizonte, nas festas em que ocorrem os duelos de vogue o público presente é, em sua maioria, composto de jovens que, informados pelas redes sociais sobre os duelos, se identificam de alguma forma com o movimento. Os voguers, artistas performáticos que competem, se montam, ou seja, se produzem com maquiagem, roupas e acessórios para uma apresentação pública, e a competição − que ocorre entre duplas até a final − é sempre muito animada e festejada. Apesar de se tratar de uma disputa, não é o clima de rivalidade que impera. Existe ali uma valorização da imagem, das performances e dos semblantes, representações expressas pela aparência e pelo desempenho dos competidores, que envolvem o público em geral.

Algumas edições dessa festa ocorreram em parceria com outra modalidade de disputa artística que ocorre na cidade há mais de 10 anos: os duelos de MCs, que são promovidos pelo coletivo Família de Rua sob o viaduto de Santa Teresa. Alguns estudos o apontam como forma de reivindicação de um lugar no espaço urbano da população marginalizada da periferia, localizando tal performance dentro de uma ideia de resistência. Nessas performances há também um movimento de identificação, de filiação identitária, o que nos remete à fala de Guilherme Morais sobre o lugar primordial das performances de voguing. Nos duelos que ocorreram em conjunto, formavam-se pares de MC e voguer, os quais competiam com outros pares, até um par vencer a final da disputa.

Questionado sobre as semelhanças entre os dois duelos, Guilherme diz que se trata de coisas diferentes, de modalidades distintas de expressão:

[...] o Família de Rua tem mais experiência e tempo de estrada que o duelo de vogue, mas o que eles têm em comum, além da vontade de fazer, é que ambos lidam com questões de anunciamentos; trata-se de colocar a cara a tapa (ou o corpo), com questões sexistas, de gênero, e ambos os movimentos estão em contínua construção, aprendendo a cada evento como ser melhor e mais consciente. Há ali um diálogo entre corpo e voz, em que devem estar em sintonia. Isso é mara o quê? Vilhoso! O que mais precisamos é nos sintonizar com o outro, com o diferente, o desconhecido. Conhecer e trocar.

A essa altura já é possível notar que, além de ser uma batalha por uma causa social que representa, de certa forma, a luta LGBT, o duelo de vogue é também uma intervenção que, acima de tudo, coloca em cena os corpos dos sujeitos que dele participam. Assim, ele pode ser considerado não só em sua vertente política, mas também como a expressão mesma do singular, pois quando se pensa nos corpos em cena, são as questões das identificações e dos modos de gozo que aparecem, ou seja, modos de satisfação pulsional, formas de estar no mundo.

Quando perguntado sobre os objetivos da criação da Dengue, Guilherme deixa claro que não tinha objetivos delimitados, e que estes consistiam em provocar e experimentar; quanto ao resgate dos duelos de vogue da década de 1960, afirma:

Completamente, em 100% queria me referir ao movimento daquela época, de autoexpressão, de autoestima, de empoderamento e dizer que somos todxs maravilhosxs! Eu nem me preocupo com a técnica do movimento, estou mais preocupado se a pessoa está se jogando e vivendo esse um minuto intensamente com seu corpo, experimentando suas possibilidades como um todo.

Assim, ao colocar em jogo os corpos dos sujeitos, o duelo de vogue pode ser pensado não apenas pela via política, quando está posta em cena a luta do movimento LGBT, mas também em relação aos modos de gozo ou, mais especificamente, ao que Miller chama de “socialização pela via do sintoma”.[6] É interessante observar que há, ao mesmo tempo, algo do singular e do coletivo, identificatório, em jogo no plano tanto político quanto no subjetivo. O duelo de vogue como modalidade performática parece permitir tais leituras.

Quando se fala em socialização em psicanálise, é preciso considerar que semblantes e identificações estão em jogo. E na contemporaneidade as identificações não são referidas aos ideais, às figuras valorizadas ou construídas verticalmente como na época de Freud, por exemplo. Em nosso tempo, frente à falência dos ideais simbólicos, que se pode constatar pela exacerbação do imaginário e do consumo, essas identificações se dão de forma horizontal e têm ligação com esses modos de gozo ou com o sintoma. Isso significa que os sujeitos atualmente não se referenciam tanto a figuras ideais na construção dessas identificações, mas sim a traços ligados aos modos de gozo ou sintomas.

Assim, pode-se localizar essa modalidade de arte performática como suporte da construção de um lugar para alguns desses sujeitos, uma vez que, a partir da identificação a traços do grupo, é possível produzir nomeações, que por sua vez marcam um lugar no laço social.

Na medida em que os jovens voguers jogam o corpo nesses duelos, entra em cena não apenas um real desse corpo pulsional, que tem relação com o gozo, com a satisfação, mas também os sujeitos, se valendo da expressão de seu corpo, se dão a ver pelo Outro, o Outro social, da cultura, da linguagem, lugar ao qual um sujeito se remete na construção de uma nominação, uma representação simbólica. Nesse movimento identificatório, nesse chamado à nominação, o sujeito não apenas se inscreve na socialização, mas também cerne um gozo presente no corpo, como aponta Fajnwaks.[7] De acordo com Miller,[8] a socialização que se pode fazer sob o modo sintomático sugere uma nova aliança entre a identificação e a pulsão.

Assim, os corpos em interação e sua expressão nos duelos de vogue marcam um lugar de luta política e identificação atrelados a um movimento pulsional. Um modo de gozo que encontra no grupo um lugar para se inscrever, que o localiza e autoriza.

 

Camila Alvarenga é psicanalista, mestre em psicologia pela PUC Minas, colabora com Derivas analíticas e já compôs com entusiasmo o público dos duelos de vogue.
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Referências

ALBUQUERQUE, C. A. Batalhas de afirmação batalhas de institucionalidade. Rumores, São Paulo, n. 14, v. 7, jul./dez. 2013. Revista Online de Comunicação, Linguagem e Mídias da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP).

BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

FAJNWAKS, F. Entrevista ao Portal Minas com Lacan. 2016. Disponível em: <http://minascomlacan.com.br/blog/entrevista-fabian-fajnwaks>.

MILLER, J.-A. Em direção à adolescência. III Jornada do Instituto da Criança. 2015. Disponível em: <http://minascomlacan.com.br/blog/em-direcao-a-adolescencia>.

PARIS IS BURNING. Direção e produção: Jennie Livingston. EUA, Miramax BBC, 1990. 112 min.

STRIKE A POSE. Direção: Ester Gould, Reijer Zwaan. Produção: Rosan Boersman. Holanda/Bélgica, CTM Docs, Other Room, The, Serendipity films, 2016. 83 min. 

Para saber mais sobre o assunto, remetemos o leitor a estes links:

<http://www.bhisvoguing.com>.

<http://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2016/05/28/interna_gerais,766923/conheca-o-vogue-danca-de-empoderamento-que-arrebata-adeptos-em-bh.shtml>.

<http://www.otempo.com.br/pampulha/bh-capital-do-vogue-1.1398108>.

<http://www.sescmg.com.br/wps/portal/sescmg/centrais/central_de_programacao/programacao_aberta/cultura+-+programacao/duelo+de+vogue>.

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Notas

[1] O texto de J.-A. Miller pode ser acessado através do link <http://minascomlacan.com.br/blog/em-direcao-a-adolescencia>.

[2] Consultar o site <http://www.bhisvoguing.com/voguefever> e a página do evento no Facebook: <https://web.facebook.com/bhisvoguing>.

[3] Para saber mais, indicamos o documentário Paris is Burning.

[4] Sobre o assunto, indicamos o documentário Strike a Pose.

[5] BUTLER, 2003.

[6] MILLER, 2015.

[7] FAJNWAKS, 2016.

[8] MILLER, 2015.

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