Nem neurose nem psicose: rumo a uma psicopatologia não-toda

 

Resenha

¿Ni neurosis ni psicosis?, de Nieves Soria.
Buenos Aires: Ediciones Del Bucle, 2015. 

 

Cecília Lana

 

 


O livro ¿Ni neurosis ni psicosis? [Nem neurose nem psicose?] reúne as lições do seminário ministrado pela psicanalista argentina Nieves Soria durante o ano 2011, em Buenos Aires. Publicada em espanhol em 2015, a obra ainda não foi traduzida para o português e recentemente começou a ser lida no Brasil, a partir das vindas mais frequentes da psicanalista, a convite dos colegas brasileiros.

Em ¿Ni neurosis ni psicosis?, Nieves Soria parte das investigações do Campo Freudiano sobre os casos inclassificáveis da clínica e a psicose ordinária, e se detém naquilo que ela chama de “zona de fronteira”. Assim, a autora coloca em questão as categorias clínicas tradicionais desde Freud, as quais foram formalizadas no primeiro ensino de Lacan. O título do seminário, expresso em forma de pergunta, é provocativo e explicita de saída o destaque dado pela psicanalista ao limite da classificação binária própria da clínica baseada no complexo de Édipo – uma clínica que propõe espaços nítidos e bem demarcados entre neurose e psicose.

No entanto, ao mesmo tempo, é interessante o fato de Nieves Soria não se mostrar partidária de um abandono completo da prática diagnóstica. Como ela afirma em uma das lições do livro,

[...] não estamos falando em colocar o diagnóstico em suspenso. Não se trata de maneira alguma de chegar à conclusão de que classificar não vale a pena e de que tudo é inclassificável – me parece que essa perspectiva não serve para nada e nos desorienta –, mas sim de poder deixar certos problemas abertos, de modo tal que o psicanalista possa se orientar nas bordas desse furo, encontrar nessa zona de fronteira mesma uma orientação, sem tentar fugir rapidamente dali.[1]

Deixar em aberto a pergunta sobre o inclassificável é uma postura ética e política da psicanalista, que alerta para os riscos de construções e conduções clínicas apressadas, guiadas pelo olhar classificatório, que apaga a singularidade dos casos. A intervenção analítica, defende Nieves Soria, encontra-se entre o calculável e o incalculável, entre o classificável e o inclassificável, “mas essa zona da fronteira desconcerta o analista em sua prática”.[2] A autora, assim, provoca e convida os analistas a suportar a angústia de não classificar, de atuar clinicamente nessa incômoda região do “entre”.

Em ¿Ni neurosis ni psicosis?, o leitor poderá acompanhar os diálogos profícuos entre Nieves Soria e outros psicanalistas – como Claudio Godoy, convidado para ministrar uma lição sobre a fronteira entre a neurose obsessiva e a psicose; Fabián Schejtman, que dita uma instigante lição sobre neuroses não desencadeadas e/ou polisinthomadas; e Bernardino Horne, que participa como comentador da lição sobre o caso do Homem dos Lobos e da lição sobre as psicoses ordinárias. Além disso, Nieves reserva os últimos capítulos do livro à discussão de casos em que nem o diagnóstico de neurose nem o de psicose orientam a direção do tratamento.

Sintoma e estrutura

O seminário de Soria estrutura-se em torno de duas (complexas) questões: O que são as categorias psicopatológicas da psicanálise? Que relação elas guardam com o real da estrutura? Para responder a essas questões, a psicanalista parte do estudo minucioso do caso do Homem dos Lobos, orientando-se pelo surgimento da noção de borderline e suas distintas acepções para diferentes autores.

Em uma das lições, em uma interessante conversação com o psicanalista Bernardino Horne, Nieves analisa o fenômeno da polissintomatologia do Homem dos Lobos – diagnosticado por diferentes psicanalistas e psiquiatras sucessivamente como um caso de neurose alimentar, histeria de angústia, neurose obsessiva, psicose maníaco-depressiva, histeria de conversão e hipocondria paranoide. Nieves Soria e Bernardino Horne observam como esse caso freudiano ilustra de maneira paradigmática um fenômeno amplamente verificado na clínica contemporânea: o rompimento da relação aparentemente direta entre o tipo de sintoma e a estrutura. O que a clínica atual apresenta são sujeitos com diferentes tipos de sintoma que não indicam uma relação imediata com a estrutura. Em outra lição do seminário, destinada especificamente à temática da fronteira entre neurose obsessiva e psicose – ministrada por Claudio Godoy –, fica exemplificado de forma clara como um sintoma obsessivo pode funcionar como estabilização ou suplência a uma psicose.

Neurose suspensa

Uma das formulações mais inovadoras que o leitor encontrará em ¿Ni neurosis ni psicosis? está ligada à noção de “neurose suspensa” ou “neurose rudimentar”. Segundo a autora, trata-se de uma neurose apenas esboçada, na qual o Nome-do-Pai, ainda que presente, é inoperante, já que o sujeito não pode se servir dele. Nieves é levada a formular a expressão “neurose suspensa” quando começa a se interrogar a respeito do estatuto de alguns fenômenos de prevalência do imaginário com os quais se depara na clínica. Cada vez que o analista encontra uma fixidez, um estancamento, uma prevalência ou um sobredimensionamento do imaginário, constata um déficit simbólico. Mas qual seria o estatuto desse déficit? Tratar-se-ia sempre de uma psicose? Ou poder-se-ia estar diante de uma neurose que não completou sua estruturação?

Para sustentar teoricamente a ideia da neurose suspensa, Nieves utiliza-se da perspectiva de Lacan no Seminário 5, quando este propõe a operação metafórica do Nome-do-Pai como uma operação que se realiza em três tempos lógicos. O primeiro tempo do Édipo seria aquele em que a criança ocuparia o lugar do falo da mãe. As chamadas neuroses suspensas ou rudimentares se produziriam quando há um impasse nesse primeiro tempo lógico, durante o qual a criança está tomada por uma relação especular com a mãe. No livro, Nieves se interroga: “o que seria um Édipo que estaciona no primeiro tempo? O significa que o Nome-do-Pai está presente, mas não opera? É uma hipótese difícil de sustentar, mas me parece uma colocação clínica pertinente e importante”.[3] O ponto de partida elegido pela psicanalista para sustentar tal hipótese é o esquema R, esboçado no texto De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose, que representa a constituição do campo da realidade na neurose. O esforço de Nieves, então, é tentar localizar os três tempos do Édipo nesse esquema.

Segundo a psicanalista argentina, as neuroses suspensas seriam os casos que se localizam na zona entre fobia e perversão. “São neuroses que não terminaram de se constituir como tais, que não chegaram a se estruturar como uma histeria ou como uma neurose obsessiva”,[4] explica. E se pergunta: como fazemos um diagnóstico desse tipo de neurose? Para ela, pode-se dizer que se está diante de uma neurose rudimentar quando a intervenção analítica por alguma via consegue colocar em ato, isto é, tirar do estado de dormência a função paterna. É o que ocorre, por exemplo, no caso do Pequeno Hans, quando Freud, a partir de uma intervenção, restabelece a função paterna e permite que a neurose do garoto termine de se estruturar – no caso de Hans, uma histeria. Sendo assim, é apenas retroativamente que se pode afirmar que se tratava de uma neurose que não havia terminado de se armar e que havia ficado retida no primeiro tempo do Édipo.

Psicose ordinária

Um dos capítulos principais do livro trata do conceito de psicose ordinária. Nele, Nieves Soria retoma e analisa minuciosamente várias passagens do paradigmático texto de Jacques-Alain Miller Efeito do retorno sobre a psicose ordinária, buscando extrair dali o máximo de orientações clínicas possível. Uma das principais consequências do texto de Miller – segundo Nieves, ainda pouco explorada pelos analistas – é a importância de se fazer uma distinção entre a falta forclusiva (P0), isto é, a forclusão do Nome-do-Pai, e a forclusão da castração (Φ0), que não é um furo, “mas um puro não há”.[5] Nieves relembra que o que não existe é a relação sexual, isto é, a relação perfeita entre os três registros. Já a forclusão do Nome-do-Pai é outra coisa.

Além disso, ainda na vertente da revisitação do texto do Miller, Nieves faz uma crítica mordaz à oposição simplista entre a clínica estrutural, que seria descontinuísta, à clínica borromeana, mais elástica. A psicanalista discorda da ideia de que, na clínica borromeana, não se faz mais a distinção entre presença ou ausência da inscrição do Nome-do-Pai. Ela argumenta:

Lacan passa os Seminários 22, 23 e 24 falando do Nome-do-Pai. No Seminário 22, propõe os nós neuróticos da inibição, do sintoma e da angústia. No Seminário 23, distingue claramente o nó borromeano na neurose do nó joyceano. No Seminário 24, entre outras questões que fazem a distinção estrutural, ele se refere, por exemplo, à forclusão do Nome-do-Pai no caso do Homem dos Lobos. Assim, é difícil sustentar que no último ensino de Lacan se perde a referência ao Nome-do-Pai na clínica.[6]

Nieves acredita que há uma suplementação entre os ensinos de Lacan.

A proposta de uma psicopatologia não-toda

Como se vê, no pano de fundo das investigações empreendidas pela autora neste seminário, situa-se a problemática epistemológica acerca da articulação entre a dimensão particular de todo diagnóstico e a singularidade do sujeito. Diante desse desafio impossível da clínica, a psicanalista propõe ir ao encontro de uma psicopatologia não-toda, considerando as categorias psicopatológicas como conjuntos abertos, que não contêm seus pontos de fronteira.

A proposição de Nieves é bastante interessante: trata-se de uma tentativa de aplicar a distinção entre os lados feminino e masculino da tábua da sexuação aos modos lógicos de se pensar a psicopatologia. Como se sabe, o lado masculino parte da função da exceção paterna, que possibilita fechar um conjunto. É nisso que consiste a função do Nome-do-Pai. Já o lado feminino tem como ponto de partida a inexistência da exceção, desembocando no que será definido por Lacan como conjunto aberto. Enquanto o conjunto fechado contém todos os pontos que pertencem ao conjunto com o qual se fecha um conjunto, o conjunto aberto não contém o que se chama pontos de fronteira.

Guiada por esse raciocínio, Nieves mostra que não é a mesma coisa pensar as estruturas psicopatológicas com a lógica do conjunto fechado e com a lógica do conjunto aberto. Se se pensa a psicopatologia com a lógica do conjunto fechado, permanece-se no binarismo neurose-psicose. Assim, ou algo é neurose, ou não é neurose e, então, é psicose. É uma psicopatologia todista. Por outro lado – e essa parece ser a grande contribuição de ¿Ni neurosis ni psicosis?, o ponto onde culminam as investigações de Nieves –, a lógica do conjunto aberto é mais conveniente para pensar a psicopatologia psicanalítica. Os pontos de fronteira não pertencem nem a A, nem aos complementos de A, mas permanecem em uma zona que seria inclassificável ou classificável como fronteira.

A partir dessa lógica, defende Nieves, poderíamos postular as estruturas como conjuntos abertos, pois haveria casos que não pertenceriam nem ao lado da neurose, nem ao lado da psicose, mas sim à fronteira. E conclui: “Se falamos em uma clínica borromeana, estamos nos referindo então à lógica feminina das fórmulas da sexuação, isto é, a uma psicopatologia não-toda”[7].

 

Cecília Lana Nascimento, colaboradora da revista Derivas analíticas, é jornalista, psicanalista e desenvolve pesquisa de mestrado na Universidade Federal de Minas Gerais sobre a temática do diagnóstico na clínica psicanalítica.
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Nieves Soria é psicanalista, membro da Escola de Orientação Lacaniana e da Associação Mundial de Psicanálise. Pratica a psicanálise em Buenos Aires desde 1987. Apesar de sua prática se concentrar nas atividades de analista e supervisora clínica no consultório, Nieves também desenvolve diversas tarefas no âmbito do ensino e da extensão. É professora do Departamento de Psicopatologia da Faculdade de Psicologia de Buenos Aires desde 2003, oferece cursos e conferencias em vários hospitais da cidade de Buenos Aires e, desde 2005, mantém um espaço de ensino da psicanálise em seu seminário, na Escola de Orientação Lacaniana. É autora de diversas publicações.

 

Conheça alguns livros de Nieves Soria:

 

  • Psicoanálisis de la anorexia y la bulimia. Buenos Aires: Tres Haches, 2000. 127 p. ISBN 987-9318-11-0.
  • Confines de las psicosis. Buenos Aires: Del Bucle, 2008. 300 páginas. 331 p. (Serie Del Bucle). ISBN 978-987-21011-3-8.
  • Inhibición/Síntoma/Angustia. Hacia una clínica nodal de las neurosis. Buenos Aires: Del Bucle, 2010. 331 p. (Serie Del Bucle). ISBN 978-987-21011-5-2.
  • Nudos del amor. Buenos Aires: Del Bucle, 2011. 393 p. (Serie Del Bucle). ISBN 978-987-21011-6-9.
  • Nudos del análisis. Buenos Aires: Del Bucle, agosto de 2013. 334 p. (Serie Del Bucle). ISBN: 978-987-29929-0-3.

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Referências

LACAN, J. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose (1957-1958). In: ______. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Revisão técnica de Antonio Quinet e Angelina Harari. Preparação de texto de André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 537-590. (Campo Freudiano no Brasil).

MILLER, J.-A. Efeito do retorno à psicose ordinária. Opção Lacaniana Online, São Paulo, EBP, ano 3, n. 1, nov. 2010. Disponível em: <http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_3/efeito_do_retorno_psicose_ordinaria.pdf>. Acesso em: dia mês 2017.

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Notas

[1] SORIA, 2015, p. 8-9. Tradução da autora assim como as demais citações.

[2] SORIA, 2015, p. 22.

[3] SORIA, 2015, p. 66.

[4] SORIA, 2015, p. 67.

[5] SORIA, 2015, p. 143.

[6] SORIA, 2015, p. 139.

[7] SORIA, 2015, p. 193.

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