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Do claro e do escuro 

Héctor Garcia de Frutos

Se na Psicanálise falamos das mulheres uma a uma, e não dos homens um a um, não é porque encontramos nessas palavras propriedades diversas no campo linguístico. Tanto “homem” quanto “mulher” carecem de um referente na Psicanálise, e por isso são significantes antitéticos como tantos outros: equivalentes, intercambiáveis, esquivos... o sujeito histérico, ancorado na pergunta “'sou homem ou sou mulher?”, ilustra isso.

Há, no entanto, um axioma lacaniano que nos permite situar o semblant feminino de forma diferente, inclinando-o para uma dimensão mais ampla: “A mulher não existe”. Essa afirmação ainda controversa, que não tem contrapartida masculina, permite diferentes leituras. Se o artigo definido é usado com A maiúsculo, é para indicar que é a significação (o ato de significar), e não tanto o referente (o objeto significado), que não existe. Daniel Paul Schreber, possivelmente o louco mais famoso da história, representou essa ausência de significado na estrutura do divino: Deus não tem um parceiro com quem se relacionar. Diante disso, o brilhante jurista, como sujeito, responde com delírio e experiência alucinatória. Ele é levado, contra sua vontade, a preencher a denotação vazia com um corpo: para o gozo de Deus, mas também para a concepção. Ele nos diz: “assim, em meu próprio corpo, ocorreu algo semelhante à concepção de Jesus Cristo por uma virgem intacta, isto é, que nunca teve relações sexuais com um homem. (…) os nervos de Deus correspondentes ao sêmen masculino foram lançados em meu corpo: portanto, ocorreu uma fecundação”.

Essa experiência mostra que ele a compreendeu à sua maneira: há um delírio de significação na medida em que é o corpo (um referente), e não o sujeito, que responde à falta no Outro (Deus, nesse caso). Uma razão imaginária busca suturar uma ausência no Simbólico: na ausência do significante fálico, Deus pode encontrar A mulher real e complementar com quem fundar “homens novos formados pelo espírito de Schreber". Esta não é uma metáfora para uma nova teodiceia: um novo corpo deve ser produzido para a concepção, e Schreber tem a certeza e a experiência de que é dele. Um corpo de mulher pronto para dar à luz, mas também para gozar: "Para mim é subjetivamente verdade que meu corpo − segundo minha convicção repetidamente expressa, por obra de milagres divinos − mostra tais órgãos da mesma forma que só acontece no corpo feminino. (…) Por uma pressão exercida sobre essas estruturas, consigo, especialmente quando penso em algo feminino, despertar algumas das sensações voluptuosas correspondentes às de uma mulher”.

No inconsciente neurótico, por outro lado, é a inscrição contrária ou oposta ao sentido fálico que falta, justamente porque o falo está ali e marca o obstáculo, um obstáculo que limita um gozo para todos. Quando a Psicanálise revela esse desequilíbrio formal (que em Schreber não existe, pois repara a inexistência da mulher com seu delírio e seu corpo), deve-se deduzir que não há complementaridade possível entre o masculino e o feminino. Ambos os semblants são ordenados de acordo com sua relação diversa com o mesmo padrão. Não o penduricalho do macho, mas a lei sexual que responde à proibição do incesto, indica Lacan em seu Seminário 18, De um discurso que não fosse semblant. Não responde aí a anatomia, mas o símbolo do desejo.

Por outro lado, que se aponte para a obliteração da significação feminina indica que, embora existam mulheres (mille e tre, pelo menos, como insiste o Don Giovanni de Mozart), não há identidade capaz de unir todas elas em um conjunto. Pode-se dizer “as mulheres”, mas representadas pelo traço elas deixam de estar lá como mulheres. Se não há contrapartida complementar ao significante fálico, também não há como um homem ter a mulher como único referente de seu desejo, já que isso se elege precisamente na vacilação do desejo. Não há, de um lado, portadores de pênis (machos), de outro lado, portadores de vagina (fêmeas), e aquele espécime de um lado que caberia no outro.

Existe, para ambos os sexos, o falo: ele tem, como outros, algo que às vezes lhe dá forma e, no melhor dos casos, o cede; ela se veste com isso, espera ser esse objeto precioso para pelo menos uma pessoa, mesmo quando lhe parece que outras o encarnam com maior perícia. Mas em ambos os casos o desejo se refere a isso. Do lado homem, nenhuma se inscreve como A mulher. Do lado feminino, só sendo Outra acalenta o que supostamente a definiria. No inconsciente falta um significante, e não há como preencher isso.

Em outra ordem de coisas, e como vemos com Schreber, a inexistência de A mulher reverbera no campo do gozo: o que é homem e o que é mulher não se resolve pela anatomia ou pela genética, mas pelo modo como um corpo se satisfaz. Onde há gozo fálico, estamos do lado masculino; é o que é próprio dos envolvimentos eróticos, do desejo – diferente de Schreber, para quem vigora o gozo do Outro −, que insistem, justamente, porque há apenas uma significação em jogo (qualquer que seja a posição identificadora dos atores: hetero, homo, bi, trans, inter...): a ausência de dois. Da qual se pode decantar um terceiro sentido ao aforismo: o modo de satisfação estritamente feminino, se nele se acredita (o que às vezes se sente, mas do qual nada se sabe), não pode ser nomeado ou escrito. Não é o gozo de alguém; tampouco é suscetível de réplica. Não há letra para fixá-lo, o que indica que toda razão deve ser excluída dali. Por isso, Lacan procurou ilustrá-lo a partir do semblant místico (que não por ser semblant deixa de assinalar uma experiência real de gozo). Para o místico, não se trata do gozo de Deus ao usar o corpo de alguém, mas do gozo que se dá “em segundo grau”, no corpo próprio ante a manifestação do rosto de Deus. O gozo feminino é um gozo distinto do gozo do objeto.

Vamos agora orientar a matéria que nos ocupa por outra via, distante. No Seminário 18, Lacan aborda as línguas japonesa e chinesa, singularmente esculpidas pela escrita. Dos ideogramas de sentidos múltiplos que Lacan explora, os mais conhecidos são yin e yang: os princípios feminino e masculino, paixão e ação, substância e forma, obscuridade e luz. É um par complementar, um modelo geral que rege "a relação do homem e da mulher nas forças do mundo, abaixo do céu (t'ien hsia)", como diz Lacan. Se o psicanalista francês recorda esse enunciado em Mêncio, é porque as coisas ali se complicam, não se trata de meias laranjas. Sob o céu, há uma natureza que cresce no caldo da língua. A natureza do homem, infinitamente diferente do animal, é o que está debaixo do céu e implica a dimensão da causa, aquilo que leva um reino a buscar a prosperidade. O mais-gozar, adverte Lacan, é o que aponta a natureza dos seres falantes.

Não é o único efeito de discurso que afeta homens e mulheres. Entre yin e yang há também um efeito de surpresa: o falo, como vimos, o operador que articula um gozo à verdade do desejo.

Há, portanto, duas letrinhas, dois obstáculos, duas contingências que quebram a naturalidade harmoniosa das relações entre o homem e a mulher: o falo e o objeto mais-gozar (Lacan fascinou seu público ao mostrar que a tradição chinesa sabia algo do respeito). São questões articuladas, mas não é fácil elucidar sua idiossincrasia, como não é a do homem e a mulher. São, em todo caso, consequências dessa operação que Lacan chama de castração. Ou seja, aquilo que os seres falantes precisam elaborar, sintoma mediador, para conseguir fazer com que algo se produza de novo. Na medida em que não há condições naturais de escolha nem satisfações complementares, é preciso que cada um passe pela falta, pela escolha segundo o acaso e segundo seus traços inconscientes.

“A mulher é o sintoma da civilização”, interveio Éric Laurent na primeira de suas quatro conferências em maio de 2016, em Barcelona. Propomos, de acordo com o que viemos elaborando, que é sintoma na medida em que a forma feminina é privilegiada na cultura para situar falidamente o falo e o objeto, pelo menos no dizer dos homens. Vamos esboçá-lo a partir de algumas confissões de Junichiro Tanizaki, em seu já clássico ensaio “Em louvor da sombra”, que também dá pistas claras sobre as condições do desejo que permitem que um homem se aproxime de uma mulher entre outras.

No Seminário 18, Lacan introduz seu próprio louvor à sombra, tratando da carta roubada, do conto de Edgar Allan Poe, que “feminiza aqueles que estão na posição de estar à sua sombra”. A importância da função da sombra é palpável aqui, e desperta referências orientais em Lacan. Yin e yang são mencionados, assim como a não-ação (wu wei); a sombra é um atributo feminino dessa carta enigmática que, fora de perspectiva, põe todos os envolvidos em movimento.

No ensaio de Tanizaki, trata-se de algo mais íntimo: 

É possível para mim representar-me próximo às mulheres do passado lembrando a silhueta de minha mãe costurando, quando eu era criança, nos fundos de nossa casa em Nihonbashi, na penumbra do jardim. Até aquela época − estou falando dos anos vinte Meiji (por volta de 1890) −, as casas burguesas de Tóquio ainda eram construídas de tal forma que eram muito escuras (...) minha mãe, minhas tias, alguns de nossos parentes, quase todas as mulheres de naquela geração tinham os dentes enegrecidos. (...) Se poderia chegar a dizer que essas mulheres mal tinham carne. Da minha mãe lembro-me do rosto, das mãos, vagamente dos pés, mas a minha memória não preservou nada que se refira ao resto do corpo. (...) Nesse sentido, lembro-me do torso da famosa estátua de Kannon de Chuguji: não representa o típico nu da japonesa do passado? Aquele peito liso como uma prancha, do qual pendem seios finos como papel, aquela cintura apenas pouco mais grossa que o peito, aqueles quadris, aquela garupa, aquele dorso reto, aquele tronco estreito e fino a ponto de ser desproporcional ao rosto e aos membros, aquela ausência de espessura que mais do que um ser de carne evoca a rigidez de uma bola de madeira; não é, em seu conjunto, a estrutura do corpo feminino de outrora? 

O gênio do poeta confessa, sem sombra de véu, a estreita relação entre a interdição familiar e o objeto de desejo. O corpo materno, mais além de traços sutis, quase assexuados, é selado pelo esquecimento. A dimensão fálica, assim como o desconhecimento deliberado de um gozo ficam plasmados no “mal tinham carne”. Segue, em pura solução de continuidade, a metonímia própria do objeto de desejo, esse recorte do corpo feminino necessário à estrutura fantasmática masculina. O ponto dissonante da descrição, por fim, marca a articulação entre o falo imaginário (“aquela ausência de espessura”) e o objeto causa de desejo (“que mais do que um ser de carne evoca a rigidez de uma bola de madeira"). A estátua Kannon de Chuguji é um Buda, de aparência feminina, mas assexuado como o objeto mesmo.

Encontramos, mais adiante, outro exemplo cristalino dessa articulação: 

Essas mulheres, cujo torso fica assim reduzido a um estado de suporte, são feitas de uma sobreposição de não sei quantas camadas de seda ou algodão, e se elas foram despojadas de seus vestidos, só restaria delas, como nas bonecas, uma vara ridiculamente desproporcional. Antigamente isso não tinha importância, porque essas mulheres, que viviam nas sombras e eram apenas um rosto esbranquiçado, não precisavam ter corpo algum. Olhando bem, para quem celebra a beleza triunfante do nu da mulher moderna, deve ser muito difícil imaginar a beleza fantasmagórica daquelas mulheres. 

A expressão “vara ridiculamente desproporcional” marca com a simplicidade de uma pincelada o que pode ser encontrado quando o objeto causa do desejo se despoja de certos véus fálicos.

Tanizaki vislumbra assim o ponto limite, de estranheza, que se alcança ao tentar capturar a razão de um suspiro: 

Pense no sorriso de uma jovem, à luz bruxuleante de uma lanterna, que de vez em quando faz brilhar uns dentes laqueados de preto por entre os lábios de um azul irreal de fogo-fátuo: pode-se imaginar um rosto mais branco? Eu, pelo menos, o vejo mais branco que a brancura de qualquer mulher branca, naquele universo de ilusões que levo gravado em meu cérebro. A brancura do homem branco é uma brancura translúcida, óbvia e trivial, enquanto aquela é uma brancura de certa forma separada do ser humano. Uma brancura assim definida pode não ter existência real. Pode ser nada mais do que um jogo enganoso e efêmero de sombras e luz. Admito, mas nos parece suficiente, porque não nos é dado esperar algo melhor.   

Essa pontuação dá conta da operação fracassada pela qual todo objeto fantasmático é constituído. O olhar, signo do sujeito, é evidenciado por um engano ali onde se intui o limite do humano. O final feliz, solução de compromisso entre fantasia e objeto imaginário, sela a curiosidade de Tanizaki, que vai longe em sua precisão psicanalítica.

Nessa elucidação, é a lógica masculina que impera. Do que concerne singularmente à mulher, na medida em que ela goza em um corpo, nada sabemos; isso é expressamente cerceado. Do falo, ela faz uso de forma diferente. A tese de Lacan no Seminário 18, “o falo é o órgão na medida em que é – trata-se do ser – o gozo feminino”, precisa de outras vias para se esclarecer (o gozo místico seria uma indicação). É: trata-se de o verbo estar na terceira pessoa do singular, Lacan especifica, no presente (est, em francês). E não do ter, também no presente, desta vez na primeira pessoa do singular, (ai, em francês). O falo, então, permanece carente do lado do gozo feminino e ao mesmo tempo o constitui. O falo introduz uma hiância no gozo, como dissemos; não permite concluir. Em que sentido? Vários podem ser isolados.

Um primeiro: que haja o conjunto dos que portam o órgão não quer dizer que se possa fazer o grupo das que não o têm prendido ao corpo. Se a identidade não serve para produzir o universal feminino, tampouco a falta de um pênis serve para isso. E é que, realmente, a uma mulher não falta nada: seu organismo é inteiro, a falta só é introduzida pelo símbolo. Dissemos que isso tem incidência sobre o gozo: não existe um universal das mulheres no que diz respeito a um “poder gozar de todas”, como diz Lacan, no Seminário 18: cada uma lida com a falta simbólica (o falo) à sua maneira, e não há homem que possa abordá-las todas por essa falta, como se fosse universal. Para alguns, muitas são inencontráveis ​​em sua falta, e por mais que se confundam, mais cedo ou mais tarde se deparam com isso. Inversamente: não há aquele do qual todas gozariam, e que pudesse, em certo sentido, normalizar o prazer feminino, dar a chave para o gozo sexual da mulher. Nesse sentido, o pai da horda, que Freud deduz, é um mito.

Um segundo sentido possível é que também não existe um ser mulher, ainda que todas e cada uma possam ali se reconhecer. Não há silogismo para as mulheres à maneira aristotélica, que permitiria, como se sabe, o laço entre o universal e o particular. O gozo encontrado na identificação não pode ser simétrico, logicamente: para uma mulher, seu ser mulher é um enigma sem solução, não uma justificativa para insistir. Se a masculinidade é o mantra do ter o falo, a feminilidade é a invenção sempre nova de sê-lo.

Esse ponto concerne particularmente ao saber. Do lado masculino, se goza do objeto. Como vimos, o fantasma dá o marco, e Tanizaki mostra que se pode saber algo disso. A mulher é o Outro, mas não à maneira do semelhante inatingível, mas alheia a si mesma no que diz respeito ao gozo que pode habitá-la e que não é da ordem do fantasma.

Dessa Alteridade da mulher pode-se deduzir um terceiro sentido dessa hiância. Não é possível concluir quanto à harmonia nem entre os corpos nem no que diz respeito ao corpo feminino. Que ela possa ir buscar o órgão no corpo dele, manipulá-lo, gozar por meio dele... é algo que exige, de sua ação, que ela permaneça dividida em relação ao seu corpo. No encontro sexual, seu corpo encarna o falo e, ao mesmo tempo em que o faz com o órgão do parceiro, deposita ali o falo. O corpo que manipula o órgão do parceiro não é o corpo que encarna o falo para ele (e não menos para ela).

Concluindo: vemos que é necessário elucidar diferentes formas de gozar do e no feminino. Há, apesar disso, uma especificidade do gozo feminino, que Lacan chamou de Outro gozo. É problemático, realmente, pensar que estaria ou contaria como um. Nós o nomeamos, mas tentar delimitá-lo leva a um paradoxo, pois ele só é situado por sua não equivalência em relação ao gozo fálico. É que, em essência, sua qualidade sensível está situada do lado do inumerável, do ilimitado. Não se rege pela dimensão binária do gozo fálico, que pode insistir por muito tempo, mas permanece sempre discreto, binária, contável (é, de fato, a própria contabilidade que a aproxima do mais-gozar). Por isso, Philippe La Sagna, em El hombre y la mujer, y el psicoanálisis; leyendo el Seminario XVIII de Lacan, de 2010, especifica que “para que exista um gozo além do falo, deve-se pensar no que poderia contê-lo como seu limite”.

Verifica-se isso em cada encontro: o corpo dela não responde plenamente às inevitáveis ​​limitações no dele. Algo já se intuía sobre as consequências dessa relação diversa com a castração na sabedoria do Oriente, desde tempos imemoriais, o que é ilustrado, de forma evocadora, em um dos poemas do Tao Te Ching, de Lao Zi: 

“O espírito do vale não morre”,
diz-se da fêmea obscura.
"A porta da mulher obscura"
Diz-se da origem do céu e da terra.
Infinitamente sutil, parece perpétuo.
Usa-se sem ser consumido.

Mãe e mulher, ela é diferente de si mesma e, ao mesmo tempo, diferente do binarismo próprio da dimensão fálica. Como especifica o tradutor: o feminino (pin) sugere também a ideia de “vazio que flui”, de útero (“porta”) de onde tudo brota, como a “origem do céu e da terra” (origem, shi, também se escreve com o elemento semântico da mulher), como "a mãe de todos os seres", como "a porta de todos os mistérios" do primeiro capítulo. Mas essa fêmea não é um ser yin, com uma contraparte yang, mas uma entidade “só” (du), una e autônoma. Assim se diz que ela é xuan, obscura, mística. Há um gozo propriamente feminino. É alheio a “A Mulher” o significante que, se existisse, faria de uma a representação de todas.

Copyright de Aestethika.org. Copiado con permiso de los Editores. Texto originalmente publicado em aesthethika // Revista internacional de estudio e investigación interdisciplinaria sobre subjetividad, política y arte. Tradução autorizada pelo autor: Musso Greco

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