CONEXÕES ARRISCADAS COM ANA LUÍSA SANTOS
O período de isolamento social trouxe a urgência de discutirmos as possibilidades do corpo e da presença no espaço digital. A partir de um contato prévio com o texto “Visibilidade a que preço?”, escrito em 2019, no qual a artista Ana Luísa Santos* discute as possibilidades de circulação da arte da performance no ambiente digital, a equipe da Revista Derivas Analíticas procurou a artista em junho desse ano. Ana Luísa propôs que nosso trabalho fosse não uma entrevista mas uma ação, um encontro em uma plataforma digital, à luz do contexto imposto pelo início da pandemia. A partir desse encontro aberto ao desconhecido, a equipe da revista transcreveu o diálogo e organizou alguns dos temas abordados em torno de questões centrais que dali se decantaram:
O QUE PODE ACONTECER NO ENCONTRO?
O risco presente no tipo de experiência ética é o risco de um deslocamento, de transformação, revisão constante, de ter que abdicar de algo... É um processo trabalhoso, não é garantido. Acho que o risco tem a ver com a ideia de implicação, do corpo e suas implicações. A gente poderia se perguntar: o que estamos fazendo aqui? O que pode acontecer num encontro radical, ou na dimensão radical do encontro? O encontro não é garantido, é uma coisa aberta, que pressupõe um rearranjo, uma surpresa, um não saber. Quando falamos sobre o que pode ter nesse risco, quando a gente se pergunta que presença é essa que traz o risco, quando perguntamos o que podemos entender como performático, talvez isso tenha a ver com a dimensão do encontro, ou em que medida a gente entende essas possibilidades como encontros mais ou menos radicais, ou como a gente se implica no encontro. Não tem garantia, tem um monte de desencontros, de mal-entendidos. Por mais que tenhamos alguns códigos, tem uma coisa no encontro que não é automática, tem a possibilidade da contingência, da espontaneidade.
O QUE PODE SER A PRESENÇA?
Talvez a gente pudesse tentar pensar que a ideia de presença não é uma coisa só concreta, só física. Implica talvez até mais uma dinâmica de relação, abertura, escuta, atenção, transformação. Pensar no estatuto da presença no digital implica um mundo de reflexões que inclui essa pergunta do que pode ser presença, mas indica também o que a gente pode chamar de efeitos de presença. No digital, isso tem uma dinâmica amplificada dentro das ideias de reverberação. Neste momento, essa pergunta sobre o que pode ser presença vem se atualizando. Isso aqui, essa deriva que a gente tá fazendo juntos, é interessante, é possível, mas não supre um certo desejo, algo que faz muita diferença dentro das dinâmicas de convívio. Acredito num tipo de potência, de contato, que seria mais do corpo ao vivo, a cores, a toque, corpo presente em copresença.
A BARRA ROLA!
Uma gama de acontecimentos mais ampla talvez seja diferente da relação que temos com um tipo de imagem, com o selfie – colocando aqui a ideia de que no digital a gente tem menos risco. É um encontro mais automático, mais garantido, que a plataforma prevê. Há uma planificação do contato na rede social, tem sempre gente ali, isso é consumido e perde-se a dimensão da contingência. A barra rola! Além disso, tenho tido bastante curiosidade sobre a dimensão escópica, como ela facilmente desliza para uma dimensão de controle. Por que às vezes a voz não basta? Parece que a gente se apropria mais da imagem que da voz... tem um tipo de imagem, como o selfie, que não apresenta risco.
TER UM CORPO?
Este momento de pandemia agudiza, amplifica questões que já estavam colocadas antes, em neblina. Entre essas questões, está a noção do corpo como um corpo que sou eu: tenho um corpo e ele é meu, ele é isso aqui, o corpo é saudável, o corpo não apresenta riscos... eu estou com todas as dúvidas éticas a respeito disso. Mais do que a questão do contágio do vírus no meu corpo, tenho medo de transmitir o vírus. O corpo não é meu, ou não é só meu. O corpo não sou só eu, o corpo é um corpo em relação. Isso me trouxe muito essa dimensão que já era presente pra mim, pra começar com essa pergunta – o corpo no virtual, que corpo é esse? –, de que essa ideia de corpo é muito complexa, não é um corpo só, são vários corpos. A ideia de um corpo, um indivíduo, faz muito sucesso numa dinâmica liberal que a gente vive, numa dinâmica pessoal, de perfil, de selfie, do proprietário, da propriedade…
CANSAÇO E PERCEPÇÃO
Estou muito curiosa sobre os códigos de convivência aqui nesse plano do digital. Fazendo reuniões de teletrabalho, observo o delay, os sinais, quem vai falar, quem pede a palavra, como não sobrepor… Códigos que já existem na relação de copresença, mas aqui também se amplificam. De alguma forma há uma planificação que está ligada a uma não diferença, a uma importância chapada, lisa, sem rugosidade, sem textura tátil ou simbólica. A gente tem menos recursos de percepção aqui. Numa relação de copresença você tem uma dimensão espacial mesmo, do campo do olho, você percebe se alguém mexeu o dedo, se alguém quer falar enquanto você tá falando, sente o cheiro, percebe uma disposição corporal diferente... Acho que esse cansaço que sentimos nas plataformas digitais é porque a gente fica tentando desesperadamente se aproximar e tentar criar no sistema de percepção uma informação que aqui é muito mais pobre.
VOZ, PALAVRA E PROLIFERAÇÃO DE MUNDOS
Colocaria aqui uma lembrança fundamental, de que a voz é corpo. O som perfura, atravessa parede, entra no corpo, perpassa, e aí já é corpo, de dentro e de fora... Talvez o silêncio vá ser diferente aqui... Voz é corpo, e talvez silêncio também seja corpo. Há uma excitação da fala, ou no canto. Essa compreensão da voz como corpo se desdobra também na performance como produção não só de imagem, mas também de efeitos de presença. Comecei a realizar trabalhos de palestra/performance, é um tipo de ação, feita de maneira diferente para cada situação mas que tem uma dimensão de acontecimento a partir daquele texto, daquela conversa... para fazer daquilo uma situação, uma mudança de tempo e de espaço, para fazer daquilo um encontro. E é aí que está a voz como corpo e o corpo como voz! E aí está a diferença entre o virtual e o digital: a virtualidade pode ser a dimensão do corpo numa produção sensível, poética, que vem da palavra também. Tem uma imagem belíssima que a Suely Rolnik traz, que para o povo Guarani a garganta é o ninho das palavras. Segundo ela, em guarani a palavra é alma e alma é palavra. Se é ninho, é um espaço de germinação, está muito envolvido com a ideia de palavra, criação, proliferação de mundos também. E por isso que o silêncio pode implicar numa série de imagens... pra gente trazer essa palavra!
HERESIAS AFETIVAS
Tenho um projeto em curso que se chama Núcleo de estudos sobre cansaço e outras heresias afetivas. As heresias afetivas seriam essas frequências de energia, de relações, de afetos, de estados, de experiências, que são meio hereges porque se aproximam de uma ideia da negatividade, o que não é exatamente uma dimensão de ultraforça, de potência exuberante, fálica. Envolve então os estudos sobre o cansaço, o fracasso, o luto, a perda, o vazio, a vergonha. Comecei a me interessar por trabalhos e iniciativas que são hereges em sua proposição: eles são infra, eles são micro, como um trabalho que consiste em entregar um cartão de visita. Ou o trabalho é uma carta… agora na quarentena é uma carta por e-mail. Escrevo a carta pra alguém, é um trabalho para uma pessoa, não é um trabalho para 20, para 100, para 1000. Não sei se, ou quando, a pessoa vai receber. Radicaliza a possibilidade do encontro, ou de uma correspondência, totalmente sem garantia. É muito essa proposição: sem garantia. A radicalidade do risco do encontro já era e continua sendo uma busca no meu trabalho, tentar provocar ou criar esse dispositivo em diferentes situações, criar uma relação que chame pra possibilidade de encontro. O procedimento do trabalho é um apelo, um convite, colocar-se num espaço interno de disponibilidade para que o outro, quem sabe, talvez, um outro, chegue e a partir daí a gente possa descobrir alguma coisa que a gente nem sabe. Há uma dimensão histórica da performance que é de resistência, de superação de limites, que já exercitei, exercito, e entendo que a performance pode ser isso também, mas resolvi me arriscar em uma outra coisa: no infra. Parte da fragilidade, do desamparo, de como o corpo pode performar a partir desses outros lugares, descobrindo assim outro tipo de potência.
*ANA LUISA SANTOS é performer e escritora. Mestre em Comunicação Social/UFMG e Pós-Graduada em Arte da Performance/FAV, atua também como curadora em artes da presença na realização de exposições e residências artísticas, núcleos de pesquisa e criação, atividades de formação e política. Desenvolve trabalhos para teatro e dança, com destaque para dramaturgia e figurino. É idealizadora do PERFURA / ATELIÊ DE PERFORMANCE e co-diretora da plataforma O QUE VOCÊ QUEER. Artista indicada ao Prêmio PIPA 2017. Vive e trabalha em Belo Horizonte. Para conhecer mais o trabalho de Ana Luísa, acesse https://www.anasantosnovo.com/ .