Mostra Cinema e Psicanálise
A Diretoria da EBP-MG tem o prazer de participar a todos que desde abril 2017 está em cartaz a mostra permanente de Cinema e Psicanálise: uma co-realização da Fundação Clóvis Salgado e da Escola Brasileira de Psicanálise - Seção Minas Gerais, cuja programação prevê sessões comentadas no Cine Humberto Mauro.
Com exibições sempre nas primeiras sextas-feiras de cada mês, os filmes selecionados trazem em suas narrativas questões que interessam à psicanálise e à cidade e que serão debatidas ao final de cada sessão por um membro da EBP.
Contamos com sua presença!
O ingresso deverá ser retirado com 30 minutos de antecedência.
Elle
Cristina Vidigal
Filme: Um comentário sobre Elle (2016), de Paul Verhoeven
Agradeço a oportunidade de estar aqui com vocês para comentar este filme polêmico e interessante. Para mim, interessante sobretudo pela riqueza e complexidade das personagens, pela quantidade de detalhes e pela forma do filme.
Sabemos que este filme marca o retorno, após dez anos, do diretor Paul Verhoeven. Um retorno muito ansiado e esperado daquele que foi o diretor de filmes marcantes tais como Robocop e Instinto selvagem. O jornal Le Monde, em um excelente comentário sobre o filme, que me foi enviado pelo grupo de coordenadoras deste evento, destaca o adjetivo “sulfuroso” como o que mais frequentemente tem acompanhado a obra desse diretor. Portanto, podemos pensar que essa produção francesa foi uma escolha feita a dedo e à medida do diretor, assim como da atriz que sustenta a personagem central da trama.
A atuação de Isabelle Huppert é impecável, e é preciso ver com muita atenção para registrar cada detalhe, cada pequeno sorriso escondido no canto da boca, no empinar do nariz, cada pequena ponta de ironia que escapa, assim, sutilmente da máscara de frieza e controle com que a personagem gerencia sua vida.
Devo confessar, entretanto, que minha primeira impressão, ao deixar a sala de cinema em que vi o filme pela primeira vez, foi que eu havia assistido a um híbrido de filme e video game. Um filme com traços incisivos da linguagem dos games aliados a uma inspiração de thriller, como em Hitchcock. A heroína, com uma posição subjetiva complexa, toma para si a tarefa de enfrentar uma situação composta por um enigma fortemente marcado por um violento erotismo, bem característico dos games, onde a fórmula “Who done it” é acrescida e bem aplicada. A trama escapa a qualquer moralismo e está aparentemente ordenada, como nos games, por uma “superação de obstáculos”.
Um bom exemplo é que as vezes que, em flashback, essa personagem fantasia o estupro, ela avança como em um game. Na segunda vez que fantasia, ela pega um objeto pesado e ataca o agressor repetidas vezes. E nessa hora algo da repetição dos ataques nos games e do sangue que se espalha tem o tratamento de uma cena e dos gráficos de um game.
Trago, então, uma primeira pontuação: o embate estabelecido com a narrativa. Podemos nos perguntar se a pregnância e a invasão das imagens trazem uma oferta que interfere com a história ficcional, antes colocada em palavras, e ocupara até então um lugar preponderante na história da humanidade. Minha impressão é que o diretor se interroga sobre os híbridos, o homem e a máquina em Robocop, por exemplo, e agora, como a linguagem dos games interfere e modifica a linguagem do cinema.
Podemos reconhecer que os gadgets, as máquinas e a realidade virtual parecem induzir acontecimentos de corpo e de linguagem, pesando como novos ordenadores frente ao simbólico. No mundo virtual não habitamos propriamente um corpo. Não temos a angústia de ter um corpo. Sustentados na imagem ideal, não é o jogo de representações nem o que falta que ordena o jogo com o outro. Além disso, o sujeito é introduzido em uma situação em que a morte é apenas mais um dado do jogo, e não um limite do homem.
Na vida real somos ameaçados pela diferença do outro e por sua maneira de ver o mundo. Num mundo virtual, onde a morte não é uma finitude, a diferença se apresenta menos ameaçadora, pois há sempre a possibilidade de se ter outro corpo, fazer outra escolha. No mundo virtual temos ofertas prêt-à-porter, que capturam a curiosidade dos sujeitos e, em seu reenvio, os mantém em um labirinto pontuado de marcas de gozo que os afastam da causa do desejo... Não nos escapa aqui uma referência a Ariadne e o fio do desejo que ela oferece a Teseu para percorrer o labirinto de gozos que abrigava o Minotauro.
Os games, todos sabem, não são reais. Contudo, precisam produzir um campo de crença que permita o usufruto e a satisfação das cenas. A estrutura da crença sustenta muito da nossa contemporaneidade, do nosso cotidiano, das nossas satisfações. Em algum lugar o sujeito sabe que não é assim, mas pode agir como se acreditasse. Pode se satisfazer, pode manter o status quo, apesar das contradições. Como faz a vizinha, que sustenta um casamento mesmo sabendo das atividades perversas do marido, “uma alma torturada”, segundo o eufemismo que ela usa para se referir a ele.
Vou trazer para vocês um conceito freudiano que foi desenvolvido por Octave Mannoni, sobre a razão pela qual acreditamos em coisas, mesmo depois de elas terem sido refutadas pelos fatos. Como funciona para nós a estrutura da crença? A frase trabalhada por Mannoni para refletirmos é “Eu sei, mas mesmo assim...”
Mannoni dá um exemplo banal de sua clínica para mostrar como isso pode ser algo corriqueiro na sociedade. Um cliente telefona para marcar uma primeira sessão, e seu nome fica obscuro na gravação da secretária eletrônica. Mannoni o confunde com um poeta com quem esperava marcar um encontro. Nesse equívoco, Mannoni envia um recado a esse sujeito, dizendo de sua satisfação, propondo conversar e tomar uns aperitivos. O sujeito, que sabe que não é quem Mannoni espera, comparece ao encontro marcado, e o engano de Mannoni fica claro. Quando o analista lhe pergunta por que ele tinha vindo, ele esclarece que sabia que tinha havido um engano, mas mesmo assim tinha vindo, acrescentando que sua mulher acreditara na legitimidade do convite. Ela havia dito: “Quem sabe ele quer mesmo tomar uns drinques com você!”. O ponto que intriga o analista é que, embora o sujeito não acreditasse, ele estava visivelmente satisfeito. Mannoni se perguntou exatamente sobre esse ponto de contentamento do sujeito. A ideia que ele nos oferece é que o sujeito sustenta esse campo de desconhecimento de sua mulher e se sente bem à vontade chancelado por essa posição de crença do outro.
Outro exemplo se passou com uma colega do início da faculdade. Ela esperava ansiosamente o resultado de um exame de gravidez, embora soubesse que era impossível que estivesse grávida. Nada demais acontecera, nada além de um beijo apaixonado. Ela sabia, mas mesmo assim, se vira compelida a fazer o exame e a se torturar com dúvidas ao esperar a resposta. Ela descobre, em sua análise, sua teoria sexual infantil de como nascem os bebês: de um beijo apaixonado e interrompido por um fade-out como nos filmes que ela vira na infância.
Não se pode dizer que a personagem principal sustente uma crença desse tipo. Ao contrário, ela percebe isso funcionando à sua volta. Isso, entretanto, parece dar a ela uma certa sensibilidade quanto a um fetichismo da modernidade. Sensibilidade que inclusive pavimenta algo de seu sucesso profissional.
Assim, Michelle, a personagem central, se apresenta ao vizinho na noite de Natal como excomungada do campo da crença, apresentando a ele a cena paterna e o ponto em que ela passa a participar da cena. Seria preciso fazer esquecer, não falar disso abertamente. Mas ela está fora. Seu ceticismo intimida um pouco as pessoas, e ela não se engana quanto ao que sustenta o sucesso comercial dos games: uma relação fundamental ao campo da satisfação, ao erotismo, ao gozo buscado pelos consumidores e um certo domínio do valor das fantasias. Se a heroína não tiver, por exemplo, características depreciadas “ela não vai produzir uma ereção”. Ou, para trazer as palavras da personagem, “o objetivo do jogo é claro e simples: quando um jogador mata um Orc, trata-se de que o jogador sinta o sangue correr entre seus dedos, sinta o sangue quente se possível”.
Vemos que a posição de quem se engana a incomoda. Ela se exaspera com a posição do filho que fecha os olhos para ter um lugar junto à mulher que ele ama, aceitando ser pai de um filho que claramente não é dele. Mais tarde uma nuance vai interrogar sua interpretação da conduta dele como da ordem da etologia, quebrando a ideia de instinto e privilegiando a leitura da dimensão do gozo no comando das relações. A relação com o filho mostra que não há apenas crença/engano, mas que se trata de algo que o sujeito sustenta de uma forma muito particular, algo mais ordena o jogo. Seu filho não é um tolo enganado por uma espertinha. Está em jogo para ele principalmente “eu seria um bom pai”, e ela percebe, assim, que ele está com essa mulher a partir da criança, e não o contrário. Uma posição de salvamento do pai está em jogo e ordena as escolhas.
O filme parece ir desvelando a dimensão fantasmática que está na base das escolhas dos que estão à sua volta. E grande parte do filme marca esse mapeamento das fantasias. Trata-se de um personagem que vacila pouco e que claramente sustenta uma diferença frente aos demais. Ela não reage como se espera, mas também não fica paralisada. Ela não opera da posição de vítima. Ela opera de uma maneira diferente, que surpreende, intriga, enoja e fascina. Ela assume as escolhas da sua vida e o preço que se paga por elas. Por isso, ela pode dizer, frente ao risco e às escolhas que fez, “La patronne, c’est moi”, ela assume uma certa mestria aí. Ocupa um lugar.
Parto também da ideia de que estamos começando a construir uma série com esses comentários de filmes e, portanto, em algum momento, poderemos fazer uma pequena referência ao filme anterior e, assim, teremos Elle como um contraponto de Repulsa ao sexo. Nos dois filmes as duas personagens centrais aparecem dotadas de um certo distanciamento. Deneuve é estranha, tomada por ausências. E Huppert é fria, dura. Nos dois filmes uma imagem. Uma fotografia, mais exatamente, parece condensar todo o inefável do que está em jogo, revelando e escondendo, alienando e fixando o segredo da trama. Segredo que daria sentido, mas que fracassa, pois só amplia o sem-sentido. Em Repulsa ao sexo a fotografia no final do filme parece registrar a posição infantil da personagem, ou que algo que já estava inscrito desde a infância daria conta dos desdobramentos da trama, da tragédia subjetiva do personagem.
Assim, Michelle diz que não sabe por que o que restou como a imagem eleita de todo aquele horror que marcou o país, e particularmente sua vida, foi a fotografia da menina de dez anos, seminua, coberta de cinzas e com o olhar vazio, capturado por uma câmera fotográfica. Essa imagem fica como um resto que ressurge, que insiste. Esse resto ressurge nas telas, fora do sujeito, se torna o olhar vazio do Outro, algo diferente de uma localização no campo subjetivo, como a reminiscência, por exemplo. Para a psicanálise a memória não é separável do esquecimento. Essa foto, elemento colhido pelo outro da cena central infantil da personagem, fixa uma imagem indelével que, entretanto, não pertence à personagem, mas permanece ao alcance de qualquer um.
Algo da operação do recalque capenga fica furado por um retorno de algo que é externo ao sujeito. Como foi o caso do rapaz que, ao pesquisar cenas de crime para um jogo, se depara com a série de imagens que levam dessa fotografia de uma criança até ela, imagens sequenciadas que ficam sempre aderidas à personagem. Esse resto, essa parte que indexa a loucura paterna, vem de fora e se precipita sobre ela sem que se saiba a dimensão do estrago.
“A pequena psicopata”
Psicopata ecoa sobre a personagem que mantém um ponto de perplexidade diante daquilo que ela lembra que viveu e com que ela se depara como vindo de fora, do outro. A imagem indelével se torna, assim, um stalker, algo que a persegue e, como dissemos, isso dá a ela uma sensibilidade quanto a um certo fetichismo da modernidade. Sensibilidade que marca sua curiosidade em relação ao que move os que a cercam, as fantasias a que estão submetidos. Curiosidade que supera a vergonha trazendo a marca do que caiu na contemporaneidade, como mostra a impressionante frase: “Você se surpreenderia ao ver que a vergonha não impede ninguém de fazer nada”. E, realmente, ela parece não se envergonhar assim como as pessoas, que a localizam e a reconhecem como a filha de seu pai, não se envergonham de jogar coisas sobre elas. “Ordure, toi et ton père”. Ela permanece num misto de perplexidade e indiferença aos ataques.
A vergonha, como sabemos, só vem incidir depois. A vergonha vem quando subjetivamos nossa posição de objeto no olhar do Outro. Um exemplo disso é a criança que, no pátio da escola, sai correndo em direção ao banheiro e abaixa as calças antes de entrar. Ali ela está imersa na cena e na sua própria urgência. Só quando ela subjetiva o olhar do outro sobre suas partes íntimas expostas é que advém a vergonha. E a partir daí ela só tira as calças depois de estar dentro do banheiro.
Que ela, enquanto sobrevivente do surto e da passagem ao ato assassino do pai, não tenha palavra, a coloca participante, e não interrogante do enigma. No registro dos que o pai matou, ela destaca que não foram contabilizados os animais mortos. Os que não tinham fala. E não se levou em conta que um único foi deixado viver pelo pai. Que ela e um único animal tenham escapado vivos é fora de qualquer sentido. Inexplicável. Inefável. Sem sentido. Nenhuma invenção ou ficção é possível aí. “Isso não se inventa.”
Da posição de objeto na qual ela é colocada, resto metonímico de uma cena de horror, ela tem que encontrar uma saída. O que podemos imaginar? Ela participou com uma certa satisfação da cena de destruição e queima dos móveis e das cortinas da casa, e das roupas que ambos vestiam sem ter buscado interpretar o sangue que cobria o pai. Uma criança não teria medo ou angústia de ver o pai entrar em casa coberto de sangue? Ele não olhou para ela?
Ele continua em sua fúria destrutiva, e ela se engaja nisso como numa brincadeira, como num sonho no qual percebemos que, para não sermos percebidos e tomados na contabilidade, devemos agir como parte integrante da cena, disfarçar para não atrair o olhar do outro. Pensei nos sonhos de nudez em que o sujeito disfarça e finge que não sabe que está nu e, assim, espera não chamar a atenção do olhar do outro sobre si... Ela, imersa na cena, não entra na série enlouquecida do pai.
A entrada da polícia e dos jornalistas interrompe a cena e a satisfação. Ela é flagrada e se imobiliza. É no só depois que ela se dará conta da extensão e do peso da cena de que ela participou. Sair da posição de objeto e enfrentar constantemente a convocação do outro de que ela volte a ocupar esse lugar de culpa e vergonha pode se tornar uma tarefa quase cotidiana.
Acho interessante a posição da personagem. Ela sabe também se diferenciar da loucura paterna. Do pai ela só quer distância. Não é pra menos. Nenhuma condescendência à loucura lhe permitiria, como quer a mãe, desresponsabilizar ou amenizar os atos do pai e as consequências disso sobre sua vida. As diversas relações que a personagem central estabelece são apenas aparentemente cruas e frias. Elas são marcadas por uma franqueza que beira o abuso e, por outro lado, apresenta nuances de delicadeza absolutamente sutil.
Ela lida com uma mãe ninfomaníaca, que a deixou desamparada após a ruptura do pai com a realidade, sem nenhum pudor. Michelle se encontra, portanto, aos dez anos, sem pai nem mãe. A crueza da situação salta aos olhos. Por anos ela compartilha com essa mulher, que é sua mãe, a posição de quem recebe surpreendentes ataques de pessoas aleatórias ao ser reconhecidas. Como ela se arranja aí? Ela o faz sem se vitimizar. Michelle ataca o comportamento materno, reprova abertamente sua conduta. Ela que, após o ato paterno, deixou de ser mãe para se apresentar sem divisão, apenas mulher em “sa vissexuelle” como diz Lacan. Sua contradição aparece claramente em relação a essa mãe, pois ao mesmo tempo que Michelle a destrata e afirma tranquilamente que a mataria se ela se casasse com seu gigolô, vemos sua fragilidade estampada, pois ela tem a maior dificuldade de entender o coma da mãe e em seguida dificuldade de se dar conta dos sinais de que ela está morrendo. O luto é aparentemente tratado pelo viés da praticidade, mas a cena final em que, no cemitério, para sua amiga, ela se diz presente “pelo menos fisicamente” nos remete ao seu estado de constante mortificação.
Ela se torna amiga e sócia de uma mulher a partir de uma situação que podemos reconhecer como a que gerou a conhecida decisão salomônica. Duas mulheres dão à luz na mesma hora, e o filho de uma delas nasce morto. As duas afirmam ser mãe do filho vivo, e Salomão ordena que dividam a criança ao meio com a espada. É considerada verdadeira mãe a que se joga sobre o filho para lhe salvar a vida, a que deseja a vida para o filho, mais que o filho para si.
Esse filho partilhado com outra mulher não deixa de complexificar a sua relação com o pai, falido e depreciado. No entanto, a personagem se mostra sensível à revelação do filho quanto ao que realmente está em jogo para ele na relação com sua “petite amoureuse”. Estar com ela a partir do filho e não enganado por ela é sua maneira de sair de uma identificação ao fracasso de seu próprio pai. Ser um bom pai para um filho é a sua chance de sustentar uma mudança em relação à causa do desejo e estar de uma nova forma na vida. Saber disso a alivia da ideia de que haveria uma incidência do desejo da outra mulher sobre seu filho. E é esse alívio que muda sua forma de agir com o jovem casal.
O ex-marido, ela o provoca com pequenas cutucadas vingativas, (haja para-choque), e cenas de “ciúme civilizado”. A cena do pedaço de palito na comida da rival é hilária. Ela francamente se interessa e vai checar a outra, explicitando a pergunta que está colocada para todos: O que é uma mulher? No entanto, nessa relação também se explicita que ela está fora de se oferecer como objeto de um fantasma masoquista. O homem cai e é tratado como um tolo. Ao mesmo tempo ela acaba cuidando dele, quando ele tem que se haver com a decepção amorosa e com seu fracasso como escritor.
O amante, ela o entrega, quando ele lhe confirma a fantasia necrófila e volta a enredar o casamento com sua amiga apenas para provocá-la. Nesse ponto ela não suporta que a amiga não queira saber, não desconfie. Ela arrisca a sociedade e a amizade, e deixa de sustentar o semblant. A amiga se afasta até a cena do cemitério.
O estuprador. Bem, sobre ele e a relação que se estabelece entre eles, anotei alguns pontos que vou apenas listar para que possamos em seguida abrir o debate. Ela toma todos os cuidados e medidas médicas, mas se recusa a denunciar o crime, em função da cena do pai, que sempre retorna e recobre o sofrimento ou abafa a palavra que ela poderia ter. Ela percebe isso novamente e claramente, quando relata o fato aos amigos na mesa do jantar.
Na sua pesquisa para tentar saber quem é ele, ela se pergunta se o estuprador a escolheu como vingança, em função dos assassinatos perpetrados por seu pai. Descartada a possibilidade de que seja alguém do trabalho, ela se depara com um novo assalto. Ela luta com o agressor, o fere com tesouras e descobre sua identidade. Ela, que já flertava com ele, vai curiosamente verificar que, se ele se recusa às suas ofertas, não é por uma divisão subjetiva, mas porque a porta de acesso ao sexo era realmente estreita para ele.
Finalmente, ela se depara novamente com um ponto equivalente ao que se manteve eclipsado, emudecido na sua cena de infância, pois ela se esquivou do enigma que esse ponto carregava. Ela o recolhe novamente. Temos aí o retorno de um ponto do sujeito, diferente do retrato, que lhe era externo. Ela se depara com esse ponto quando vê o vizinho coberto de sangue como o pai. Ele se apresenta diante dela e lhe apresenta a pergunta elidida: “Por quê?”
Ela vai, então, se dirigir ao filho horrorizado e angustiado por seu ato e lhe dizer “Acabou”. E, frente ao policial, pela primeira vez, ela acompanha a versão dos fatos que ele vai construindo e responde exatamente como ele espera: “...quem poderia imaginar isso? ”.
Essa resposta ao policial foi algo que me lembrou o desfecho de O último tango em Paris, onde, apesar de tudo, de toda a obscenidade, violência e intimidade, no final, resta dizer que não se conhece, nada se sabe do próximo, do vizinho. Estamos dele (e de nós mesmos) apartados.
Cristina Vidigal é psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise, coordenadora da Nova Rede CEREDA no Brasil (Centre de Recherches sur l’Enfant dans le Discours Analytique), supervisora do NIAB (Núcleo de Investigação de anorexia e Bulimia do Hospital das Clinicas de Belo Horizonte)
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