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 logoder Revista Derivas Analíticas - Nº 19 - Agosto de 2023. ISSN:2526-2637

 

O delírio da normalidade[1],[2]

Éric Laurent
Psicanalista
Analista Membro da Escola (AME)
Membro da ECF, EBP, EOL, NEL, NLS
e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
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Notei que, ao título “O delírio da normalidade”, é preciso acrescentar o significante psicanálise aplicada, para entender o que ele vem fazer aqui, logo em seguida à excelente mesa redonda que acabamos de acompanhar.[3] Durante a mesa redonda não se ouviu referência à normalidade. Ouvimos, em quatro casos, como os colegas ouviram segundo a orientação psicanalítica, nas diferentes instituições, o que há de irredutível no sintoma em relação aos ideais de normalização. A cada vez que falamos em caso é disso que damos testemunho. É por isso que não falamos em termos de psicopatologia, mesmo que seja a de uma suposta orientação psicanalítica. Falamos de casos um por um. E somos os últimos a fazê-lo.

Do mestre contemporâneo

Somos os últimos a falar de casos "um por um", pois nas disciplinas clínicas fala-se somente em categorias clínicas. O sistema de provas foi revirado, pela introdução da Medicina Baseada em Evidências (EBM), por um tipo de evidência que remaneja totalmente o modo de comunicação clínica. Nesse sistema de pensamento estatístico, os casos clínicos são a última forma de comunicação e somente atestam o delírio próprio do médico. Nós, precisamente, nos atemos à apresentação, não de uma psicopatologia geral, mas do esforço de cada sujeito para tratar do seu sintoma e do acolhimento que lhe damos em instituições que, sem nossa presença, teriam tendência a tratá-lo como categoria.

O desafio que temos a enfrentar foi bem expresso no texto de Veridiana Maruchio da mesa precedente. Segundo o texto: “Sendo assim, podemos dizer que a psicanálise tomou para si alguns desafios. Um deles seria poder resgatar a clínica dentro desse serviço substitutivo ao manicômio regido por ideais definidos trazidos pela reforma psiquiátrica e reabilitação psicossocial”.

De fato, no campo das instituições que dizem respeito à saúde mental, somos confrontados com uma nova figura, com novos ideais progressistas trazidos pela reforma psiquiátrica, os ideais de reabilitação psicossocial. Como cidadão, como todo mundo, preferimos tais ideais progressistas aos reacionários. Isso não muda o fato de que são ideais. São novos significantes mestres que atualmente compõem nosso contexto e que são, digamos assim, a armação (armature) do discurso do mestre pós ou hipermoderno, aquele que integrou as formas de contestações no próprio interior de seu discurso. Nós, franceses, nos confrontamos com isso de forma particular, uma vez que nosso Presidente da República quer o tempo todo refundar o capitalismo. A tal ponto que as publicações anglo-saxãs brincam com ele dizendo: “Seria Sarkozy um socialista?”. O próprio discurso do poder inclui todos os discursos críticos ao exercício do poder. É um novo regime de funcionamento do discurso do mestre. É um tipo de regime de funcionamento devorador que nos leva a interrogar a situação da psicanálise aplicada em sua relação com o discurso do mestre.

A essa nova elucidação nos convidou Jacques-Alain Miller em setembro deste ano. Esse exame crítico segue-se a um período de 5 anos, no qual, desde 2003, ele próprio dera ênfase à psicanálise aplicada (MILLER, 2003-2004). Na relação dela com o discurso do mestre está a nova elucidação a que nos convida Miller. “Psicanálise aplicada” é um termo extraído do “Ato de fundação da Escola” (LACAN, 1971/2003). Houve, porém, uma modificação, pois no “Ato de fundação...” era “psicanálise aplicada à terapêutica”. Essa modificação dá conta de que a terapêutica mudou entre o momento em que Lacan escreveu seu texto e o ano 2000, o século XXI. A terapêutica deixou de ser um campo de aplicação da psiquiatria e passou para o campo da saúde mental. A saúde mental, nas suas novas normas de definição da saúde, é hoje a inscrição da antipsiquiatria no interior das normas burocráticas, cuja definição, no novo estilo de gestão do mundo, é a de retirar um saber clínico dos especialistas para recolocá-lo num campo definido por administradores, consumidores e usuários, enquadrados por uma orientação política específica.

Passamos de uma definição da terapêutica como, digamos, um saber clínico, à definição de normas sociais, que são definidas pela Organização Mundial de Saúde de maneira nova. A saúde, no final do século XX, foi definida como um estado de felicidade – ou de bem-estar – tanto corporal quanto mental, o maior que se possa atingir. Logo, essa felicidade utilitarista não fixa mais limites no saber, ela é claramente postulada como objetivo ideal. A psicanálise aplicada, portanto, encontrava-se em um contexto definido pelo discurso do mestre, aplicada às novas normas do ideal.

Da psicanálise aplicada no contexto atual

A partir de 2003, a ênfase dada à psicanálise aplicada era claramente uma tentativa de lembrar o discurso do mestre sobre a importância e a posição da psicanálise. Era num contexto em que, na França, sofríamos uma ofensiva legal da psicoterapia, assim como dos comportamentalistas. Era um contexto europeu no qual as burocracias sanitárias foram conquistadas pelos métodos de avaliação. A psicanálise aplicada se viu arrastada pelo delírio avaliativo, arrastada, digamos, pelo delírio avaliador dos burocratas ingleses. Nesse contexto, era necessário lembrar a força e a utilidade social da psicanálise.

Havia, de um lado, a velha e a nova Europa. Do outro, a América. A América, especialmente a Latina e a do Sul, com a grande divisão Brasil e Argentina, que definiam dois contextos diferentes e mais importantes. É claro, saúdo os demais colegas latinos, que também tiveram seu lugar, mas há esses dois gigantes psicanalíticos que são o Brasil e a Argentina. E aí, a relação com a ofensiva do discurso do mestre é diferente. Nesses países, após o período das ditaduras, houve uma ofensiva democrática importante que permitiu, justamente, colocar em primeiro plano ideais renovados, claramente definidos. De certo modo, foi a geração dos psicanalistas dos anos 1970 que passou ao poder. De formas distintas, na Argentina e no Brasil, os analistas conhecem de perto aqueles que têm responsabilidades no poder, que com frequência são amigos. A ofensiva do discurso do mestre apoia-se nesses amigos, que têm ideais e procedimentos que querem realizar, e há também os cientistas, de gerações mais recentes, pós-combates políticos, orientados por uma aplicação errônea do universal científico. A relação da psicanalise aplicada com as novas normas se faz essencialmente pelo contato com o discurso do mestre exatamente nas instituições de saúde mental.

Estamos num contexto diferente em que a diferença é marcada por um fato, por uma decisão. Pudemos prosseguir durante cinco anos com nossa ofensiva de sedução do discurso do mestre. A decisão de separar o antigo do novo mundo foi a questão dos Centros Psicanalíticos de Consultas e Tratamentos (CPCTs) que Miller (2009a) formulou da seguinte maneira: “A Argentina certamente não precisa de CPCTs”, ao que foi certamente preciso completar com um “e o Brasil, o mínimo possível”. Resta a questão de interpretação do que seria esse “o mínimo possível”.

Após o desenvolvimento dessas interações entre psicanalistas e discurso do mestre, contamos o grande sucesso que obtivemos. Por ocasião do último e excelente Encontro Americano em Belo Horizonte, constatamos, pela amplitude do número de trabalhos, pela qualidade, pela variedade de áreas, a extensão do discurso psicanalítico aplicado por meio da amplitude das novas normas do discurso do mestre.

Quaisquer que sejam essas novas normas e novos significantes, aparentemente éramos capazes de nos aclimatarmos (nous en accommonder). Aceitamos os novos sintomas, que são novas classificações do sintoma, que, por sua vez, permanece inclassificável. Aceitamos falar de anorexia, bulimia, hiperatividade, depressão, até mesmo de estabelecer lugares específicos para acolhida de bulímicas, anoréxicas, depressivos, agitados, etc... Aceitamos falar de saúde mental e de precariedade e nos vimos embaraçados por essa proliferação de novas normas. O sintoma, agora com relação às Escolas de Psicanálise, foi que, diante desse grande sucesso na extensão da psicanálise aplicada às novas normas, no interior das Escolas, toda a paixão dos seus membros parecia se desviar em direção a ela. A nova geração vinha à psicanálise com a ideia de criar instituições de psicanálise aplicada. Os casos clínicos eram geralmente de pequena duração, desenrolando-se em instituição, neles enfatizava-se o savoir-faire, colocava-se em destaque menos sobre o irredutível do sintoma e mais sobre o que sabemos fazer – tal como uma promessa nova.

A partir desse sintoma das Escolas de Psicanálise, dessa paixão pela psicanálise aplicada que ultrapassava as Escolas, que ocorreu na Europa, com o transbordamento de CPCTs na Argentina e no Brasil, com uma multiplicação, sem dúvida excessiva, de instituições de psicanálise aplicada. Daí a constatação – e o alerta – por Miller (2009b): Será que, em nossa tentativa de seduzir o mestre, não terminamos, nós mesmos, seduzidos por essa nova figura do discurso do mestre, um mestre munido de novos ideais contemporâneos?

Colocada essa questão, a resposta veio rapidamente. Sim. É preciso constatar e é preciso tomar medidas. Medidas em conjunto, coletivas, no sentido de lançar uma reflexão em que cada um se interrogue sobre esse ponto.

O laço social não existe

Não é o caso de transformar as novas gerações – que vêm à psicanálise porque não suportam a conformação com as novas normas ou os novos ideais que lhes são propostos – em agentes desses novos ideais, de reconciliá-los com esses novos ideais. Ao contrário, trata-se de lhes acolher – de acolher seu drop out, seu “cair fora” (pas de côte) com relação aos ideais conformes – no interior do discurso psicanalítico. O que devemos transmitir àqueles que, no nosso discurso, encontram apoio, pode se dar como uma lista. É o que vemos a partir do título do IV Encontro Americano: O sintoma e o laço social.

Será que vamos explicar o savoir-faire segundo o qual o sintoma poderá entrar no laço social? Iremos nos contentar, por outro lado, em mostrar que o sintoma faz obstáculo ao laço social. A partida será mais difícil. Por ocasião do III Encontro Americano do Campo Freudiano, nosso instrumento, o ponto de Arquimedes a partir do qual podíamos desestabilizar (soulever) as novas normas, era o sintoma como inclassificável. Ou seja, aquele que desafia as novas e as antigas normas. Qual será, agora, o instrumento para deslocar a relação entre o sintoma e o laço social?

Será preciso, sem dúvida, nos inspirarmos no título do congresso da AMP, Sinthomas e Semblantes, pois, de fato, o laço social é um semblante (semblante). O laço social não existe e é o que a psicanálise revela. Freud (1921/1989) em “Psicologia das massas e análise do eu”, observava que é no momento em que se produz o pânico, quando há dissolução do laço social, é que aparece a verdade desse laço social, fundado sobre paixões – o amor e o ódio, sobre o assassinato e sobre o amor pelo pai morto. Temos a chance de viver numa época em que, precisamente, a crise é todo dia. Todo dia descobrimos que os mercados mundiais caem 10, 20 ou 30%. Vivemos numa época interessante com relação a isso, que faz lembrar o provérbio chinês: “que você possa viver numa época desinteressante”.

Digamos que o pânico financeiro tomou o lugar, como posto de observação, do que Freud observava com relação às massas militares. A crise que se desenvolve sob nossos olhos nos lembra que o laço social é um mito. O que existe, por outro lado, é o contexto de saberes limitados, como dizem os economistas, uma opacidade fundamental no cerne do laço social. O agente, supostamente racional, do laço social econômico e político, ele próprio se engana. Ele é o tempo todo contaminado pelas emoções coletivas: a angústia e o pânico. Vemos aparecer uma dimensão do Real além de qualquer ciframento ou simbolização. Como dizia Barack Obama, em seu debate com John McCain, o dinheiro desaparece mais rápido do que tudo aquilo que se pode contar. E vimos o quanto é difícil, apesar da sua eleição, restabelecer a confiança que é o nome da transferência – a confiança num sujeito-suposto-saber. Isso nos lembra o quanto, para o laço social, é preciso uma confiança, um semblante, que marca esse amor a Deus. Não há dinheiro sem o In God We Trust.

Todo mundo é louco

Não há o laço social, o que existe são maneiras de falar. São discursos que fazem semblante de laço social. Quando Lacan (1971-72/2012), afirma que só há laço social no discurso, ele enfatiza o fato de que não há um laço social. Ele, de saída, é múltiplo, é limitado e depende da possibilidade de se sustentar um discurso. Fora da sustentação desse discurso, o que existe é o real da angústia – da angústia destrutiva, não da construtiva, aquela que indica o desejo –, a angústia e a pulsão de morte.

Portanto, a saúde mental também não existe. Face à escalada dos ideais da saúde mental coletiva, Lacan (1978) enunciava proposições provocadoras como: “todo mundo é louco” (tout le monde est fou). Isso não quer dizer, naturalmente, que todos são psicóticos, e nem que a clínica estaria completamente enlouquecida. Significa que não há nenhuma possibilidade de visar uma norma comum. Quanto mais forem globalizados os ideais da civilização, quanto mais comuns aos espaços de civilização que antigamente estavam separados, quanto mais for proposta uma norma para todos em um utilitarismo sem limite, mais precisaremos lembrar que todo mundo é louco. Isso significa que cada um é um obstáculo à norma de todos, que existe sempre um “x”, que é obstáculo ao “para todos”, e isso é cada um de vocês, cada um constitui uma exceção à norma. Façam uma análise. Há muitos aqui que fazem análise, mas para aqueles que ainda não estão em análise, façam essa experiência e verão que vocês também são loucos... Que no fundo vocês “fazem-de-conta” (faire semblante) que entram na norma, mas o sintoma de vocês é um obstáculo a isso. Será sempre aquele ponto de real que objeta. É por isso que as normas são sempre mentirosas.

A ideia de nos propor, em nome da razão, um ideal que seria suportável por todos, é, por exemplo, aquilo que os trabalhos de Jürgen Habermas (1990) subentendiam. Ele pensava ter compreendido, a partir da psicanálise existencial e dos primeiros trabalhos de Lacan, que o sintoma era uma língua particular, de um sofrimento particular, e que o ideal seria reabsorver essa língua particular numa língua comum. Fazer a língua privada entrar na língua comum pelo poder da razão ou da cognição, que se manifesta, segundo ele pensava, na experiência de uma análise. Donde sua ideia de um “agir comunicacional”, segundo o qual seria possível, por uma ação precisa, reabsorver todas as particularidades numa grande comunicação geral. Por isso Habermas, de certo modo, tornou-se a moral comum das burocracias do Ocidente.

A experiência da psicanálise é a de que há um ponto que não pode ser resolvido (resorbé) e que é o fato de que, finalmente, cada um só acredita profundamente no seu sintoma. Quanto ao resto, é semblante. E por isso que o sintoma não se reduz à psicopatologia, que também não existe. São modos de discurso, de classificações; podemos preferir algumas entre elas, nem todas são iguais, mas não devemos nos enganar – elas não existem.

É por isso que a partir do título do IV Encontro Americano, Semblante e Laço Social, será preciso que nós certamente não façamos entrar o sintoma no laço social. Não diremos somente que o sintoma constitui um obstáculo ao laço social, mas diremos que só há um laço social que é o sintoma no discurso analítico e que esse discurso se distingue dos outros na sua ambição de fazer um modo de laço social apoiado justamente no que há de irredutível no sintoma.

Como é preciso concluir, direi então que o modo de nos protegermos, de nos defendermos do delírio da normalidade, é o nosso esforço constante para mostrar que: a saúde mental não existe, que o laço social não existe, que a psicopatologia também não existe e que, uma vez que sabemos disso, então, sim, poderemos nos aproximar do sintoma como Real.

DEBATE[4] 

Antônio Beneti: Disse Tom Zé: “Se os médicos persistirem, consulte seu sintoma”, acho que isso retrata bem um pouco do que você nos trouxe. 

Éric Laurent: Um bom chiste toca a sala. Você tocou o embaraço da sala. Você a aliviou – escutamos os risos. É uma boa maneira de retomar a questão do desejo do analista. Uma maneira suplementar da gente se desfazer da miragem da psicanálise aplicada à norma é que ela possa nos impelir, ao contrário, a pensar a psicanálise. E não como se houvesse, de um lado, a psicanálise aplicada nas instituições e, de outro, a psicanálise pura, que estaria protegida pelos analistas. Não.

A psicanálise pura repousa sobre o analisante. É que os próprios psicanalistas tendem a se proteger da psicanálise, ou seja, eles têm tendência a não mais falar como analisantes. É nesse sentido que eles se protegem. Por isso Lacan (1973/2003) pôde falar de sociedades de psicanálise como um grupo de proteção contra o discurso psicanalítico. Seria o caso da IPA (International Psychoanalytical Association), claro, mas a nossa [associação] também teria tendência a fazer a mesma coisa, a de ser uma reunião de pessoas que, atravessadas pelo discurso psicanalítico, já não são mais psicanalisantes, pessoas que romperam o laço com os seus inconscientes. Nesse sentido, nas instituições do campo da saúde mental não existem analistas, existem analisantes.

Aliás, há uma citação minha no texto de Veridiana, da mesa redonda precedente, que vai nesse sentido e diz: “Segundo Laurent, o que a psicanálise impõe à saúde mental é o poder da presença do Outro e o amor que ele induz”. É como analisante que em uma instituição pode-se fazer aparecer a transferência..., que o amor pela psicanálise pode aparecer. Mas também é preciso que em uma sociedade de psicanálise, como lembrava com força Miller, que a paixão seja posta na experiência da análise de cada um. Digamos que o desejo fundamental do analista deve ser o de ser analisante. Pode ser um analisante que ainda está em análise ou não. Como diria Lacan, ele fazia seu passe a cada vez que ensinava. Ou seja, ali ele queria ser analisante (LACAN, 1970-71/2009, p. 11). De fato, essa é a chave da justa situação das relações entre a psicanálise e o discurso do mestre. O discurso psicanalítico é um laço social entre analisantes.

X: E a depressão? 

Éric Laurent: Sobre a depressão, devemos acolher, da boa maneira, o significante “eu sou deprimido”. A declaração “eu sou (ou estou) deprimido” pressupõe que nos demos o tempo de articular essa declaração nos três registros – Real, Simbólico e Imaginário (R, S e I) – e de que se possa verificar como o sujeito se encontra dentro do seu enodamento singular esmagado pela categoria “depressão”. É uma categoria da qual fala o marketing farmacêutico e as esperanças errôneas que eles transmitiram, produzindo verdadeiras epidemias. A operação analítica, o desejo do analista, é o de permitir a cada um que se torne um analista de sua própria depressão. Sabendo-se que no que chamamos depressão pode, de fato, existir a melancolia. Como dizia Beneti na mesa redonda precedente, há coisas que escapam ao poder do jogo de palavras, ou da interpretação. Há sujeitos que necessitam ser internados imediatamente, mas de maneira amável, civilizada, cuidadosa. É preciso assumir a responsabilidade. Nesse caso nós não vamos nos dar o tempo como nos outros, para ver o que se quer dizer com “eu faço parte dos deprimidos”. 

Manoel Motta: No caso dos centros de tratamento em que se aplica a psicanálise e que estão articulados à Escola, como pensarmos o que Miller chamou de “mínimo possível”?

Éric Laurent: Não é uma questão de números, de cifras, pois não confiamos nesse tipo de cálculo, mas é preciso, ao mesmo tempo, sem dúvida, um critério mínimo. Digamos que, para que a Escola de psicanálise não se esqueça dela mesma, nesse seu esforço de construir centros de tratamento, é preciso que ela se mantenha modesta e limitada, de maneira que se mantenha que o esforço central repousa sobre a análise de cada um. Aquilo de que, antes de qualquer coisa, a Escola tem necessidade é, digamos, de que haja uma paixão analisante. Paixão de se aplicar a si mesmo a psicanálise. Cada um é um CPCT. Um centro de aplicação da psicanálise a si mesmo. Essa é uma vasta questão!


Referências 

FREUD, S. Psicologia de las massas y análises del yo. In: Sigmund Freud Obras Completas. Buenos Aires, Amorrortu Editores, Vol. XVIII, 1989. (Trabalho original publicado em 1921).

HABERMAS, J. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.

LACAN, J. Ato de fundação. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 235-247. (Trabalho original publicado em 1971).

LACAN, J. O Seminário, livro 18: De um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. (Texto original proferido em 1970-71).

LACAN, J. O Seminário, livro 19: ...ou pior. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. (Trabalho original proferido em 1971-72).

LACAN, J. Televisão. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. (Trabalho original publicado em 1973).

LACAN, J. Transferência para Saint Denis? Diário Ornicar Lacan a favor de Vincennes! Correio – Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, São Paulo, n. 65, 2010. (Trabalho original redigido em 1978).

MILLER, J.-A. Conferência no teatro Coliseo. In: Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 53, 2009a.

MILLER, J.-A. Curso de Orientação Lacaniana III, 6. (2003-2004, Inédito). 

MILLER, J.-A. Qual a política lacaniana para 2009? Perspectivas de Política Lacaniana. In: Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 53, 2009b.

 

[1] A Derivas agradece ao autor pela amável autorização para reprodução deste seu texto, extraído do livro de sua autoria Loucuras, sintomas e fantasias na vida cotidiana, publicado em 2011 pela EBP e pela Editora Scriptum.

[2] Nota do Editor do livro: Conferência de Éric Laurent no contexto da manhã preparatória do XVII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano – Psicanálise e felicidade: sintoma, efeitos terapêuticos e algo mais – dedicada ao tema “O campo da Saúde Mental”, realizada no Rio de Janeiro em 21 de novembro de 2008. Tradução consecutiva: Marcus André Vieira e Romildo do Rêgo Barros. Registro em vídeo: Yara Valione. Transcrição: Maria Noemi de Araújo. Edição final: Marcus André Vieira.

[3] N. E.: Éric Laurent faz, aqui, referência à mesa redonda anterior a esta conferência, na mesma manhã do dia 21 de novembro de 2008.

[4] N. E.: Na transcrição deste debate, não foi possível incluir todas as questões porque nem sempre o registro na gravação se encontrava audível. Assim, nos limitamos àquelas que permitiram uma transcrição ou, pelo menos, uma localização temática.

 

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