Desmontar a servidão voluntária
Maria de Lourdes Mattos
Três metáforas com significados semelhantes – sombrio, obscuro, opaco –, relacionadas a um tempo de escuridão, de falta de luz, de apagamento da memória de outros momentos da história, contribuem para a reflexão destes tempos. Tempos de incerteza, de ausência de respostas para o que virá, tempos de medo e de angústia. Não bastassem governos extremamente autoritários, temos ainda uma grave pandemia. Pergunta que insiste com frequência desde o golpe que destituiu a ex-presidente Dilma Rousseff, em 2016: como pudemos chegar a este ponto? Parodiando um velho dito popular, "não há nada tão ruim que não possa piorar"... E um sentimento de forte indignação expressa outro questionamento: como a maioria da população brasileira escolheu um representante totalmente contrário aos seus interesses sociais e políticos?
La Boétie, pensador do século XVI, que teve uma vida curta, deixou um escrito importante, intitulado Discurso da servidão voluntária, cuja reflexão diz respeito à relação tirania e servidão. “É o próprio povo que se escraviza e se suicida quando, podendo escolher entre ser submisso ou ser livre, renuncia à liberdade e aceita o jugo; quando consente com seu sofrimento, ou melhor, o procura.” Em sua análise, La Boétie levou em conta que aquele que se submete pode também submeter o outro, como se cada um portasse dentro de si um “tirano”.
Umberto Eco, em uma conferência realizada para estudantes americanos em 1995, intitulada O fascismo eterno, faz uma série de considerações sobre o tema do fascismo, muitas delas facilmente percebidas nos dias de hoje, advertindo: “o Ur-Fascismo pode voltar sob as vestes mais inocentes”. Sua contribuição vem da necessidade de reconhecer essa presença para combatê-la. A questão da servidão voluntária está colocada aí a partir de outro ângulo.
A Psicanálise, com a formalização do Inconsciente, introduz novas arestas e possíveis respostas para essa discussão. Somos prisioneiros da linguagem, mas algo sempre foge do seu alcance, pois a palavra não dá conta de tudo. Freud, em textos como "Os instintos e seus destinos" (1915), "Psicologia das massas e análise do eu" (1921), "A negação" (1925) e "O mal-estar na civilização" (1930), traz referências fundamentais sobre a relação amor e ódio, as quais complementam a discussão sobre o fascismo: o amor é parceiro do ódio, mas o ódio pode se apresentar sozinho, tendo em vista que antecede o amor. Na operação de constituição do sujeito, denominada ausstossung, o eu, para introjetar o que é bom, expulsa o gozo que lhe é nocivo.
Eco chama atenção para uma das características do fascismo: o culto ao heroísmo ligado ao culto à morte. Apesar de vivermos num país democrático, o culto à morte, com manifestações de ódio, tem se apresentado sem rodeios, sem máscaras.
O recrudescimento do totalitarismo se dá num mundo carente do Pai, do recurso simbólico. De acordo com Lacan, em "Nota sobre o pai", publicado na Opção Lacaniana, em 2015, “a cicatriz da evaporação do pai” é localizada no racismo, na segregação. O universal contemporâneo é a segregação generalizada, que vemos representada em inúmeros agrupamentos, nas seitas religiosas, nas milícias e nos meios digitais.
Esse processo não é novo, embora venha adquirindo contornos assustadores nos dias de hoje. Historicamente, localiza-se no Antropoceno – nova era geológica que representa um novo período da história do Planeta, em que o ser humano se tornou a força impulsionadora da degradação ambiental e o vetor de ações que são catalisadoras de uma provável catástrofe ecológica –, marcado por uma mudança na relação do homem com a natureza, que passou de um sistema de produção artesanal para uma produção industrial, implicando um “casamento” entre capitalismo e ciência.
Miller, em O real no século XXI, de 2012, afirma que “capitalismo e ciência se combinaram para fazer desaparecer a natureza e o que resta do desvanecimento da natureza é o que chamamos de Real, quer dizer, um resto desordenado por estrutura”. Antes dessa parceria, o Real era próximo da natureza, os eventos eram previsíveis, as estações do ano não surpreendiam, o Real e o Simbólico estavam conjugados. De acordo com Miller, o Real se tornou imprevisível, sem lei. O século atual nos coloca diante de muitas mudanças, é o “grande século da bioengineering, que tornará possível todas as tentações do eugenismo”.
A parceria capitalismo e ciência resultou num processo de predação ambiental inimaginável, no qual todas as cadeias de vida estão ameaçadas. Segundo o antropólogo e economista Tomás Togni Tarquínio, em entrevista no YouTube, em 2020, a desregulação ecológica é planetária. Atualmente, a população mundial tem aproximadamente oito bilhões de habitantes, sendo que os 10% mais ricos são responsáveis pela emissão de 52% dos gases que provocam o efeito estufa, acumulados desde 1990. Os 50% mais pobres contribuíram com uma porcentagem bem mais reduzida, 7% desses gases. Tarquínio ressalta que o problema não é o aumento da população, como certas correntes ideológicas argumentam, numa tentativa de “justificar” uma política de extermínio dos mais pobres. O aquecimento global está intimamente relacionado com o modo de vida da população, que inclui o que se produz e se consome.
O Brasil de hoje é pioneiro mundial de mortes causadas por Coronavírus, com aproximadamente três mil vidas perdidas por dia, totalizando, até o momento, quase quinhentas mil mortes. Aliadas a esse terror diário, tivemos as chamas do Pantanal e da Amazônia, importante pulmão mundial. Queimar para criar gado e encher o bolso dos representantes do agronegócio: essa prática destrutiva não é nova, embora tenha se agravado muito no atual governo.
Em artigo publicado na revista Piauí, em outubro de 2020, "O elefante negro – que doenças a floresta esconde?", João Moreira Sales traz importante contribuição sobre os desastres ambientais causados pela exploração indevida da floresta. A construção da usina hidrelétrica de Tucuruí é um exemplo. Ao longo de dez anos (1974-1984), foi desmatada uma área maior do que a soma dos municípios de São Paulo e Rio de Janeiro, com recorde mundial em terraplanagem. Boa parte da madeira retirada foi para debaixo d’água. O impacto sanitário assustador gerou a propagação de várias espécies de mosquitos transmissores de doenças, incluindo a malária, que nesse período passou de duzentos e cinquenta casos para dez mil, além da expulsão de muitas famílias que viviam à beira do lago, devido aos ataques dos mosquitos. Com base em um estudo laboratorial, o artigo em questão ainda pondera que “a infecção humana é quase sempre um acidente biológico”. “Os garimpeiros destroem as barrancas de um igarapé. Os madeireiros derrubam a floresta. Chegam os bois. Os tratores erguem uma barragem. Os hospedeiros naturais – macacos, pássaros, [...] – fogem ou são extintos, e o vírus, obedecendo ao imperativo da própria perpetuação, salta para uma nova espécie apta a abrigá-lo”.
Segundo Sales, o mundo das finanças criou o termo cisne negro para expressar a chegada de um evento que causa impacto e susto, cujos sinais eram previsíveis e foram negligenciados. O 11 de Setembro e a atual pandemia seriam exemplos de cisne negro. O ambientalista Adam Sweidan cunhou outra expressão – elefante negro – que seria a tragédia causada pelo evento previsível. Em 2014, o então presidente dos EUA, Barack Obama, afirmou: “pode ocorrer e provavelmente ocorrerá entre nós uma doença mortal possível de ser transmitida pelo ar” – motivo pelo qual criou o programa federal de vigilância pandêmica, desativado por Trump em 2019.
As duas expressões, cisne negro e elefante negro, manifestam de algum modo “a grande desordem no real do século XXI”, como nomeia Miller. Por um lado, o real da ciência, com suas leis próprias, que possibilitam prever alguns eventos, como a Covid-19; por outro, um Real sem lei, expresso nas grandes catástrofes que acometem nossos tempos. Um termo que vem sendo muito utilizado, “negacionismo”, guarda estreita relação com os “acidentes” ambientais negligenciados pelos atuais governos autoritários, e com a dramática situação sanitária que estamos vivendo. O negacionismo inclui a banalização dos acontecimentos, o apagamento da memória e a atitude de negligência, produzindo o que Guy Briole, em publicação na Opção Lacaniana de abril de 2020, considerou um discurso sombrio: “o homem é esquecido em relação aos ensinamentos da história e na busca da verdade, na maioria das vezes ele opta pelo discurso sombrio”.
A psicanálise tem uma tarefa importante no sentido de trazer um pouco de luz para tempos assim. Para tal, o psicanalista precisa, como bem recomendou Lacan em "Função e campo da fala e da linguagem em Psicanálise", em 1953, estar à altura da subjetividade de nossa época, ou seja, estar à altura de acolher o sujeito do gozo em sua singularidade, possibilitando que a partir do recurso da palavra ele possa se livrar das amarras do supereu da servidão voluntária. É preciso considerar a dimensão política do Inconsciente, tendo em vista que o sujeito individual é afetado pelo coletivo do universal contemporâneo. O psicanalista deve estar apto a levar em conta o Real em jogo em direção à singularidade do sintoma de cada sujeito, o que, sem dúvida, fortalece a democracia e a dimensão do amor.