E os Escritos completam 50 anos!
Por: Elisa Alvarenga, Joseph Attié, Miquel Bassols, Guy Briole, Antonio Di Ciaccia, Cristina Drummond, Célio Garcia, Angelina Harari, Bernardino Horne, Gilson Iannini, Jeferson Machado Pinto, Ram Mandil, Laure Naveau, Pierre Naveau, Jean-Michel Rey e Marcus André Vieira.
Para homenagear e celebrar os 50 anos dos Escritos, de J. Lacan (1966-2016), Derivas Analíticas preparou um dossier especial com textos de colegas da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP-AMP), de outras escolas da Associação Mundial de Psicanálise (AMP) e colegas psicanalistas e universitários que aceitaram nosso convite para dizer algumas palavras sobre esses 50 anos, o impacto dos Escritos sobre sua formação e os desafios de sua leitura.
Às três questões enumeradas abaixo cada autor respondeu ao seu modo, oferecendo-nos, generosamente, o seu testemunho, verdadeira “pérola”, de suas relações com essa obra extraordinária de Jacques Lacan.
1. Qual foi, a seu ver, o impacto dos Escritos, de Jacques Lacan, no momento de sua publicação, em 1966?
2. Hoje, passados 50 anos de sua publicação, época de um obscurantismo crescente, qual é, em sua opinião, a atualidade dos Escritos no “debate das luzes”?
3. Segundo Lacan, para ler seus Escritos, é preciso "colocar algo de si". Qual foi sua maneira de ler essa obra?
Elisa Alvarenga
Parece-me que a publicação dos Escritos em 1966 não apenas constituiu um selo do Lacan estruturalista, para o qual o texto A ciência e a verdade[1] poderia ser um ponto de basta, como também abriu para o Lacan que, ainda nos anos 1960, promoverá o objeto a ao zênite social. Pois esse texto, que reconhece que “[...] a psicanálise é essencialmente o que reintroduz na consideração científica o Nome-do-Pai [...]”,[2] é a estenografia da aula de abertura do seminário O objeto da psicanálise, que na presença do próprio Michel Foucault, aponta como Lacan irá além do repas estruturalista. Já em 1967 Lacan proporá à sua Escola o procedimento do passe, abrindo as portas para uma nova era na comunidade analítica, e provocará a dissidência de vários de seus, até então, discípulos.
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Penso que os Escritos são os textos fundamentais, aos quais sempre retornaremos, pois neles encontramos os germes de vários desenvolvimentos posteriores de Lacan, que reencontramos em seu último ensino. Só para citar um pequeno exemplo, a frase de Lacan, encontrada em De uma questão preliminar,[3] que evoca “[...] uma desordem provocada na junção mais íntima do sentimento da vida no sujeito [...]”,[4] poderá ser retomada a partir do que Lacan, nos anos 1970, em Televisão,[5] trará sobre a mania e a melancolia, para pensarmos as psicoses ordinárias, introduzidas por Miller em 1998, e as variações do humor, retomadas por nossos colegas da ECF em 2008. Os Escritos são, portanto, fundamentais e absolutamente atuais para pensarmos a clínica psicanalítica de hoje.
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Minha maneira de adentrar os Escritos foi imergir, ao mesmo tempo, neles e na língua francesa. Pois quando decidi estudar francês, para poder ler Lacan, decidi lê-lo em francês, mesmo sabendo que meu entendimento, tanto do francês quanto de Lacan, seria inicialmente precário. Encontrei a psicanálise lacaniana na residência de psiquiatria do Instituto Raul Soares, onde dois preceptores eram psicanalistas lacanianos, fundadores de duas instituições lacanianas em Belo Horizonte. Cinco anos depois fui fazer meu doutorado em psicanálise em Paris. Então, foram alguns anos tentando estudar francês, com uma professora particular, e estudar Lacan, nas primeiras instituições lacanianas de Belo Horizonte, até a imersão na Universidade de Paris 8 e na École de la Cause Freudienne. Como sabemos que, na psicanálise, a nossa leitura depende do caminho percorrido na análise, acredito que minha leitura de Lacan só pôde se tornar efetiva a partir de minha própria análise, que durante anos foi realizada também em francês. Posso dizer, então, que há uma proximidade entre minha experiência de incorporação da língua francesa e da psicanálise de orientação lacaniana, e uma certa reciprocidade entre elas.
Elisa Alvarenga é psicanalista, AME da EBP-AMP. É doutora em psicanálise pela Universidade de Paris 8.
Joseph Attié
Cara Yolanda Vilela,
Estou muitíssimo pesaroso, [mas] meu estado de saúde impediu-me de me mobilizar para responder às suas três questões; o que eu gostaria muito de ter feito.
Quando penso que foi o próprio Lacan que me anunciou, ao final de uma das minhas sessões, que ele preparava essa publicação... Já eram sete horas da noite. Fiquei surpreso e muito contente por ele ter se dado ao trabalho de me dizer isso.
Esse não é um testemunho de minha relação com os Escritos, mas de minhas relações com Lacan.
Espero que você receba muitos testemunhos. Aguardo para ler tudo isso com grande prazer.
Muito amicalmente, com todas as minhas desculpas.
Joseph Attié
Tradução: Yolanda Vilela
Joseph Attié é psicanalista em Paris. É AME da ECF e membro da EBP e da NLS. Entre suas publicações destacamos: Mallarmé O Livro (Forense, 2013) e Entre le dit et l’écrit - Psychanalyse et écriture poétique (Michèle, 2015). Agradecemos a Jo Attié pela amável autorização de publicação desta mensagem.
Miquel Bassols
É sabido que a publicação dos Écrits, de Jacques Lacan, significou um rápido êxito de vendas nas livrarias francesas naquele momento de grande ebulição intelectual. O próprio Lacan o recordava com certa surpresa irônica, dizendo que teve mais sorte que Freud, cuja Interpretação dos sonhos vendeu muito poucos exemplares no momento de sua publicação, no início do século XX. E acrescentava: “meu livro é até mesmo lido em demasia”. Por que “em demasia”? Não era falsa modéstia, para alguém que sustentava, ao mesmo tempo, que seus escritos eram feitos para não ser lidos, ao menos não como são lidos outros textos no campo do saber acadêmico e universitário. Concebia-os, de fato, como o produto não reciclável do seu ensino oral, do seu seminário, no qual Lacan desenvolveu semanalmente, pacientemente, sua elaboração da experiência analítica durante trinta anos. Dessa forma, esses “escritos” não eram de alguém que se identifica como seu autor, mas de alguém que sabe ser seu efeito, leitor em primeiro lugar daquilo que os causou. É o que distingue radicalmente esses Écrits da ampla produção escrita de outros “maîtres à penser” daquela época. Diferentemente deles, aquilo que para Lacan é o motivo dos seus escritos, é a causa analítica, a própria relação do sujeito com o inconsciente, não a exposição de um saber já sabido de forma acadêmica, um saber referencial, como dirá um pouco depois, um saber teórico aplicável à prática a partir do exterior. É por isso que não há como adentrar no texto de Lacan sem a elaboração do saber que ele chama de textual, que é o saber do texto do próprio inconsciente, articulado segundo a lógica do significante e da letra. Assim, entende-se que Lacan mesmo abra um desses escritos, A instância da letra no inconsciente…, dizendo curiosamente que está “a meio caminho entre o escrito e a fala” e que, por isso mesmo, esse texto não pode ser considerado um escrito. Parece incompreensível. É como se se gravasse na capa dos seus Écrits: “Isto não é um escrito”. Diga-me, então, como o leremos! Mas ele diz também como ler o texto: “[...] não deve deixar ao leitor outra saída senão a sua entrada, que prefiro difícil”. Então, se entende perfeitamente, sob a condição de não querer compreender rápido demais. Esse escrito de 1957, por exemplo, não se entende sem as claves do seu seminário sobre As psicoses, do ano anterior. Jacques-Alain Miller nos deu rapidamente a lógica desse movimento interno no ensino de Lacan e a forma de decifrá-lo. Assim, esses “escritos” são, de preferência, restos, dejetos depurados de um ensino oral, que requerem um trabalho constante para neles nos orientarmos. E é por isso que ele encarregou Jacques-Alain Miller do índice ponderado que está ao final do volume, instrumento que continua sendo necessário. É um mapa feito – e sabemos por ele que foi feito na urgência – pelo “ao menos um que sabe me ler”. Desse modo, os escritos de Lacan, seguindo sua própria indicação, continuam sendo como as flores japonesas que devem ser banhadas na água dos seus seminários, para que se abram um pouco, e sempre a partir de dentro, chamando a partir do seu interior, como dizia a respeito do próprio lugar do saber do inconsciente. Sua estimativa era que bastariam dez anos de trabalho para que essa abertura se produzisse de modo conveniente para o leitor mais desassossegado. Minha impressão é que Lacan calculou mal. Eu volto uma e outra vez aos Écrits, quarenta anos depois de tê-lo encontrado pela primeira vez, e continuo abrindo pétalas que haviam passado despercebidas. É uma fonte que nunca desaponta!
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Dizer que os Écrits, de Lacan, não deixam nunca de ser atuais é dizer pouco, porque eles mesmos põem em questão a atualidade à qual se referem. Portanto, é necessário colocar esses escritos em ato, por assim dizer; é necessário colocá-los em prática, fazer o que dizem para alcançar essa mesma atualidade. Podemos simplesmente nos poupar o trabalho de fazê-lo e deixá-los passar ao depósito da biblioteca para que continuem dormindo, não fosse pelo fato de que nos conduziriam ao pesadelo da história, como dizia Joyce, sem poder dele despertar. É o que ocorre, por exemplo, a uma parte da intelectualidade, especialmente a espanhola, que diz já ter “dado a volta a Lacan”. Mas é um “dar a volta” sem nunca ter ido de fato a Lacan, sem ter ido de fato à verdadeira atualidade do ensino de Lacan, àquela que continua colocando em ato os nós do debate mais contemporâneo. Por certo, gosto sempre de sublinhar esse traço distintivo dos escritos de Lacan: fazem o que dizem, põem em ato aquilo que querem transmitir. Quando Lacan quer explicar a metáfora do sintoma, ele nos propõe uma metáfora; quando quer explicar a topologia sutil do inconsciente, que somente nos abre a porta do seu saber se o chamamos “a partir de dentro”, Lacan escreve um texto cuja porta só se abre “chamando a partir do interior”. A atualidade de seus escritos é, então, aquela que o leitor sabe lhe dar ao seguir as consequências desse ato. Isso sempre tem consequências; é a constatação que faço a cada vez que coloco para ressoar neles qualquer tema daquilo que chamamos, precisamente, “a atualidade”.
Mas a pergunta se refere sem dúvida ao “debate das luzes” que a própria contracapa do livro dos Écrits evoca como o nó no qual encontra sua razão de ser: o debate da Ilustração, o debate que se abriu no século XVII com o nascimento da ciência moderna – “ainda que assim pareça ficar datado”, acrescenta esse texto da contracapa evocando o momento da subversão do sujeito que a psicanálise introduz no “comércio cultural”. É que estamos sempre nesse debate, encore, sempre e uma vez mais, para além das datas. É também o debate no qual se encontra hoje a psicanálise perante a ferocidade higienista e avaliadora do cientificismo atual. Estamos vendo isso, por exemplo, no campo das políticas do autismo na Europa. Os Écrits, com efeito, se anunciavam em 1966 na linha de frente do debate das luzes contra o obscurantismo da “falsa evidência”, convocando os psicanalistas a intervir nele de maneira decidida a partir do lugar que ocupam. Esse obscurantismo da falsa evidência, que não parecia tão manifesto naquele momento, estendeu-se hoje em nome de uma suposta ciência. Cada página dos Écrits demonstra ter, a partir dessa perspectiva, uma atualidade que nos deixa pasmos, para responder às conjunturas clínicas e às políticas de hoje. Algo assim não envelhece nunca: for ever young!
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Lembro bem do meu primeiro encontro com o texto de Lacan. Jovem estudante do primeiro ano do curso de psicologia, topei com uma citação sua em um livro crítico em relação à psicologia acadêmica que chamava de “mito científico”. A citação é do seu escrito de 1966, Posição do inconsciente, e a guardo sublinhada em vermelho: “A psicologia é veículo de ideais: nela, a psique não representa mais do que o patrocínio que a faz qualificar de acadêmica. O ideal é servo da sociedade”.[6] Para alguém desencantado com as promessas e os ideais daquele momento, ajudado pela angústia, isso foi como as águas de maio,[7] e não precisamente de maio de 1968. Lançou-me de imediato na busca daquela citação na edição espanhola dos Escritos, da editora Siglo XXI, volume que ainda se anunciava com o título – tão conjuntural para o comércio cultural do momento, como inexato em relação ao discurso que Lacan sustentava – de “Leitura estruturalista de Freud”. O aguaceiro foi desmedido. A primeira leitura do texto gerou em mim uma torrente de perguntas que não sabiam se represar. Produziu ao mesmo tempo a certeza de que ali havia algo realmente interessante, algo que pedia para ser lido com cuidado e que valia a pena decifrar. Mas como? A avalanche de referências, as explícitas e as implícitas que podia encontrar por mim mesmo, me levava a um estado que qualifiquei em algum momento de traumático. Um trauma de entusiasmo, diria agora. As contingências ajudam: um amigo e colega me indicou que iriam iniciar em Barcelona alguns grupos de estudo de leitura de Lacan ministrados por Oscar Masotta, sem dúvida o primeiro leitor sério de Lacan em língua espanhola. Inscrevemo-nos de imediato. E o aguaceiro se transformou em tsunami. Dali ao divã havia somente um passo, que foi para mim o passo necessário para começar a medir as consequências daquilo que ia decifrando do texto de Lacan. Um tempo depois, essas mesmas consequências me levaram à prática da psicanálise. Para mim, a prática da psicanálise tem sido desde o início uma consequência do encontro com o texto de Lacan, nunca o inverso. Não recorri ao texto de Lacan para organizar uma prática já adquirida. Seguramente é por isso que não entendo que se recorra às vezes a esse texto e ao ensino de Lacan como um modo de justificar ou adornar uma prática “psi” para outros fins, geralmente para envernizá-la sem conexão alguma com a própria experiência analítica. Creio que nesse ponto, seguindo a lógica desse ensino, é melhor não ceder nem um palmo. O preço costuma ser alto para o próprio praticante e finalmente pode ser fatal para o futuro da psicanálise. Essa é a força do texto de Lacan, com todas as suas consequências nos registros clínico, epistêmico e político, que Jacques-Alain Miller tem bem sabido desentranhar. Hoje, para os membros das Escolas da AMP, ainda que também para outros fora dela, o trabalho de transferência com o texto de Lacan é inseparável do trabalho de ensino que Jacques-Alain Miller continua realizando, aquele que soube interrogá-lo sempre da melhor maneira.
Tradução: Paola Salinas
Revisão: Frederico Feu
Miquel Bassols Miquel Bassols é psicanalista em Barcelona (Espanha). Ele é o atual Presidente da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). Ele é também AME das seguintes escolas da AMP: ECF, ELP, EOL e NLS.
Guy Briole
A publicação dos Escritos em 1966 veio preencher um vazio numa época em que eram publicados tantos textos brilhantes de personalidades excepcionais como Claude Lévi-Strauss, Roland Barthes, Paul Ricœur, Michel Foucault, Louis Althusser e outros. O ensino de Lacan é antes de tudo oral, e foi preciso, o fato é conhecido, a insistência de François Wahl, que trabalhava na editora Seuil e que tinha sido seu analisante, para convencê-lo a publicar. No entanto, em Lituraterra,[8] texto escrito cinco anos mais tarde, Lacan insiste em dizer que ele não se comprometeu num esfrega-esfrega literário: “Estou ali, como autor, menos implicado do que se imagina, e meus Escritos são um título mais irônico do que se supõe, já que se trata seja de relatórios, função de congressos, seja, digamos, de “cartas abertas” em que faço um apanhado de uma parte de meu ensino”.[9] Lacan desejava preservar seu estilo apesar de achar que isso poderia ser um obstáculo à leitura dos Escritos. Nada disso aconteceu, os leitores novos fizeram do livro um imenso sucesso, e Lacan deixou de ser esse pensador sem obra, escrita.
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Lacan dizia que seus Escritos eram “impróprios para tese, especialmente universitária”, que eles não eram para ser lidos sem um desejo que impulsionasse a penetrar neles. Além do mais, “só há como se deixar envolver ou largá-los de lado”.[10] Mas, penetrar neles não é sem consequências, e sua leitura é sempre mais atual, seja em relação a uma prática da psicanálise que tende a se banalizar − e encontraremos um ensino tanto na Intervenção sobre a transferência[11] quanto na Direção do tratamento e os princípios do seu poder[12] – pela aliança do discurso da ciência e do discurso capitalista que pretendem reordenar o mundo e reduzir o falasser ao silêncio – A ciência e a verdade[13] é um texto sempre rico de um ensino vivo e pertinente – seja no desencadeamento da violência num mundo em que prevalece um real sem lei – A agressividade em psicanálise,[14] Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia[15] são de uma atualidade implacável. É preciso ler e reler todos os textos dos Escritos. Neste século, marcado pelo que identificamos como uma grande desordem no real, a psicanálise deve encontrar a maneira de inscrever aí seu futuro para que, cada um que deseje se voltar para ela, a encontre como interlocutora. Uma das vias é continuar com Lacan, o herege.
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Partirei de uma confidência autobiográfica de Jacques Lacan: “Esses Escritos [...] eu pensava que eles não eram para ser lidos”.[16] Ao dar a eles a dimensão de um desafio, Lacan provocava aquele que pudesse hesitar em abrir esse livro. O encontro com os Escritos pode despertar o desejo, por exemplo, de começar uma análise; passar dos escritos à palavra. De fato, foi o meu caso, e escrevi sobre isso num artigo publicado na revista La Cause freudienne.[17] Retomo aqui parte desse artigo: “Jovem médico, recém-formado em patologia tropical, eu havia viajado para o Tchad, no país das Saras e das Ngambayes, para trabalhar como médico em grandes endemias. Do romantismo das belas aventuras do médico nos trópicos ao encontro com o real dessa terra da África, a distância é marcada por um despertar que é melhor que aconteça precocemente, antes que você seja pego de surpresa por esse real. A África deixa sua marca nos pensamentos e às vezes também nos corpos. A partir do amor que lhe damos, ela dita sua lei e torna hostis aqueles que a amam; ela tem suas exigências. Isso para dizer que ela pode querer a sua pele e que eu poderia ter-lhe cedido a minha. Foi nesse contexto que, pela primeira vez, ouvi falar de Lacan. ‘Você conhece Lacan?’, a pergunta me surpreendeu. Eu estava lendo, na época, tudo ao mesmo tempo, um manual de patologia, Tristes tópicos, de Claude Lévi-Strauss, A morte Sara, de Robert Jaulin. A pessoa que me interpelou assim era uma médica, analisante de Lacan, que viera nos ajudar temporariamente. Ela me deu os seus Escritos. Foi em 1972, e eu havia trazido comigo, nesse Tchad longínquo, O anti-Édipo, de Deleuze e Guattari, que acabava de ser publicado. A reorientação foi radical: separei-me do Anti-Édipo e conservei os Escritos, que nunca mais larguei. Encontrei Lacan três anos mais tarde, assim que cheguei em Paris”. Os Escritos permanecem como minha atualidade, e eles me esclarecem sempre sobre a atualidade deste século.
Tradução: Márcia Bandeira
Revisão: Yolanda Vilela
Guy Briole é psicanalista em Paris. Ele é AME da ECF e membro da ELP-AMP.
Antonio Di Ciaccia
Em 1966 eu estava em Roma e preparava minha tese em teologia, que tratava de questões sobre a Trindade e a leitura que dela fazia Carl Gustav Jung. Um jovem da nobreza romana, um dandy in pectore, a par de meus estudos, me presenteou com todos os seus livros junguianos, dizendo-me: “Antonio, preciso agora apenas de um livro de psicanálise: os Escritos, de Jacques Lacan”. Ignoro se depois desse dia esse jovem mergulhou efetivamente no livro de Lacan, cujo título eu ouvia pela primeira vez naquela ocasião. No que me diz respeito, o nome de Lacan tomou para mim uma ressonância ensurdecedora quando, três anos mais tarde, encontrei-me na Universidade Católica de Louvain. Em Louvain, na Faculdade de Psicologia e no Instituto Superior de Filosofia, onde eu continuava meus estudos, Lacan estava na boca de todos. Todo mundo tinha os Escritos, e alguns professores se referiam constantemente a eles. Ainda conservo, linha por linha, as notas do comentário de Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise que o filósofo Alphonse De Waelhens fizera em seu curso.
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Se, naquela época, o volume dos Escritos provocava sozinho uma reviravolta no pensamento, atualmente, um complemento é necessário: o outro volume, os Outros escritos. Se uma parte desse segundo livro sustenta posições já conhecidas, uma outra parte preponderante é necessária para compreender a trajetória do ensino de Lacan. O “debate das luzes” não se esgota com os Escritos. Estes são construídos de tal forma que o leitor é convidado a avançar, ainda que tão logo ele perceba ter entrado num funil do qual é impossível voltar atrás. Exatamente por isso, Lacan inseriu nesse livro balizas que se leem com um verso dantesco: “Lasciate ogni speranza voi che entrate” [Abandonai toda a esperança, vós que entrais aqui]. Evidentemente, para dar conta disso, é preciso entrar aí. E ler os Outros escritos.
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É preciso entrar – e colocar algo de seu, como diz Lacan. Penso que cada um que se dedicou aos Escritos ficou exausto. Confesso que andei jurando, de modo pouco conveniente, pelo que havia de mais sagrado. Eu me dizia: por que ele não diz o que quer dizer de maneira clara? Foi preciso muito tempo para que eu compreendesse que era exatamente o que ele fazia. Lacan era profundamente honesto: ele sempre se encontra ali onde está. Cada texto escrito descreve ali onde ele está. No escrito seguinte, ele descreve ali onde está. Com uma particularidade, contudo: Lacan não explica a passagem de onde ele estava para ali onde ele está. Passagem que – refiro-me aqui a uma afirmação de Jacques-Alain Miller – não é aparente, mas latente. Mas que é perfeitamente clara e lógica quando se reconhece. Ainda que, sem Jacques-Alain Miller, Lacan pudesse permanecer latente por toda a eternidade. Eu sempre disse a mim mesmo que Lacan devia gostar, não apenas das histórias de Edgard Allan Poe, mas dos romances policiais em geral, porque, sobretudo nos seminários, ele se traveste de detetive à procura do objeto freudiano.
Tradução: Yolanda Vilela
Antonio Di Ciaccia é psicanalista em Roma. É AME da Scuola Lacaniana di Psicoanalisi del Campo Freudiano (SLP), na Itália, e da École de la Cause Freudienne (ECF), na França. Di Ciaccia é responsável pela edição italiana dos Outros escritos, de J. Lacan (Autri scritti), publicados pela Einaudi.
Cristina Drummond
A publicação dos Escritos foi a oportunidade de abrir a porta do ensino de Lacan para múltiplos leitores. Ela ocorre num momento político importante, pois é pouco tempo posterior à sua excomunhão da IPA. Sabemos que muitos dos textos que compõem essa coletânea são frutos de seus seminários, que expunham as principais teses que ele discutia em suas aulas. Seu ensino oral, mesmo não estando inserido na universidade, não deixava de fazer interlocução com pensadores de outros campos de saber. Lacan já proferia seu seminário há alguns anos, e vários intelectuais foram escutá-lo. Ele também já havia publicado alguns textos em revistas e na Enciclopédia dirigida por Henri Ey. Creio que a publicação dos Escritos deu a seu trabalho a dimensão de uma obra, de um pensamento singular e o inseriu de forma mais ampla na conversa com a filosofia, sobretudo com o estruturalismo, com a linguística, com a antropologia e, acima de tudo, com os psicanalistas. Além disso, permitiu que a releitura de Freud por Lacan e a sua formulação fundamental de que o inconsciente decorre do significante se tornasse fonte de leitura e trabalho na busca de fundar a psicanálise sobre bases que ele dizia terem uma lógica para pensá-la e formar analistas. A busca de elucidar a psicanálise e sua especificidade foi o que sempre orientou Lacan em sua elaboração e, em sua luta pela causa analítica. Esse percurso o levou a fundar uma escola de analistas que fossem orientados por seu pensamento. Os Escritos estão na base da escola de Lacan e marcam a orientação da formação dos analistas que o seguiram e que está na origem da Escola Brasileira de Psicanálise. Penso, então, que essa obra encerra o que chamamos de primeiro ensino de Lacan e funda uma prática que não está separada dele. Os Escritos têm o Seminário sobre “A carta roubada”[18] como seu texto êxtimo e que organiza os textos como um conjunto. A tese fundamental desses textos gira em torno da leitura do inconsciente freudiano a partir da introdução de conceitos importados da linguística saussuriana e aplicados à psicanálise: significante, metáfora e metonímia, diferença. Assim, temos ali um trabalho para situar o sujeito de que trata a psicanálise como o sujeito do inconsciente estruturado como uma linguagem, aquele que um significante representa para outro significante e cuja fala é fundamental. É a função da palavra e a importância do simbólico como fundamentais no trabalho de decifração do inconsciente. Essas proposições de Lacan lhe permitem refundar a psicanálise num universo que ele acreditava se afastar e deturpar o pensamento de Freud e fazê-la viva entre os analistas.
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Em O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964), no momento em que os Escritos estavam sendo organizados para publicação, Lacan perguntava se os textos que comporiam esse volume teriam perdido sua atualidade. E ele mesmo responde que não acreditava nisso porque todas as questões que ele levantava naqueles textos continuavam fazendo parte de seu trabalho no seminário e, sobretudo, que elas giravam em torno de sua pergunta: o que é psicanálise e o que a funda como uma prática. No momento desse seminário, se a pergunta insistia, agora Lacan ensinava de um outro lugar, de fora da IPA. E do que ele queria falar naquele momento? Dos quatro conceitos fundamentais da psicanálise, fundamentando a teoria e a práxis da psicanálise. Os textos de Lacan são fundamentais não apenas no debate pelas luzes, mas também na orientação de uma prática. Podemos dizer que em nossa contemporaneidade essa batalha pela orientação lacaniana está ganha? De maneira nenhuma. Vemos todos os dias a psicanálise ser questionada, de dentro e de fora dela, como uma práxis que tenha valor em nosso mundo. Os Escritos, os Outros escritos, e os Seminários são fundamentais em nosso trabalho de fazer o discurso analítico existir e ser um instrumento de leitura e intervenção em nosso mundo.
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Os escritos são para ser lidos e relidos. A cada vez que os consulto eu me surpreendo com alguma frase, algum aforismo, dessa escrita sucinta e enigmática de Lacan, que sabe dizer tanto com tão pouco ou ainda nos confundir com seus equívocos. No início, tínhamos apenas alguns escritos traduzidos em português pela editora Perspectiva e, é claro, com problemas de tradução. Uma edição muito voltada para os linguistas, as pessoas da área de letras, que se interessaram logo pelas teses de Lacan. Nós, estudantes que nos interessávamos por seu ensino, nos dirigimos ao departamento de filosofia onde contávamos com professores que estudaram na França, como Célio Garcia, José de Anchieta, que nos aproximou de Merleau-Ponty e nos ajudou a ler as questões levantadas por Lacan em relação ao olho e ao olhar, Hugo César, que estudou com de Waelhens e nos permitiu uma leitura do artigo De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose.[19] Depois pudemos consultar a edição em espanhol, da Siglo XXI, e só tivemos uma tradução de todo o livro em português em 1998, pela Zahar. Depois dos professores do departamento de filosofia, contamos com colegas da École de la Cause Freudienne, que vieram dar seminários no Brasil. Muitos deles foram dedicados à leitura de textos dos Escritos – A direção do tratamento e os princípios de seu poder,[20] Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano,[21] Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise[22] – Attié, Cottet, Jacques Adam. São muitas as referências que Lacan usa em seus textos, e tivemos que correr atrás delas, buscar meios de elucidar suas palavras. Esse trabalho foi ficando muito mais possível a partir da fundação da Escola Brasileira de Psicanálise, quando contamos com o trabalho de Miller para nos auxiliar tanto com o estabelecimento de vários seminários (ainda era nas versões estenografadas que líamos) como com seus seminários de orientação lacaniana, que lançaram luz e traçaram vias que nos permitiram adentrar no ensino de Lacan. Sempre me perguntei sobre a diferença entre os seminários e os Escritos. E creio que, se os Escritos são tão difíceis de ler, é porque Lacan apostava justamente no trabalho dos analistas para fazer aparecer a sua enunciação. O trabalho com o texto muitas vezes o engessa. Ele pensava que seus Escritos seriam impróprios para uma tese universitária e que esse trabalho perderia sua enunciação. É assim que Lacan termina seu comentário à primeira tese publicada sobre seus Escritos: “Eles estarão interessados em transmitir literalmente o que eu disse: como o âmbar que aprisiona a mosca, para não saber nada de seu voo”.[23] É a um esforço de leitura e comentário, de colocar de si que Lacan convida todos os analistas de sua escola. Só assim o discurso analítico tem existência, apenas na medida em que ele faz laço. Para mim, poder contar com a escola de Lacan é uma sorte e uma possibilidade de tornar sempre viva minha relação com a causa analítica.
Cristina Drummond é psicanalista e AME da EBP-AMP.
Célio Garcia
Para ir a Saint-Anne assistir aos seminários de Lacan, saíamos do Quartier Latin, o que já era um acontecimento. Havia cerca de 40 pessoas na sala do Hospital Sainte-Anne. Depois, nos anos 1970, havia 400 pessoas na sala da Faculdade de Direito, onde Lacan passou a ministrar seus seminários. Quando o seminário ainda se passava em Sainte-Anne, as primeiras filas eram ocupadas pelos mais velhos, que faziam parte do grupo do Dr. Lacan, eles também médicos do hospital.
O boletim do GEPUP (DA do curso de psicologia) publicava os seminários. O boletim era o órgão do Grupo de Estudos de Psicologia da Universidade de Paris. A cada gestão, cabia a uma equipe gerir e fazer funcionar o GEPUP. Mas o boletim era algo que se mantinha graças ao seu Diretor Dimitri Voutsinas, um grego que havia feito tese sobre Malebranche. Havia muita proximidade com outros cursos, especialmente Filosofia. Entre meus professores, era prestígio haver feito medicina – não para exercê-la, mas como formação científica − e depois filosofia.
Nossos professores eram Daniel Lagache (um dos poucos que chegava de carro na Sorbonne e estacionava no pátio), Jean Piaget (que vinha de bicicleta), Cousinet (o mais velho, que ia de polainas dar aulas), Favez-Boutonier, Laget (fisiologista, que havia estado no Brasil), Pichot (médico em Sainte-Anne, no Serviço do Prof. Delay, que também acolhia o Dr. Lacan).
Seguíamos alguns seminários fora do curso, como o de Minkowski. Eu era um dos únicos estrangeiros. Vivíamos em bando, mesmo nas férias. As meninas moravam em studios, assim como nós. Comíamos no restaurante universitário de Mabillon. Líamos jornais como L’Observateur, L’Humanité. Militávamos no Mouvement de la Paix (para estar “o mais próximo do Partido Comunista”, como havia proposto Sartre). Éramos cristãos de formação e marxistas, como posição intelectual e política. De vez em quando, um sobressalto. Um dia, alguns colegas foram convidados para ir para a Argélia. Um deles foi e voltou “pirado”.
Apanhávamos a cópia das anotações do seminário de Lacan com Pontalis, para publicação no boletim do GEPUP. Não havia nenhuma revisão do Dr. Lacan. Ao que parece, ele se interessava muito pouco pelas publicações, que ele chamava “poubellications”, jogo de palavras com “poubelle”, que quer dizer lata de lixo. Conta-se que, quando se quis reunir os textos que deveriam compor o volume dos Écrits, não foi possível encontrar em seus arquivos um deles, precisamente o artigo sobre O estádio do espelho,[24] como havia sido programado. Não houve jeito. Estava perdido ou não foi encontrado. Outro artigo só pôde ser encontrado no último minuto. Imagino a quantidade de coisas que rolava ali: papéis, anotações, projetos, livros, margens de livros enriquecidas pelas anotações em volta, devidamente enquadradas ou desmontadas, para depois ser remontadas com outras pontuações.
Digo isso para recordar que, certa vez estava na Rue Claude Bernard à espera de um seminário, quando o Dr. Lacan procurava algo em meio a papéis e revistas, tudo empilhado num canto da sala. Aproximei-me para perguntar a ele se precisava de ajuda e o que ele procurava. Já corriam céleres os anos 1970. Ele, então, respondeu: “Le bottin”. Como o catálogo telefônico estava nas imediações, apenas encoberto por revistas, não foi difícil encontrá-lo.
Já naquela época me perguntava como seria o consultório do Dr. Lacan. Ainda era estudante quando me dei conta de que muitos faziam esta mesma pergunta: Como podia o Dr. Lacan nos surpreender com tanta erudição e leituras tão diversificadas por ocasião de seus seminários, redobrando esforços para acompanhar o que se publicava em áreas afins ou para descobrir novas interfaces? Como diz Lacan em Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise, “[...] que antes renuncie a isso, portanto, quem não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época”.[25] Vale a pena sair um pouco de nossas fronteiras regionais ou regionalizadas.
Tenho especial apreço pela conferência sobre cibernética, proferida em 1955 e incluída no volume 2 do seu Seminário O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise.[26] As gramáticas gerativas de Chomsky foram formuladas um pouco antes, mas somente vieram a público em 1957. Também sei, por havê-lo constatado, que Lacan nem sempre encontrava eco entre o público daquela época.
Além dos seminários publicados no Boletim do GEPUP tínhamos, quando havia dinheiro para comprar, a revista La Psychanalyse, órgão da primeira instituição lacaniana, a Sociedade Francesa de Psicanálise, da qual fiz parte após ter sido entrevistado por Mme. Favez-Boutonier e Daniel Lagache, encarregados da seleção na época. Nos números da revista, podíamos encontrar o programa da Sociedade e os artigos de seus membros.
A formação analítica era marcada pela ideia de que se tratava de uma aventura, ou como disse certa vez J.-A. Miller, a formação não tem solução. Era isso o que queria dizer Lacan quando afirmava não haver formação do analista, mas apenas formação do inconsciente. De qualquer maneira, a formação que buscávamos era aquela que encontrávamos nos seminários, nos cursos sugeridos pelo Dr. Lacan (matemática, com Guilbaud; antifilosofia, de acordo com a leitura praticada por Lacan; lógica; linguística saussuriana) e nas análises que fazíamos, sem nenhuma preferência pela análise dita “didática”.
Célio Garcia é psicanalista membro da EBP-AMP. É professor aposentado da FAFICH-UFMG (1993) e membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família. É autor, entre outros livros, de Psicologia jurídica. Operadores do simbólico (Del Rey, 2004). O fragmento que reproduzimos acima foi extraído de uma intervenção de Célio Garcia realizada na Universidade FUMEC, em 2001, como parte de um evento realizado pela EBP, denominado “Encontros com Lacan”, em comemoração aos 100 anos de seu nascimento. Agradecemos a Célio Garcia e Andrea Gontijo pela autorização de publicação deste texto.
Angelina Harari
É importante lembrar o contexto histórico da psicanálise francesa na época do lançamento dessa coletânea. Jacques Lacan funda, em 1964, uma Escola de Psicanálise, na qual colocou o nome de Freud: a Escola Freudiana de Paris, embora não fizesse parte da Sociedade de Psicanálise, a Internacional criada por Freud. Na política institucional psicanalítica essa coletânea marcou época na medida em que veio balizar um movimento constituído a partir de ex-psicanalistas da International Psychoanalytical Association (IPA), tendo Lacan na liderança. Pouco a pouco o movimento liderado por psicanalistas franceses foi ganhando força e se tornando uma referência para os alunos e os analisantes de Jacques Lacan, com essa coletânea em seu cerne. Não devemos esquecer a importante contribuição de Jacques-Alain Miller tanto no lançamento dos Écrits em 1966, quanto no estabelecimento dos textos dos seminários de Jacques Lacan, seus cursos proferidos de 1953 a 1980, dos quais o primeiro é o Livro XI: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, lançado em 1973. Esse livro estabelece o curso dado em 1964, no auge do escândalo conhecido como a /excomunhão de Lacan da IPA, que ele preferiu designar com o termo “excomunicação”. E ele inicia o curso comentando esse fato. O livro XI antecedeu de alguns meses a fundação da Escola Freudiana de Psicanálise, cuja declaração inicial contém a célebre frase “Fundo – tão sozinho quanto sempre estive em minha relação com a causa psicanalitica [...]”.[27] Não me detenho no contexto histórico e político da França, mas pretendo somente assinalar que a Escola de Psicanálise antecedeu em dois anos o movimento iniciado pelos estudantes franceses, conhecido como “Maio de 68”.
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Meu contato inicial com os Escritos foi através da edição francesa, pois o lançamento da edição brasileira somente ocorreu em 1998. Li frequentemente alguns artigos me detendo em A direção do tratamento e os princípios de seu poder[28] e De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose.[29] Esses dois foram lidos à exaustão, pois constituíram, cada um à sua vez, tema em uma atividade da Clínica Freudiana, grupo ligado, nos anos 1980, ao Campo Freudiano em Salvador/Bahia. O primeiro, A direção do tratamento.., resultou em dois trabalhos, um coletivo e outro individual, apresentados no I Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, que aconteceu em Curitiba, em 1997. Mas o “colocar algo de si” foi quando assumi encarar o projeto da edição brasileira desse livro, atrasadíssimos estávamos em relação ao lançamento do original, em 1966. Em eventos sociais concomitantes ao V Encontro Brasileiro do Campo Freudiano Rio/1995, evento escolhido para recepcionar a fundação pela AMP da Escola Brasileira de Psicanálise, foi selado o acordo de Judith e Jacques-Alain Miller com o editor Jorge Zahar, acordo que definiu a função que exerço até hoje como assistente brasileira dos diretores da Coleção Campo Freudiano no Brasil, na editora Jorge Zahar, Judith e Jacques-Alain Miller. A meta principal desse acordo começaria com o lançamento dos Escritos. Além de responsável brasileira pela coleção, assegurei a revisão técnica junto a outro colega da EBP.
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Constatamos a atualidade dos Escritos no próprio uso que os psicanalistas fazem na contemporaneidade. Não há produção vista com o viés psicanalítico que não atravesse a coletânea, seja pela citação direta, seja pela citação da citação. Igualmente importante para manter a atualidade dos Escritos foi a publicação dos Outros Escritos, de Jacques Lacan, lançada por Jacques-Alain Miller, sua forma de homenagear Lacan na ocasião dos 30 anos de sua morte. Essa nova coletânea acrescenta artigos escritos, que ampliam o escopo lacaniano ensinando “[...] que o gozo também decorre do significante, mas em sua junção com o vivo”.[30] Especificamente no “debate das luzes”, a meu ver, seu último escrito A ciência e a verdade[31] postula a relação impossível marcada pela abolição que a ciência faz do sujeito. Coloca no seu devido lugar o individual, que a inauguração da era das massas nos leva a perder de vista o indivíduo em sua singularidade.
Angelina Harari é psicanalista, AME da EBP-AMP. O papel desempenhado por Angelina quanto à publicação dos Escritos, de Jacques Lacan no Brasil foi fundamental, pois ela responde pelo projeto da edição brasileira desse volume como corresponsável pela revisão técnica. Angelina Harari é também a assistente brasileira dos diretores da Coleção Campo Freudiano no Brasil, na editora Jorge Zahar.
Bernardino Horne
Em 1966 eu não lia Lacan. A rigor, Lacan não existia para mim nem para os colegas da IPA, na Asociación Psicoanalítica Argentina. O vice-presidente para a América Latina disse-me ao voltar da reunião da excomunhão de Lacan: “É um psicótico que atende seus pacientes em robe de chambre (roupão) e diz que dez minutos com ele são melhores que cinquenta com qualquer um de nós”. Comecei a ler os Escritos por A direção do tratamento e os princípios de seu poder,[32] texto que coloca na cúspide o desejo do analista.
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A ideia de Lacan de que, para ler seus Escritos, “é preciso colocar algo de si” antecipa o nome de falasser que ele dará ao inconsciente. Nas primeiras páginas dos Escritos, ele diz que “[...] o analista cura menos pelo que diz e faz do que por aquilo que é”.[33] Essa era minha ideia de sempre e senti o golpe “nas tripas”, quando Lacan acrescenta: “Mas quem teria a crueldade de interrogar aquele que verga sob o fardo da bagagem, quando seu porte leva claramente a supor que ela está cheia de tijolos?”[34] Tijolos? O impacto me levou a retomar a análise. Foi um golpe duro. Uma retificação subjetiva. Uma implicação no gozo de permanecer em posição de poder por herança dos deuses. Era uma convicção fantasmática dos pós-freudianos, uma mentira fantasmática, que encobria a impotência. Lacan a golpeia com crueldade, já que o desprendimento do narcisismo é sempre com dor. Minha pergunta na primeira entrevista foi: Por que tijolos?
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O Seminário, livro 1, por ser centrado na teoria da clínica, acompanhou minha leitura de A direção do tratamento e me revelou a existência da transferência simbólica no magnífico caso clínico, que é, para Lacan, o esquecimento do nome de Signorelli por Freud e que a morte é o último Real. Na concepção de final de análise desse seminário, que culmina com o dístico de Angelus Silesius, Lacan aponta algo que está na frase sobre a Direção do tratamento. A política da cura é conseguir que se faça presente o que é do próprio ser, e isso acontece como uma reviravolta, como um passo de minueto. Num instante. Algo do Um. Lacan fará todo um percurso para chegar ao gozo obscuro do sinthoma e, no passe, à identificação com ele. Hoje, na Diretoria da Seção Bahia, apoio com entusiasmo a inauguração dos ateliês de leitura dos Escritos, de Lacan, os de Freud e de Miller através da Biblioteca da Seção.
Bernardino Horne é psicanalista. É AME da EBP-AMP.
Gilson Iannini
O volume dos Escritos tinha tudo para ser, com o perdão do trocadilho, um worst seller... Um livro volumoso, de 900 páginas, muitas delas no limite da inteligibilidade. Um livro, de certa forma, para iniciados, e não para iniciantes. O contrário de um Manual de psicanálise ou de Conferências introdutórias. No entanto, converteu-se num sucesso editorial. Não é fácil entender esse fenômeno. De toda forma, o encontro de Jacques Lacan com seu editor François Wahl é decisivo. Wahl havia terminado sua análise com o próprio Lacan em 1961, mas continuou frequentando seus seminários. Não custa lembrar que, aos 65 anos de idade, Lacan era um psicanalista célebre e, naquela altura, seus seminários eram um sucesso. Mas seu ensino permanecia basicamente oral. Os artigos publicados estavam espalhados em revistas e anais de congresso, nem sempre de fácil acesso. Além disso, não podemos nos esquecer do contexto: 1966 foi um ano excepcional. Michel Foucault publica As palavras e as coisas; Lévi-Strauss publicava o segundo volume de sua tetralogia Mitológicas, intitulado Do mel às cinzas, dois anos depois de O cru e o cozido; Louis Althusser publica Pour Marx e Lire le Capital; Benveniste, o primeiro volume de Problemas de linguística geral; Roland Barthes, Crítica e verdade; e Todorov, Teoria da literatura. Não falta muito para Gilles Deleuze publicar Diferença e repetição. Falta muito pouco para maio de 1968. Um momento como aquele não acontece a toda hora. Em seu recém-publicado Aventura da filosofia francesa, Badiou compara a inventividade, a amplitude e a novidade da filosofia francesa contemporânea a outros dois momentos maiores da história do pensamento: o momento da filosofia grega clássica, com Platão e Aristóteles, e o momento do idealismo alemão, de Kant a Hegel. Certamente, o ano de 1966 foi talvez o ano decisivo daquela aventura. Os Escritos de Lacan são uma das principais lanternas a iluminar as trilhas daquela mesma aventura. A publicação dos Escritos é uma festa para a psicanálise e, ao mesmo tempo, é o réquiem de uma psicanálise moribunda, fundada na identificação com o ego forte do analista e nas práticas estandardizadas. Mas não apenas isso. A publicação dos Escritos é um acontecimento não apenas para a psicanálise mas também para o pensamento moderno. Um escrito é algo que deixa uma marca, que faz uma trilha, que sulca, que imprime. O impacto dos Escritos é justamente este: deixar uma marca, algumas pistas, algumas pegadas, em cujos trilhamentos do inconsciente e do real o psicanalista, mas não apenas ele, pode se aventurar.
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Pessoalmente, sempre desconfiei da retórica da crise. Sempre pensei que “crise” é um nome contingente que damos ao mal-estar, que é estrutural. Hoje, contudo, desconfio de minha desconfiança. “Crise” é quando o mal-estar se aprofunda, ou melhor, quando a casquinha de tinta que é a civilização começa a se desprender, como ocorre com a pintura de uma parede infiltrada, que conseguimos retirar com as unhas mal cortadas. Vivemos um momento assim: o ódio e o medo se transformaram em afetos centrais da experiência social e subjetiva contemporânea, não apenas no Brasil, mas também em várias partes do globo. Em grande parte, gestados midiaticamente e geridos politicamente, o ódio e o medo passam a circular no discurso, juntamente com uma certa precarização da inteligência e de uma alergia ao pensamento crítico, como se vê no pseudodebate dos arautos da neutralidade do que não pode ser neutro, promovido por aqueles que almejam uma subjetividade “sem partido”, uma rua sem fissuras. Colocar algo de si é tomar partido, não de um ou outro partido político, mas de uma posição subjetiva diante de impasses. Quando Lacan invoca as Luzes, quando se coloca a si mesmo como herdeiro do debate das Luzes, não deixa de acrescentar: “quando invoco então as Luzes, é por demonstrar onde ela faz furo”. Sim, os Escritos são obscuros. Mas a luz nasce de um ponto opaco. Nesse sentido, os Escritos são um farol, e não um espelho. Lacan constrói obstáculos ao reconhecimento imaginário do leitor. Naquele limiar, naquela vereda tênue entre a luz e o que ela esconde, o que os Escritos requerem da gente é coragem. Aquela coragem a que Guimarães Rosa refere. Coragem “de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza”. De se movimentar na penumbra do que não é tão claro, na claridade do que a luz esconde, tanto por sua fraqueza quanto por seu brilho demasiado intenso.
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Essa provocação de Lacan, no texto de Abertura, no preâmbulo, é um dos prefácios redigidos para os Escritos, um pouco à maneira de Guimarães Rosa, que escreve e distribui quatro prefácios em seu Tutameia. Os Escritos, de Lacan, também contêm pequenos prefácios distribuídos ao longo das seções do livro. O primeiro deles funciona como uma espécie de Discurso do método, mas a reflexão sobre o estilo substitui a reflexão sobre o método, típica de manuais e compilações acadêmicas. Entender essa provocação, esse convite, supõe entender como Lacan percebe o lugar do estilo. O estilo não é o homem. Essa inversão do aforismo de Buffon é capital. A fim de poder delimitar alguma coisa sobre o estilo, é preciso tentar descobrir a função do objeto, causa de desejo, na constituição do sujeito. Mais precisamente, é preciso pesquisar os efeitos da queda do objeto: “isso cai”. Antes de convidar o leitor a colocar algo de si, Lacan resume sua empreitada. Esquematicamente: (i) o estilo não é o homem; (ii) o que define o estilo é a queda do objeto; (iii) a queda do objeto é causa do desejo; (iv) o sujeito se eclipsa em seu desejo; (v) o objeto funciona como suporte do sujeito entre verdade e saber. Neste sentido, se o estilo é o objeto, o estilo funciona como suporte do sujeito entre verdade e saber. Verdade e saber podem se cruzar no estilo, assim como o saber pode, no discurso do analista, ocupar o lugar da verdade. O estilo pode ser visto, então, como movimento próprio ao conceito, ou antes, movimento do significante em direção ao real de lalangue. O estilo mostra aquilo que não se deixa dizer. A reabilitação do estilo no discurso teórico deriva de uma exigência não apenas linguageira mas também ética. Não se trata aí do belo discurso, ornamentado, dedicado a bem empregar as figuras de estilo ou as figuras da retórica. Trata-se, ao contrário, de um discurso que prefere o rigor à comunicabilidade, de um dizer que mostra o que não pode ser demonstrado; de um escrito que não esconde a defasagem entre a univocidade do conceito e a equivocidade da linguagem. Um escrito que bloqueia a projeção imaginária do leitor, que impede o reconhecimento narcísico. O estilo imposto pelo endereçamento dos Escritos pretende levar o leitor “a colocar algo de si”. Como entender isso? Quando Aristóteles reconheceu o entimema como a forma lógica mais propícia a fins retóricos, é porque a lacuna entimemática, ensina Arthur Danto, “apenas exemplifica as elipses que a retórica explora”.[35] Um entimema é um raciocínio que oculta uma de suas premissas, que esconde um passo essencial. Mais ou menos como o mágico ilusionista faz: ele esconde uma das conexões lógicas, o que embaralha nosso entendimento. Usamos o entimema intuitivamente, muitas vezes por semana. Algumas mulheres são particularmente felizes nessa arte entimemática. Nesse sentido, a retórica é uma espécie de psicologia das paixões. O uso do entimema se baseia na premissa de que o leitor completará a lacuna por si próprio. O resultado, quase inevitável, é que diante de um raciocínio lacunar somos obrigados a completá-lo, a fazer a ponte e, assim, nos convencemos por nós mesmos. O encadeamento de entimemas numa argumentação lacunar mas rigorosa força a busca dos elos perdidos do silogismo, convoca o sujeito a preencher a lacuna, incita a ação. Inclui, pois, a dimensão do ato no discurso. O estilo dos Escritos de Lacan é assim. Não há como ler passivamente, sem ser fisgado (ou catapultado). Contudo, nem sempre a comunicação é bem-sucedida; aliás, pelo contrário, principalmente quando não estamos naquela zona de indiferença estética entre o prazer e o desprazer de que nos fala Freud ao abordar a zona de conforto da consciência. O efeito de estilo é, pois, a inclusão forçada do leitor. Exatamente quando a comunicação fracassa é que algo da verdade do sujeito pode surgir. Ao completar o texto lacunar, temos uma ocasião privilegiada para que algo do estilo do leitor possa reverberar. Há uma observação preciosa de Schopenhauer em seu Sobre a leitura e os livros.[36] Ele diz: “[...] quando lemos, outra pessoa pensa por nós: apenas repetimos seu processo mental, do mesmo modo que um estudante, ao aprender a escrever, refaz com a pena os traços que seu professor fizera a lápis”.[37] Haveria, segundo ele, uma oposição de exclusão mútua entre a leitura excessiva e a capacidade de pensar por si mesmo. Ele manifesta ainda maior desprezo pelas frases cortadas, pelas “[...] orações subordinadas emaranhadas umas nas outras e recheadas, como gansos com maçãs, com essas frases que uma pessoa não pode enfrentar sem antes consultar o relógio”.[38] Afinal, continua, “[...] vai contra todo bom senso atravessar um pensamento com outro, como quando se faz uma cruz de madeira”.[39] Mas não é exatamente isso que faz o estilo do inconsciente, atravessar um pensamento com outro? Isso porque pensamentos escritos “[...] não passam de um vestígio deixado na areia por um passante: vê-se bem o caminho que ele tomou, mas para saber o que ele viu durante o caminho, é preciso usar os próprios olhos”.[40] “Colocar algo de si” é uma maneira de prevenir essa perda da capacidade de pensar, um convite para que o leitor use os próprios olhos para ver o objeto, caminhe com seus pés, sem se contentar com os vestígios deixados na areia pelo passante. Num debate nos Estados Unidos, dos quais Quine e Jakobson participaram, Lacan afirma: “[...] acreditamos pensar com o nosso cérebro. Eu, quanto a mim, penso com meus pés”.[41] Afinal, “[...] a verdade meramente aprendida fica colada em nós como um membro artificial, um dente postiço, um nariz de cera, ou no máximo como um enxerto, uma plástica de nariz feita com a carne dos outros”.[42] Esse convite me fez passear pela filosofia por 20 anos, ensinando em Ouro Preto, antes de me despedir dela. E esse desvio me fez reencontrar Freud, com Lacan, às vezes contra. Foi esse longo desvio que me permitiu ler em nome próprio.
Gilson Iannini é psicanalista e editor. Leciona na Universidade Federal de Outro Preto. É autor de Estilo e verdade em Jacques Lacan (Belo Horizonte: Autêntica, 2012). Gilson é editor das Obras Incompletas de S. Freud (Ed. Autêntica).
Ram Mandil
Como avaliar o impacto dos Escritos, de Lacan, no momento de seu lançamento sem se restringir a um olhar histórico que corre o risco de naturalizar a sua publicação em meio ao contexto da época? Como aferir esse impacto sem reduzi-lo à expressão de um momento da cultura ocidental e sem perder de vista os efeitos que seguem produzindo sobre o discurso e a prática analíticas? Certo, os Escritos foram publicados no contexto da Guerra Fria, no momento em que se desencadeia a Revolução Cultural na China, no ano mesmo em que os Estados Unidos se envolvem de maneira mais direta na Guerra do Vietnam; quando as salas de cinema exibiam Blow Up, de Antonioni, ou mais um suspense de Hitchcock (Cortina rasgada), além de Fahrenheit 451, de Truffaut e Masculino feminino, de Godard, entre outros; ou ainda quando as rádios entoavam Strangers in the Night, de Sinatra, e se fazia ouvir a guitarra de Bob Dylan substituindo seu violão folk, tendo como pano de fundo a trilha sonora emblemática de Sounds of Silence, de Simon & Garfunkell, além dos últimos lançamentos dos Beatles e dos Rolling Stones. Se formos concentrar nossa atenção sobre os lançamentos literários desse ano, os Escritos se viram ladeados nas livrarias por As palavras e as coisas, de Michel Foucault, pelos Problemas de linguística geral, de Benveniste, além das obras de Althusser, A favor de Marx e Ler o capital, e de Roland Barthes, a Crítica e verdade. Vale acrescentar que, nesse ano, o contexto intelectual francês se fazia marcar pelas tensões que envolviam a filosofia de Sartre (dirá Lacan a essa época: “Toda filosofia de Sartre quer que o sujeito e a consciência estejam ligados de modo indissolúvel. Ora, com Freud, esta ligação foi rompida”[43]). Essas evocações podem traçar um quadro cultural do contexto do lançamento dos Escritos, mas podemos dizer que o seu verdadeiro impacto transcende o enquadre cronológico. Uma amostra de sua atualidade pode ser colhida de uma afirmação do próprio Lacan por ocasião do lançamento do seu livro:
É preciso [...] dizer que a psicanálise, em sua essência, só se realiza na transmissão do psicanalista ao psicanalisado no contexto de uma psicanálise. [...] Ou bem a psicanálise se transmitirá, na delicada fidelidade a Freud, ou bem ela irá se reduzir à ação de psicoterapeutas que, no conjunto da terapêutica psiquiátrica, não terão mais importância do que nadadores master um pouco superiores.[44]
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Na contracapa dos Escritos há a declaração de filiação assumida pelo livro no grande “debate das luzes”, aquele com o qual, a seu modo, Freud se envolveu a partir de sua descoberta. Ainda na contracapa há uma enumeração de alguns dos obstáculos à psicanálise, seja sob a forma de “preconceitos”, ou ainda de “falsas evidências”, seja sob a forma do que “passa por objeto florescendo a partir do obscurantismo”, um prenúncio das ofertas da sociedade de consumo legitimadas pelo discurso da ciência? Podemos acrescentar outros aspectos do “crescente obscurantismo” e que hoje se tornam mais evidentes, como aqueles que procuram promover uma universalização das formas de gozo na esteira de um delírio da normalidade, ou dos discursos que contribuem para propagar o “império dos semblantes” com os consequentes estragos promovidos pelo retorno do real em suas mais inusitadas formas. Por outro lado, podemos dizer que o obscurantismo contemporâneo muitas vezes emerge das exigências de uma transparência absoluta nas ações humanas, da criação de um mundo em que tudo seja explicitado e todos os vazios preenchidos. Curiosa forma de obscurantismo, que reivindica para si as luzes a partir de um desconhecimento de que a dimensão do real se manifesta justamente por um “gozo opaco”, que resiste ao sentido.
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Sabemos que, para ler Lacan, não há um método. Talvez seja mais adequado dizer que cada leitor − ainda que à sua revelia − procura abordar a obra a partir do seu sintoma, conectando-se aqui e ali com algum dos seus textos, com um parágrafo ou com uma frase que faz ressoar uma nota especial em meio à densidade dos escritos. Penso que esse livro exige uma atitude de leitura que interroga nossos hábitos de leitores. Não uma leitura de suspense, mas antes de corte e suspensão; quando esperamos que uma frase irá se concluir de modo harmônico, eis que prevalece o tom dissonante, enigmático, suspendendo o efeito retroativo do sentido da frase. Por mais que os Escritos estejam endereçados aos psicanalistas, sempre me pareceu que o que ali ressoa é a enunciação analisante diante dos embaraços com o real. Diante do efeito inicial de incompreensão, algo se transmite, ainda que não se saiba dizer exatamente o quê. Hoje, me parece que o que se transmite é algo da ordem do desejo de Lacan como interpretação do desejo de Freud, diante do qual o leitor se vê interrogado em seu próprio desejo. Outro aspecto que sempre me chamou a atenção no livro: creio que a leitura que dele podemos fazer depende do ponto em que cada um está em seu percurso de analisante, em especial na sua relação com a fantasia, a partir da qual nos apoiamos para estabelecer uma relação empática com a obra. E é justamente por provocar uma subversão do pathos que os Escritos nos mobilizam a encontrar um outro regime de leitura. Por outro lado, também se trata de um livro que nos convoca a partir de nossa formação como psicanalistas, sem nunca deixar de assinalar que esse lugar deriva dos destinos de nosso desejo a partir da experiência de análise. Por fim, posso afirmar que para mim teria sido impossível ler os Escritos sem a orientação implementada por Jacques-Alain Miller, que nos convoca a retirá-lo da posição de magister dixit para convertê-lo em coisa viva, sem a qual ele fatalmente se tornaria em mais um livro em repouso na biblioteca. A vivacidade desse livro também se verifica, para mim, na sua condição de objeto, que o faz estar a cada momento em algum lugar entre mesas e estantes, ou inevitavelmente dentro de mochilas. Não é sem uma ponta de contentamento que o vejo desgastado pelo seu manuseio contínuo.
Ram Mandil é psicanalista AME e AE (novembro 2012-2015) da lEBP-AMP; é doutor em Letras pela l’UFMG e autor do livro Os efeitos da letra. Lacan leitor de Joyce (Ed. Contra Capa /UFMG, 2003).
Laure Naveau
Ainda que o livro fizesse parte da biblioteca familiar desde a sua publicação, abri os Escritos pela primeira vez durante o primeiro ano de meu curso de psicologia, em 1973-1974. Eu ainda não tinha 20 anos. Alguns jovens professores de Censier daquela época eram “lacanianos”. Um deles havia me pedido que me encarregasse de apresentar o texto O estádio do espelho como formador da função do eu.[45] Eu aceitei.
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Atualmente, dou um seminário fechado sobre o curso de Jacques-Alain Miller Coisas de fineza em psicanálise, na faculdade de Tours, fora, porém, do currículo universitário, pois essa faculdade é orientada pelas TCC. Após um ano de seminário, propus que os participantes lessem, durante o verão de 2016, o grande texto de Lacan intitulado Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise,[46] a fim de que preparassem algumas contribuições.
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“Colocar algo de seu”, sim. Espero introduzir assim uma dialética atenta entre Coisas de fineza em psicanálise e o Discurso de Roma[47] durante um ou dois seminários chamados “das 7 sessões”. Sei que ainda será preciso colocar algo de meu para transmitir a mensagem aos fiéis participantes desse seminário, que só esperam, parece-me, ser esclarecidos quando a Lacan e a Miller, seu passador.
Tradução: Yolanda Vilela
Laure Naveau é psicanalista em Paris. É AME da ECF e membro da NLS.
Pierre Naveau
Em 1966 eu ainda não tinha 20 anos. Comprei os Escritos em 1972. Nesse ano, Lacan fazia seu Seminário, Mais, ainda.[48] Eu ia ouvi-lo, eu estava lá. Foi naquele momento, seis anos após sua publicação, que li os Escritos – com dificuldade, evidentemente, mas não sem uma certa paixão.
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Os Escritos são de uma grande atualidade. Em meus diversos trabalhos, não deixo de me referir a eles. É um Lacan que não esqueço, que não se deve esquecer. Nesse momento, que preparo um curso sobre as psicoses, estou relendo A agressividade em psicanálise[49] e Formulações sobre a causalidade psíquica.[50]
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É verdade. Para ler os Escritos, é preciso colocar algo de si, ou seja, ler sem hesitar a enfrentar as dificuldades do texto, estando atento aos detalhes e se reportando às referências usadas por Lacan em seus diferentes textos. Foi Jacques-Alain Miller que, em seu Seminário de D.E.A e de doutorado, ensinou-me (assim como a outros participantes) a ler Lacan, e, é preciso que isso seja dito, a ler simplesmente, sem mais. Eu tive essa sorte.
Tradução: Yolanda Vilela
Pierre Naveau é psicanalista em Paris. É AME da ECF e membro da NLS. É autor de Ce qui de la rencontre s’écrit (Editions Michèle, 2014).
Jeferson Machado Pinto
Só tive acesso aos Escritos no começo dos anos 1980, depois de um doutorado em ciências (psicologia experimental) pela USP. Nunca tinha ouvido falar em Lacan nem na graduação em psicologia tampouco na pós-graduação. Minha única preocupação nesse período de formação acadêmica era compreender o estatuto da psicologia enquanto ciência. O melhor que os alunos, à época, podiam alcançar da psicanálise era o psicodinamismo de Henri Ey e algumas vagas referências de Mélanie Klein e de alguns psicólogos do ego que, como a própria designação esclarece, reduziam a psicanálise a uma teoria psicológica. Logo após o início de uma análise, comecei a estudar a obra de Freud e a me indagar sobre os efeitos da palavra na transferência, seja dita pelo analisante seja dita pelo analista. Influenciado por colegas próximos que se dedicavam ao estudo da linguagem, dediquei-me inicialmente aos trabalhos sobre seus efeitos pragmáticos, especialmente sobre os atos de fala (Bertalanffy, Bateson, Searle, Austin). Mas achava o enquadramento teórico pobre para esclarecer, nesse outro momento, o estatuto epistemológico da psicanálise. Recorri, então, aos freudo-marxistas ligados à Escola de Frankfurt e sua análise materialista das condições sociais de produção da subjetividade e de fraturas no uso da linguagem. Foi então que tive acesso ao famoso Discurso de Roma[51] e ao texto do Colóquio de Bonneval, Posição do inconsciente.[52] Daí em diante, não foi mais possível me afastar da obra de Lacan e de sua ênfase na lógica da linguagem. Foi somente a partir daí que pude perceber o alcance dos Escritos, especialmente ao reintroduzir a força do pensamento freudiano nos campos epistêmico, ético e cultural. A psicanálise se tornou um discurso forte dentro do movimento que se convencionou qualificar de “Linguistic Turn”. Os Escritos conseguiram restaurar o lugar de Freud ao nível do acontecimento de modo a interrogar a filosofia, a dialogar com a antropologia, a linguística, a literatura, a medicina (em especial, com a psiquiatria), com as artes e, por que não, com as ciências. Os Escritos fomentaram os debates sobre sua cientificidade, sobre seu rigor e sua racionalidade teórica e clínica. Foi minuciosamente demonstrada a afirmação de que o estruturalismo, ao contrário da ideia cientificista de seu programa de trazer a foraclusão do sujeito para as ditas ciências humanas, era uma formulação importante não para aderir cegamente àquela, mas sim para revelar o sujeito com o qual a psicanálise lidava. A partir daí, a releitura lacaniana e sua demonstração da insuficiência do modelo edípico adotado por Freud criaram novas perspectivas clínicas com a problematização das relações entre as representações e as pulsões, entre o simbólico e o corpo, o significante e o gozo. Todo o esforço foi concentrado em elucidar os impasses envolvidos nessas relações, em criar uma linguagem que visasse diminuir a distância entre esses operadores fundamentais da psicanálise. A psicanálise voltou, assim, a fazer parte dos grandes debates da segunda metade do século XX.
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Tenho a impressão hoje de que muitos achados finais do percurso de Lacan já estavam semeados nos Escritos e, claro, em seus primeiros seminários, os quais devem ser ainda escavados de modo a produzir ainda mais preciosidades. Serei sintético e talvez simplista porque a questão implica uma infinidade de respostas. Mas, por exemplo, a demonstração lacaniana de que a enunciação estará sempre como excesso em relação ao enunciado; que em nenhum discurso ela jamais será reduzida ao enunciado. Shoshana Felman, em seu livro Le Scandale du corps parlant,[53] ao discutir as teses de Austin, afirma que o “[...] excesso referencial da enunciação será assim, em relação ao sistema do sentido, um tipo de resto energético”. O referente da linguagem está no próprio uso da linguagem, mas não há simetria entre o sentido e o referente. O excesso da enunciação em relação ao enunciado coloca o referente como o real que faz traço sobre o sentido, ou seja, no gozo do corpo que fala. O desafio psicanalítico é, assim, como Lacan enfatiza em L’étourdit,[54] diminuir a distância entre enunciação e enunciado, deixando que o real do sintoma, e não o desvelamento do sentido, oriente a direção da cura. Os Escritos, apesar de toda a ênfase na lógica da linguagem, sustentam o rigor freudiano de pensar um sujeito a partir do fator libidinal. Não há possibilidade de repensar a forma dos laços sociais contemporâneos sem a libido como fator inerente ao uso da linguagem. O uso do corpo mostra a forma como o real emerge como referente para os atos de linguagem.
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A obra de Lacan, ao se deter minuciosamente na lógica da linguagem, revela o modo de tratar os impasses no uso da linguagem, demonstrando a falta de adequação entre esse uso e o referente externo, o real, que validasse as afirmações como verdadeiras ou falsas. Lacan enfatiza a heteronomia entre referente e atos de linguagem e coloca o gozo como o ponto de decisão do ato e como “causa” do significante. O estilo lacaniano de transmissão dessa impossível apreensão do gozo pela linguagem não comporta, consequentemente, o uso de uma linguagem descritiva adequada entre um conceito e o objeto. Se o corpo é afetado pelo significante, cabe a cada leitor se deixar afetar e criar suas cadeias associativas e sua forma de apreensão particular da ideia a ser transmitida. É um convite a um trabalho de construção permanente e, por isso mesmo, os Escritos, assim como as obras de Freud, não foram ultrapassados.
Jeferson Machado Pinto é psicanalista. É doutor em ciências (psicologia experimental) pela Universidade de São Paulo - USP (1981) e possui estágio de pós-doutorado no grupo Psicanálise e Conexões do Instituto de Estudos Avançados USP. Professor associado do Departamento de Psicologia da UFMG.
Jean-Michel Rey
A publicação dos Escritos, de Jacques Lacan, foi um acontecimento marcante por várias razões. Ela aconteceu inicialmente num contexto particularmente rico de um ponto de vista teórico na França, como se sabe. Trata-se também do agrupamento de textos dispersos, dos quais um bom número é praticamente inencontrável, textos que se tornaram quase lendários. Isso forma uma espécie de conjunto que, de certo modo, obriga a ir olhar de perto: o que valia, naquele momento, tanto para psicanalistas ou filósofos como para um público culto. Descobrimos ali [nos Escritos] a diversidade do discurso e dos objetos tratados pelo autor; percebemos um estilo de pensamento que intriga e que pode, às vezes, irritar alguns leitores. O que me parece mais significativo e mais interessante é o seguinte: vemos nessa obra uma iniciativa rigorosa que não recua diante do texto de Freud no original, que mostra suas dificuldades e riquezas, que reflete sobre a tradução, que se interroga sobre os usos que dele se faz aqui e ali; uma iniciativa erudita que não teme se apoiar na tragédia grega ou em certos autores (Valéry, Claudel e outros) e que aposta na fecundidade de certas pesquisas contemporâneas: Lévi-Strauss, Jakobson, principalmente, ou em certas formas de lógica. Uma bela erudição acompanhada de uma reflexão de grande envergadura, o que é verdadeiramente novo no campo da psicanálise; além disso, a personagem fascina, e em certos meios, começa a surgir o interesse pelos Seminários, de Lacan, que existiam havia já alguns anos. Isso se torna rapidamente um objeto polêmico, acarretando discussões infindáveis no campo da psicanálise e também fora dela. O que alguns começam a extrair e a reter de seus Escritos são fórmulas já prontas, fazem um uso sem precisão das categorias do Real, do Simbólico e do Imaginário, ou do ‘objeto a’. Vemos se constituir rapidamente uma forma de dogmática, que retoma as fórmulas do Mestre sem grande precaução, para não dizer bizarras. Estranha mimética que surge a uma velocidade desconcertante. Isso teve um papel incontestável na transmissão dessa obra, um papel evidentemente negativo, que só fez aumentar com o tempo, o que é sem dúvida uma característica da época; mas, no caso de Lacan, isso toma uma amplitude considerável e produz uma “literatura” que tem frequentemente o defeito da obscuridade e da redundância. Estamos no direito de nos perguntar se, desde os Escritos não haveria (no texto?) alguma coisa como um desejo de fazer escola, e se isso não corre o risco de perturbar a leitura, orientando de modo unívoco. O lacanismo prejudicou certamente a abordagem dessa obra imponente, e muito rapidamente: vale dizer que o processo se amplificou consideravelmente com o tempo. Não podemos ler Lacan hoje como fazíamos em 1966; “nós” significa os estudantes de filosofia – nossa juventude, no final das contas – e os psicanalistas de diferentes tendências que, naqueles anos, foram ler, de boa ou má vontade, esse conjunto disparate dos Escritos para retomar esse ou aquele ponto. Uma das coisas difíceis de apreender é essa disparidade mesma que é, talvez – essa é uma hipótese –, um eco da diversidade que encontramos, efetivamente, na obra do próprio Freud. É sem dúvida devido a uma forma de fidelidade que um bom número de leitores de Lacan se dedicaram a unificar sua iniciativa de modo um pouco arbitrário, arredondando os seus ângulos, dando retoques: isso contribuiu para lhe conferir certa rigidez, em certos casos, a torná-la quase incompreensível. Existe aí uma história difícil a escrever, sem dúvida tipicamente francesa; uma história que, como sabemos, depois de 1966, se globalizou parcialmente – sua enquete mostra isso. Essa globalização coloca, por sua vez, muitas questões, ainda que ela tenha sua fonte ou sua impulsão nesses Escritos, famosos desde então. O próprio título do livro, somente ele, convidaria a uma reflexão nessa direção. Da mesma forma que poderíamos – e deveríamos, de fato – nos interrogar sobre o que pode significar hoje, para um psicanalista, se proclamar ou se apresentar como “lacaniano”. A coisa não é evidente, é o mínimo que se pode dizer, ainda que ela tenha se tornado muito corriqueira: a coisa não pode mais ser evidente desde que se olha de perto os Escritos, de Lacan, desde que se leva em consideração essa dimensão crucial, que é um nome próprio que se torna, estando vivo o seu detentor, o nome de uma disciplina e que suscita discípulos de uma fidelidade inabalável, para um bom número deles, em todo caso. Somos um certo número a ter visto isso se formar e se tornar – contra toda expectativa – uma espécie de instituição rivalizando com a Universidade, dedicando-se, às vezes, a lhe dar lições ou declará-la obsoleta. Não podemos esquecer; aliás, a globalização dos Escritos está aí para nos lembrar disso todos os dias. O acontecimento de 1966 sofreu uma mutação consequente em meio século. Estamos hoje às voltas não apenas com um texto traduzido em muitas línguas, mas também com essa Instituição mundial que evoco, e mais ainda, com um nome próprio que se tornou um adjetivo que serve, em alguns casos, para qualificar – ou mesmo, em outros casos, para desqualificar. Um signo de reconhecimento em escala mundial? Um uma pedra de toque [Schibboleth] para o planeta? Não sabíamos em 1966 que aquilo que líamos sob o nome de Lacan iria alcançar essa fama, iria viajar por este mundo e ocupar um lugar dessa natureza. O que equivale a dizer que esse é um conjunto que, para nós, para mim, é difícil de reler, enigmático. Que fazer dos textos que fazem história tão rapidamente? Como tratá-los? Uma resposta rápida a essas questões diria: é preciso encontrar os meios para fazê-los perder sua homogeneidade, retirar deles sua suposta coerência; olhar para eles como Nietzsche soube olhar certos textos canônicos que o formaram – com distância, com ironia e utilizando os meios fornecidos pelo que ele chama genealogia.
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Uma atualidade menor, em minha opinião, em razão do que eu acabo de dizer sobre a “recepção” de Lacan (minha resposta é evidentemente uma maneira de esquivar a fala. Mas é também uma maneira rápida de indicar que seria preciso um longo desenvolvimento sobre o tema...).
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Parece-me impossível separar a leitura de Lacan da leitura de Freud, por um lado; por outro, é preciso abrir um caminho no conjunto da obra, escolher textos. Alguns têm uma consistência menor em relação a outros, que são mais elaborados, que se prestam menos à dogmática – para dizer as coisas rapidamente. A meu ver, os textos dos primeiros anos são os mais estimulantes. Convém igualmente ler os Seminários desses primeiros anos –frequentemente mais precisos que os artigos, detendo-se nos desvios. Uma leitura cronológica me parece ser necessária, pelo menos em parte. Da mesma forma que, como para toda obra, é preciso saber, desde que começamos a nos aproximar dela, o que buscamos ali, o que investimos, o que esperamos dela, e assim por diante. É evidentemente sempre um sujeito que lê, e que não pode deixar de ler, quer ele saiba, quer não, apostando em seu inconsciente.
Tradução: Yolanda Vilela
Jean-Michel Rey ensinou filosofia e estética na Universidade de Paris 8. Foi diretor de programa no Collège International de Philosophie, de 1992 a 1998. Publicou numerosos artigos na França e em outros países e uma vintena de livros sobre Nietzsche, Freud, Kafka, Valéry, Péguy, Artaud. Republicou Philosophie de l’Histoire de France d’Edgar Quinet com um posfácio (Payot, 2009). Entre suas publicações destacamos: La Part de l’autre (1998), L’Oubli dans les temps troublés (2010), Les Promesses de l’œuvre (2003).
Marcus André Vieira
Sei o que todos sabem: foi um fenômeno editorial, 300 mil cópias vendidas em pouco tempo. Daquele tijolo! Outros tempos, outro mundo, o da cultura parisiense em plena efervescência dos anos sessenta pré-68. Lacan já era conhecido além de seu meio, só que dele se ouvia muito falar, mas pouco ou nada se podia ler. Ele pôde, então, ser estudado, comentado e de certa forma, descoberto. Como entender esse fenômeno? O próprio Lacan se pergunta sobre isso de várias maneiras nos seminários e escritos posteriores. Ficou famosa uma conferência a à qual ele propôs justamente o título O fenômeno lacaniano. Muitos e muitos já escreveram e refletiram sobre isso, quase tudo já virou sabedoria docente e muitos, eu inclusive, contam essa história nas faculdades, para o melhor e para o pior. É perigoso tentar dar conta desse fenômeno que nos suporta ainda hoje. Seria tornar Lacan e seu ensino um clássico, o que, segundo J.-A. Miller, se define como aquilo que se torna objeto das classes, dos estudantes, sempre um pouco mortificado. Vou ressaltar um ponto, o da relação entre o ensino de Lacan veiculado em forma oral, dos seminários, e o dos Escritos. Antes disso é bom lembrar que os Escritos não eram nem resumos ou condensados dos seminários, nem uma reunião de artigos esparsos. Era um verdadeiro livro, fruto dos talentos editoriais de François Wahl e de Miller com base nas decisões de Lacan. A estrutura foi pensada, vários índices foram acrescentados, inclusive um índice de esquemas comentado. No final, era um verdadeiro mergulho no ensino de Lacan por meio de seus textos. A edição brasileira em 1998 reproduziu essa estrutura do modo mais fiel, no que é preciso destacar o desejo decidido de Angelina Harari. Acrescentava-se o número de página do original a cada página dessa edição, o que a tornava a primeira versão com boas traduções e boa revisão dos Escritos, ao mesmo tempo respeitando a estrutura do original e remetendo-nos a ele, o que acho essencial em se tratando de Lacan. Minha leitura foi, desde então e até hoje, a do Lacan no original e em português ao mesmo tempo.
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Por isso disse “mergulho”. É que a escrita de Lacan, assim como a estrutura dos Escritos, é feita para, como ele afirma, “[...] não deixar ao leitor outra saída senão a entrada [...]”.[55] Leituras introdutórias ou panorâmicas são quase impossíveis. A cada frase ou parágrafo, é preciso, por trabalho próprio, extrair o saber que sirva. Se nada servir, nada se extrairá. Minha maneira inicial foi, acho que como a da maioria, a mais pobre, a do estudante-aluno, de buscar percorrer os textos principais que tinham que ser lidos para que eu fosse um bom lacaniano. Lia, sublinhava, anotava à margem e quase sempre ao final podia ouvir um “ufa, terminei”. Claro que isso tem valor, de tomar contato com os termos, por exemplo, mas quando revejo minhas marcações dessas primeiras leituras, sou sempre surpreendido por não ter a menor ideia do que significam. A psicanálise não é panorâmica, por que um texto de psicanálise o seria? Em cada sessão estamos diante de alguém e de seu universo próprio, tudo está ali “ao mesmo tempo agora”, mesmo se o analisante tenta nos apresentar uma fala mais ou menos articulada. Por isso, Lacan não tem medo de rechear seu texto de noções variadas e nem todas articuladas, ou de reunir o mais simples e o mais complexo em uma mesma frase. E isso vale tanto para os Escritos quanto para os seminários, pois a oposição oral/escrito em Lacan é relativa. Este é meu ponto: o oral e o escrito no texto de Lacan se cruzam, se misturam, tal como em uma análise. Um sonho, por exemplo, pode ser pensado como um emaranhado, um novelo de linguagem que cinge um real. Trazida para a sessão, a fala associativa se expande a partir dele e o embebe no oral. A seguir, vem a interpretação que, freudiana, nada mais é do que decantar, a partir dessa operação, um fragmento de escrita, chamado por Freud “conteúdo latente”. Ele não estava lá, é uma reconstituição, uma extração, de algo que de certa forma estava lá, pois é o traçado da estrutura que na fala analisante impera. Em seu último livro, Jo Attié o demonstra magnificamente. Entendo assim o modo de escrita de Lacan, ele tenta reproduzir tanto a fala quanto a estrutura de escrita que dessa fala se pode extrair para que cada um encontre seu texto próprio. Ocorre algo análogo com os seminários, porque eles são baseados em frases previamente construídas, escritas, com afinco, os célebres aforismos lacanianos. De todo modo, o fundamental foi poder, respeitando a unidade do texto, mergulhar, mas também e até por isso, pular passagens, ir e voltar até achar o que servia.
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Não oporia “luzes” e “obscurantismo” como chave de leitura de nossa época. Aliás, qualquer chave de leitura será bem frágil. Nossos dias serão obscuros para nós que neles vivemos, como ressalta Agamben em seu texto sobre o contemporâneo, e, como analistas, talvez tenhamos ainda mais dificuldade que os sociólogos e os antropólogos, que fazem dessas descrições e análises seu ofício. Além disso, não seriam mesmo as luzes do século dezenove-vinte que poderiam nos iluminar. É bem verdade que em muitos sentidos estamos muito mais pobres e estúpidos do que, por exemplo, nos anos sessenta, apesar de afogados em informação e conhecimentos. Eu reteria algo como, parafraseando Lacan: os saberes de que se serve uma análise para caminhar, ainda servem? Com isso quero dizer que é preciso que a cultura seja aberta a alguns dos elementos essenciais a uma análise, por exemplo, a intimidade e o silêncio. Ao mesmo tempo, é preciso que o psicanalista esteja na cidade para fazer valer na cultura o que é essencial a seu ofício, além desses, o respeito aos poderes da palavra, por exemplo. Mas cabe, sim, a pergunta. Por que, então, Lacan situa seus Escritos sob a égide do debate das luzes? Creio que, além de ser uma provocação, já que viviam dizendo que seus textos eram obscuros, havia a necessidade de demonstrar que há clareza na psicanálise, mesmo que ela só lide com o obscuro de nós. Só que é uma clareza própria, específica.A psicanálise não precisa ser como seu objeto, essencialmente subjetivo, confusa e escorregadia, mas ao mesmo tempo, se nela o ideal da clareza e transparência brilhar muito, acabamos ofuscados sem nada enxergar, pois seu objeto só vive à sombra do eu. A psicanálise precisa de demonstração, rigor e consistência, tudo o que abunda nos textos de Lacan, desde que deixemos de lado o mote “quem pensa claro, fala claro”, pois em nosso meio quem achar que só pensa se pensa claro, está perdido. O que me valeu nos Escritos, então, foram as passagens que me encantaram, por um lado, e as que me serviram, por outro. As que me encantaram eram as que ressoavam, ficavam, e ainda ficam no ar, dizendo mais do que o saber que eu posso extrair delas no momento. Já as que me serviram eram aquelas que me orientavam quanto a um saber necessário à minha prática ou me davam indicações clínicas precisas, por exemplo, a da diferença entre tática, técnica e política em A direção do tratamento e os princípios de seu poder.[56] Muitas vezes as que me encantavam e as que me orientavam eram as mesmas. É esse o gênio de Lacan. Não por ser poético, apesar de às vezes até ser, mas sim pela capacidade de fazer com que se ouça em uma frase não apenas o que se pode ouvir, mas algo mais, que vai sendo ouvido aos poucos e de formas diferentes ao longo do tempo, sem nunca perder seu valor agalmático de carregar consigo uma zona de sombra. Não é a esse tipo de saber a que se refere Miller quando batiza um de seus cursos de Iluminações profanas?
Marcus André Vieira é psicanalista da EBP-AMP. É AME e AE (novembro de 2012-2015) da EBP. Entre suas publicações destacamos: A ética da paixão. Uma teoria psicanalítica do afeto (Zahar, 2001), Paixão (Zahar, 2012); Restos. Uma introdução lacaniana ao objeto da psicanálise (Contra Capa, 2008); Mães / com Romildo do Rêgo Barros (Ed. Subversos, 2015).
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[1] LACAN, (1965) 1998, p. 869-892.
[2] LACAN, (1965) 1998, p. 889.
[3] LACAN, (1957-1958) 1998, p. 537-590.
[4] LACAN, (1957-1958) 1998, p. 565.
[5] LACAN, (1970) 2003, p. 508-.543.
[6] LACAN, (1966) 1998, p. 846.
[7] A expressão “aguas de mayo”, em espanhol, significa de modo geral aquilo que vem no momento oportuno. A expressão alude às chuvas que vêm regar a terra e trazer abundância à agricultura. Disponível em: <https://www.inmsol.com/es/proverbios-espanoles/como-agua-de-mayo>. Acesso em: 20 set. 2016.
[8] LACAN, (1971) 2003, p. 15-25.
[9] LACAN, (1971) 2003, p. 16.
[10] LACAN, (1969) 2003, p. 389. Prefácio de Jacques Lacan para o livro de Anika Rifflet-Lemaire, publicado em Bruxelas, em 1970. O texto de Lacan foi intitulado Prefácio a uma tese (1969) e publicado em Outros escritos (2003).
[11] LACAN, (1951) 1998, p. 214-225.
[12] LACAN, (1958) 1998, p. 591-652.
[13] LACAN, (1965) 1998, p. 869-892.
[14] LACAN, (1948) 1998, p. 104-126.
[15] LACAN, (1950) 1998, p. 127-151.
[16] LACAN, (1972-1973) 2008, p. 32.
[17] BRIOLE, 2011, p. 100-105.
[18] LACAN, (1955) 1998, p. 13-66.
[19] LACAN, (1957-1958) 1998, p. 537-590.
[20] LACAN, (1958) 1998, p. 591-652.
[21] LACAN, (1960) 1998, p. 807-842.
[22] LACAN, (1953) 1998, p. 238-324.
[23] Prefácio de Jacques Lacan para o livro de Anika Rifflet-Lemaire, publicado em Bruxelas, em 1970. O texto de Lacan foi intitulado Prefácio a uma tese (1969) e publicado em Outros escritos (2003), p. 399.
[24] LACAN, (1949), 1998.
[25] LACAN, (1953), 1998, p. 322.
[26] LACAN, (1954-1955) 1985.
[27] LACAN, (1971) 2003, p. 235.
[28] LACAN, (1958) 1998, p. 591-652.
[29] LACAN, (1957-1958) 1998, p. 537-590.
[30] MILLER, 2003, quarta capa de Outros escritos.
[31] LACAN, (1965) 1998, p. 869-892.
[32] LACAN, (1958) 1998, p. 591-652.
[33] LACAN, (1958) 1998, p. 593.
[34] LACAN, (1958) 1998, p. 593.
[35] DANTO, 2005, p. 250.
[36] SCHOPENHAUER, 2006.
[37] SCHOPENHAUER, 2006, p. 127.
[38] SCHOPENHAUER, 2006, p. 119.
[39] SCHOPENHAUER, 2006, p. 119.
[40] SCHOPENHAUER, 2006, p. 129.
[41] LACAN, 1976, p. 60.
[42] SCHOPENHAUER, 2006, p. 43.
[43] Entrevista de J. Lacan a Gilles Lapouge. Le Figaro Littéraire, Paris, n. 1080, 29 dez. 1966, p. 4.
[44] Entrevista de J. Lacan a Gilles Lapouge. Le Figaro Littéraire, Paris, n. 1080, 29 dez. 1966, p. 4.
[45] LACAN, (1949) 1998, p. 96-103.
[46] LACAN, (1953) 1998, p. 238-324.
[47] LACAN, (1953) 2003, p. 139-172.
[48] LACAN, (1972-1973) 1985.
[49] LACAN, (1948) 1998, p. 104-126.
[50] LACAN, (1946) 1998, p. 152-194.
[51]LACAN, (1953), 2003, p. 139-172.
[52] LACAN, (1964) 1998, p. 843-864.
[53] Paris: Éditions du Seuil, 1980.
[54] LACAN, (1972) 2003, p. 448-497.
[55] LACAN, (1957) 1998, p. 496.
[56] LACAN, (1958) 1998, p. 591-652.