- uma conversa com Éder Oliveira
Jorge Mourão
Qual é o seu timbó? Éder Oliveira responde com um sorriso. Nascido em Timboteua, cidade do interior do Pará, o artista nos apresenta o timbó, “uma planta que tem uma toxina na raiz e que serve para pegar peixes”. Timboteua1, palavra de origem tupi-guarani, é formada pela junção “timbó” com “teua” (abundância). Essa planta é usada pelos moradores daquela região para “tinguijar”, ou seja, para atordoar os peixes que, em seguida, são capturados e usados como alimentos.
A obra de Éder de Oliveira tem potência de produzir esse atordoamento. Utilizando-se do belo, sua pintura captura o olhar para, em seguida, convocar discussões universais: o poder, a violência, a juventude, a ética, o discurso do mestre, a política, a justiça.
Oliveira é licenciado em Artes Plásticas pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e recentemente recebeu o Prêmio Pipa 2018 na categoria Voto Popular. Em 2016, foi premiado em Lingen, na Alemanha, e em 2014, participou da 31a Bienal de Artes de São Paulo. Éder Oliveira tem trabalhos em acervos de diversas instituições importantes.
Sem título, 2016. Óleo sobre tela, 100 x 150 cm.
Trabalho apresentado na 31a Bienal de São Paulo.
Um trabalho conhecido de Oliveira é a coleta de fotos, publicadas em jornais policiais, de homens presos, ou supostos autores de crimes, em Belém do Pará. Esses homens, condenados de antemão, expostos ao julgamento popular, são transformados em retratos pelo artista.
Sem título [série pixel], 2016. Óleo sobre tela, 110 x 71 cm.
A conversa com o artista para a Revista Derivas Analíticas aconteceu nos momentos finais da pintura2 para o Projeto Parede, durante o Verão Arte Contemporânea 2018 no SESC Palladium3 em Belo Horizonte. Diferentemente dessas outras pinturas de “páginas policiais”, Éder Oliveira foi ao centro da cidade para localizar um “rosto comum” e convidou Leandro, um “anônimo belo-horizontino”, para “emprestar” sua imagem e participar da produção como assistente de pintura do próprio retrato. Como previsto pelo Projeto Parede, depois de algum tempo o trabalho de Oliveira será coberto por um outro do projeto.
Pintura no Projeto Parede, Verão Arte Contemporânea 2018.
- Por que ser um artista?
- Hoje eu tenho mais explicações, mas durante um bom tempo eu fiquei meio à deriva em relação a essa pergunta. Aos 17 anos, eu saí de um lugar chamado Timboteua, que é lugar afastado e onde não tem coisas relacionadas à arte. Isso me deixava meio confuso. Por que eu acabei me virando artista? Eu era a pessoa que desenhava e isso me aproximava de coisas, como a de ser o artista da cidade.
- E o que você desenhava?
- Desenhava qualquer coisa, eu tinha facilidade, mas depois fui descobrir que eu não era, tecnicamente, um bom desenhista. Depois melhorei a minha técnica. Dentro da UFPA eu comecei a ver as pessoas desenhando, e isso começou a me empolgar. Eu nunca tinha conseguido desenhar um rosto e talvez por isso eu faça rostos até hoje! Isso era uma grande busca minha.
Sem título, 2016 [série cenas singulares]. Óleo sobre tela, 110 x 71 cm.
- Por que a dificuldade com os rostos?
- Eu não conseguia! Eu até me arriscava a olhar para as pessoas, mas o desenho ficava muito diferente. Até então, eu não tinha tido uma aula de desenho e nunca tinha visto alguém desenhando. Então, nesse sentido, era difícil ser autodidata. E quando entrei na UFPA eu vi que as pessoas desenhavam rostos. Eu ficava encantado com aquilo! Aí chegou um momento, em uma viagem para o interior, em que eu pedi à minha irmã para desenhá-la e, finalmente, consegui desenhar o rosto dela! A imagem parecia com ela, e a partir disso eu comecei a desenhar cada vez mais pessoas.
Sem título, 2015. Belém, Brasil.
E talvez a coisa de ser artista tenha vindo nessa busca por desenhar, nesse fascínio de representar uma outra pessoa. De repente, é isso! Porque eu comecei a ficar nessa coisa do desenho. Já na aula de pintura eu fiz um rosto e, coincidentemente ou não, o primeiro rosto que eu pintei foi um rosto que tirei de uma página de jornal que noticiava crimes, em uma página policial. E praticamente todos os retratos que fiz foram sobre isso. Mas ficou mesmo um vácuo, do porque eu fui acabar me tornando um artista, e do porquê que eu cheguei ali. Depois fui começar a entender, ao fazer umas retrospectivas, descobri-me fazendo uma espécie de autorretrato, sempre. Porque a minha busca era representar uma pessoa comum, e essa pessoa comum sempre me veio a ideia de que ela tinha uma história parecida com a minha – que é tipo alguém que está morando na periferia da cidade. Essa pessoa e seu parentes vieram do interior em busca de alguma coisa e...
- O que é uma pessoa comum?
- É essa ideia de um anônimo, de um cara que não tem qualquer destaque na sociedade. E, em Belém, é muito nítido que essa pessoa é a figura do caboclo. São as pessoas que povoam as coisas, mas elas não têm destaque, não têm muito poder de decisão das coisas. E esse indivíduo me interessa. Essa pessoa comum, esse anônimo. É como se eu fosse criar um valor social para essa face, porque depois fui entender que é parecida comigo. Eu não me achava parecido com as pessoas que pinto, mas quando comecei a viajar para São Paulo, Rio de Janeiro, para trabalhar, as pessoas diziam que sou parecido com esses personagens. E todo mundo atribuía o retrato como se fosse o meu. “É você?”, eu ficava meio horrorizado, porque eu achava os caras muito diferentes de mim. Aí depois, fui entender que realmente a gente se parece. E na medida que vou envelhecendo vou me achando cada vez mais parecido fisicamente com essas pessoas que pinto.
- Poderia falar um pouco sobre sua obra Autorretrato, que foi apresentada na SP-ARTE e que depois virou capa da Revista DASartes (n. 59)?
Autorretrato, 2016. Óleo sobre tela, 297 x 205 cm.
- Essa obra é mais alegórica. É um autorretrato do meu trabalho. Ali está constando tudo que venho fazendo nos últimos anos. Em um primeiro plano, tem um homem que está sendo forçado por um policial a ser fotografado. O policial puxa o rosto dele. Depois a foto vai para um jornal, eu me aproprio do jornal. E nessa de transformar em pintura, eu propositalmente cubro um pouco a identidade desse homem. Quando ele vira pintura, ele deixa de ser aquela pessoa e passa a ser um rosto mais comum. É uma interpretação pictórica. Eu pinto os caras todo de vermelho, de azul. Isso ajuda a torná-los menos reconhecíveis enquanto indivíduos, enquanto fulano que foi preso por tal coisa. Então, é por isso que o meu braço cobre a identidade dele fazendo uma tarja vermelha. Uma alegoria do meu trabalho, um autorretrato. Mas não do artista! Quero dizer... a minha figura está lá, de fundo.
- Você saberia dizer mais sobre aquela sua dificuldade em fazer rostos?
- Eu acho que eu não era bem-educado visualmente, a minha visão era muito restrita. Então eu não conseguia transpor o que eu estava vendo. Na verdade, não é que eu não conseguia transpor, eu não estava realmente vendo o que pintava. Quando você começa a desenhar e a treinar você tem mais profundidade na visão, você começa a racionalizar as formas. Eu não conseguia enxergar, por exemplo, que as pessoas tinham espaços entre os olhos e as orelhas, em uma visão frontal. Então eu fazia o que muita gente faz, que é colocar os olhos no final do rosto. Isso é uma coisa da visão. A minha visão foi se aprimorando com o meu trabalho, inclusive, relacionado à cor, porque sou daltônico. Hoje eu consigo perceber muito mais do que eu percebia. Nitidamente, em relação às coisas que pintei tempos atrás, hoje consigo ver diferenças que antes eu não enxergava. A primeira grande dificuldade como artista foi o daltonismo, porque eu criei a ideia de que eu seria um retratista. No meu sonho, eu seria o retratista da cidade. Eu queria ser a pessoa que retrataria o prefeito, o governador, alguém importante. Mas quando comecei a pintar, as pessoas começaram a ver manchas avermelhadas, esverdeadas, em seus rostos. Pensei que não conseguiria continuar com aquilo. Mas depois, eu trouxe exatamente isso para o meu trabalho. Uma mancha esverdeada? Não, vou fazer todo o trabalho verde agora! Todo vermelho! Todo azul!
Sem título 3, 2014. Óleo sobre tela, 160 x 160 cm.
- Você se colocou em seu trabalho!
- Na época eu não percebia, mas hoje vejo o quanto faço monocromáticos por causa do daltonismo. Assim como eu não percebia porque pintava rostos comuns. Eu não sabia a origem dessa necessidade. Só sabia que tinha uma necessidade ali e continuei fazendo durante dez anos, mesmo com muita gente dizendo “já deu”, “faça outra coisa”, “você já alcançou tudo que você já tinha nesse trabalho”, “pare de fazer isso”, “vá criar um novo trabalho”. Mas eu me dei o direito de me sustentar e continuar esse trabalho por muito tempo. Contudo, fui tomado como o cara que se repetia, e até hoje dizem que sou aquele cara que se repete. Mas vou fazer o que quero fazer!
Série Páginas Vermelhas, 2015. Óleo sobre tela, 90 x 120 cm.
- É possível repetir um trabalho?
- Acho que não. Eu até repito, já pintei duas vezes o mesmo rosto. Mas é sempre a ideia do duplo, a ideia de você criar um novo ser a partir de uma representação. É o novo. Então quando você cria a partir de um desconhecido, em que as pessoas não têm a história dele, você cria ali literalmente um novo ser. Assim como aqui (no Projeto Parede do Verão Arte Contemporânea 2018), acho que se cria um novo Leandro. Agora que convidei ele para esse trabalho, é possível pensarmos em um Leandro com outros acessos, provavelmente há uma transformação aí. Logo, também crio um novo ser, que é a pintura. Por isso, nunca é o mesmo trabalho. Mas é a mesma fonte.
- Qual é a sua política?
- Desde o início é um trabalho que não quer resolver coisas, mas quer falar sobre elas, e provocar a reflexão das pessoas. Isso acaba gerando interpretações das mais diversas.
- É possível pensar o seu trabalho de uma maneira universal. Gostaria de saber o que você escutou na Alemanha sobre ele.
- Na Alemanha4, leram meu trabalho a partir da questão da imigração. O prefeito da cidade de Lingen contou que se assustou muito com o que acontece na Amazônia. Especialmente, com o fato de que aqui se publica o retrato de uma pessoa no jornal e o chama de culpado antes mesmo de ele ser julgado. Aqui é: capturou, fotografou e saiu! Mesmo que tenha sido um engano. Os alemães estranharam muito isso e ficaram sensibilizados com essa agressão que ocorre aqui. E o prefeito comparou essa agressão, que parte da questão do preconceito racial, à questão da imigração. Isso para mim foi muito bonito, porque já não se trata mais somente de uma discussão brasileira, local.
Sem título, 2016 [série Cenas singulares]. Óleo sobre tela, 110 x 71 cm.
- Em sua obra, é uma constante a representação de uma juventude em cenas de violência. No Brasil, os jovens pagam com a vida o preço das políticas de guerra às drogas. Lá fora, também são eles que compõem, em sua maioria, os atos de terror. Em sua opinião, por que os jovens seriam esses atores?
- A hora de fazer as coisas, mudar as coisas, é na juventude. Depois o sujeito vai envelhecer. Chega um momento em que você decide a sua vida. Aí você opta, como por exemplo, pelo tráfico de drogas. Você sabe que sua vida pode durar três anos, mas você opta por ir nesse caminho e arriscar.
Sem título, 2016. Óleo sobre tela, 135 x 71 cm.
- A juventude como momento de decisão.
- Isso, para mim a juventude é um momento de decisão.
- A arte para você foi uma decisão?
- Acho que sim! A ideia do talento, da coisa nata, do dom, de algo divino, não acredito que seja por aí. As pessoas têm uma opção de seguir sempre em algo e o quanto elas vão dedicar a isso é o que importa.
- Pintar um rosto pode ser pensado como um ato que se relaciona à identidade, mas ao mesmo tempo tem certa efemeridade se considerarmos que ele, em seguida, será coberto por uma outra tinta, como aqui no Projeto Parede. Qual a sua concepção de identidade?
- É um termo muito amplo. Quando digo que trabalho com a identidade do povo amazônico, o que eu faço é um mínimo sobre isso. Retratar um rosto não traduz aquele ser. O fato de eu não conseguir trazer a identidade daquele sujeito é justamente o tema do meu trabalho. Emprestar a imagem para fazer a identidade do povo. Parto de algo individual para falar sobre o coletivo, a única forma que sei utilizar a identidade. Seria esse reconhecimento como forma de identificar, reconhecer um rosto como pertencente a um grupo. Como foi aqui, com o Leandro. Meu esforço foi o de localizar um rosto tão comum, que para mim seria o rosto de um belo-horizontino, trabalhador. Uma pessoa que está tão imersa no trabalho que não tem a vaidade de ficar projetando algo. Acabam por ser pessoas invisíveis, que a gente não olha. Mas também é uma forma de ironia quando digo que esse é o rosto do belo-horizontino, um rosto que não se vê. O meu trabalho, nesse aspecto, é uma ironia, quando digo que aquilo ali é um fazer sobre a identidade do povo.
- Bom, então a identidade é um rosto que não se vê?
- Também é! No meu trabalho, é. Um rosto tão comum, tão comum, que ninguém presta atenção a ele. E talvez seja isso o que representa a identidade.
- Tem uma frase do Lacan que diz “penso onde não sou, logo sou onde não penso”. Tem algo desse sem rosto que de certa maneira consegue transmitir o que é próprio de alguém. Parece-me que em seu trabalho há um esforço de localizar um rosto, como se ele fosse representante da identidade de alguém. Mas na multidão desses rostos anônimos, por exemplo, em uma edição após a outra de um jornal, o efeito que temos é o apagamento dessas faces.
- Tem sim. Até fisicamente. Eu guardo alguns jornais. Eles vão ficando amarelados e depois de um tempo esses rostos vão ficando todos iguais. E tem ainda a questão da quantidade, porque a cada dia tem mais pessoas nas páginas policiais e você acaba achando que são as mesmas pessoas.
- Sim, a violência de deixar todos iguais.
Leandro e seu retrato, Projeto Parede. Foto: Éder Oliveira.
- As imagens das obras foram autorizadas pelo artista e retiradas do site http://www.ederoliveira.net
- Colaboração: Júnia Couto
Referências: