Entre o um e o coletivo
Marcus André Vieira
I
Parece haver uma tensão entre a política e a Psicanálise, a qual não pode ser reduzida à ideia de que uma lidaria exclusivamente com o universal e a outra com o singular, pois, tanto numa quanto noutra, universalidade e singularidade estão sempre articuladas, de um modo ou de outro.
A dificuldade poderia estar no fato de que, enquanto a política não vive sem alguma normatividade, a Psicanálise estaria mais do lado da revolução, uma vez que o inconsciente conteria impulsos essencialmente transgressores recalcados. A revolução, por um lado, é parte integrante do campo político; por outro, apesar de uma análise trazer à cena consciente elementos recalcados, ela não propõe novas regras de conduta a partir de tais elementos. Também não busca a instauração de uma nova ordem (o que, aliás, de algum modo nos levaria de volta ao normativo).
Podemos, ao contrário, apreender um ponto comum em ambas. Tanto uma quanto outra partem de um “eu” mais ou menos no comando. Para que se seja surpreendido pelo que não se sabe, para se reconfigurar em uma análise, assim como para se decidir estar associado a outros, o ato de votar requer um mínimo de unidade. É preciso, pelo menos, alguém mais ou menos igual a si mesmo para dizer “presente” quando convocado a participar das diversas situações cotidianas.
Ocorre que nossa subjetividade, ao menos na parte em que é articulada à nossa posição de consumidores do mercado globalizado, não tem o bastante em comando, nem em unidade. Ela funciona de outro modo e segundo uma articulação entre o individual, o coletivo e o singular, o que parece colocar em risco tanto a possibilidade da Psicanálise quanto a da política. Por isso, antes de nos perguntarmos se haveria incompatibilidade entre Psicanálise e política, deve-se perguntar sobre o modo como ambas encontram dificuldades na grande feira globalizada em que vivemos.
Essas dificuldades se tornam evidentes quando consideramos uma forma de vida que se espalha por todos os âmbitos da sociedade junto com o consumo e o mercado capitalista: a subjetividade do empreendedor. Ela se constitui a partir do espelhamento de si mesmo com uma empresa, que bem poderia ser chamada, como o título de uma conhecida revista, “Você SA”. O empreendedor não deve ter centro (assim como as empresas globalizadas ou multinacionais, como se dizia antigamente).
Deve-se ser criativo, mutante, reinventar-se a cada momento. O eu empresarial não tem, por conseguinte, uma normatividade subjetiva estável. É uma composição subjetiva que não se estrutura na articulação entre a lei e o que a ela escapa; não é um ego no sentido clássico.
Estou de acordo com Pierre Dardot e Christian Laval em A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal, de 2016, obra que toma o neoliberalismo como um modo de ser constituinte de uma forma de vida no sentido atribuído por Wittgenstein. Seu fundamento é um tipo especial de competitividade à qual chamamos de “livre concorrência”. Competitividade, neste contexto, é diferente de competição no sentido comum. Ela não se organiza pelo resultado em termos de mais eficiência ou melhor trabalho, mas pelo sucesso e pelo desempenho em termos de consumo. Não define quem tem competência, mas quem vende mais.
Quem determina os sucessos e os fracassos nesse mundo? O consumidor. Sua escolha é tida como o regulador natural e a garantia de qualidade do mercado. Mas o consumidor escolhe? É evidente que ele não opta pelo que é melhor ou mais necessário. Escolhe o que lhe é irresistível. Algo nele, mais forte do que ele, o faz escolher. É o que nós, lacanianos, chamaríamos de uma escolha pelo gozo. O consumidor goza e não escolhe, ao menos não o faz como um eu. Não importa se os tênis são feitos por alguma mão de obra escrava; não importa a lente do Fantástico (como cantam Gil e Caetano), não importa nada.
É uma falácia dizer que o livre-arbítrio estaria na base do capitalismo neoliberal, pois o essencial não é o que se passa no plano do eu consciente, mas o que o conduz sem que se possa resistir. Por isso, o neoliberalismo talvez não seja oposto à democracia, mas configure-se em sua destruição (se esta for definida como o “um por um” do voto consciente).
O empreendedor lida sobretudo com o empuxo ao gozo, mais do que com as escolhas individuais. Só na Alemanha ou na Inglaterra, para que se possa imaginar, as pessoas estariam no primeiro plano de sua consideração. Os absurdos a que chega o capitalismo no Brasil desvelam violentamente essa verdade. Não há, por aqui, tantos sujeitos que possam ser considerados gente o bastante para que se sustente a ilusão de uma verdadeira escolha por parte do consumidor. Que escolha tem uma mãe da favela com relação à melhor escola para seu filho ou o melhor hospital para tratá-lo?
A ilusão de que o mercado é regulado pelas escolhas livres dos indivíduos que o compõem não deixa de ser uma limitação para o exercício da competitividade. Em um país como o nosso, em que as condições de desigualdade fazem existir, para todos os efeitos, “eus” e “não-eus”, toda moderação se esvai. A subjetividade neoliberal, tanto em seu aspecto empreendedor quanto consumidor, pode se desenvolver em um movimento sem freios assustador com relação às suas ações. Não é o que demonstram tantos de nossos políticos? Não seria uma maneira de entender por que não cessam de fazer o que fazem a despeito da opinião pública? Eles parecem contar, na câmara isolada em que vivem, cada vez mais apenas com o desempenho medido pelo gozo, e não pelas leis. É preciso sempre “mais, ainda” (cf. Lacan e seu seminário 20, assim intitulado).
Qual política, então, quando somos todos um pouco empreendedores ou consumistas? A clássica e representativa parece ir mal das pernas em todo o mundo exatamente por essa razão. Nesse ponto, interessa ver como a Psicanálise lida com o gozo. Se seguimos Lacan, ela teria um modo de fazer com o objeto do consumo que passa longe da luta inglória de resistir a ele pela moralidade, como na religião, ou por sua mortificação, pela normatização burocrática.
II
Na grande feira global, como resistir ao empuxo da série infinita dos objetos do consumo? A experiência religiosa parece ter essa capacidade (que não deve ser confundida com os fundamentalismos que são, eles também, experiências de gozo). É essencial, igualmente, destacar a importância dos valores morais e dos ideais para a moderação na direção de um consumo dito “consciente”. A especificidade da Psicanálise, porém, é que ela não tenta resistir. Em vez de propor uma luta contra o que nos arrasta, em vez de apostar em barreiras e cercas frente ao que nos invade, ela nos ensina a lidar com isso de outro modo. De fato, uma análise não lida com o gozo controlando-o, limitando-o. Não é feita para ser luta, não vence ou cria resistência como ação principal, não culpabiliza, não dá sermão, não normatiza.
Tomo apoio no texto de Jacques-Alain Miller, “Uma fantasia”, publicado na Opção Lacaniana n. 42, em que ele propõe uma aproximação entre a Psicanálise e o discurso hipermoderno, contemporâneo (entenda-se neoliberal). Ambos partem do gozo, e não da norma. Tanto o empreendedor quanto o consumidor lidam com a mais-valia, mais do que com as leis que regem o trabalho e a rotina; mais com o objeto a, como nomeia Lacan a mais-valia, do que com os ideais.
Então, talvez a Psicanálise tenha um modo de fazer que mude nosso ser de consumidor ou empreendedor por competir com ele pelo mesmo objeto, em vez de querer discipliná-lo.
No capetalismo (no dito do Profeta Gentileza, personalidade urbana carioca), compro, compro e ganho um gozo “a mais”. Compro um objeto inútil e, com ele, adquiro um objeto invisível, um objeto a. Esse gozo a mais foi chamado por Lacan de mais-gozar. É a mais-valia posta em jogo, que a Psicanálise reintroduz na rede de uma vida. É o elemento fora da história que circula na rede de uma história, que a alimentava até então, mas sempre fora de alcance. A mesma coisa que, no mercado, sustenta uma série infinita de produtos a serem adquiridos pode ser o que nos afasta um pouco dela? Sim, porque se o mais-gozar já estiver, digamos, no bolso, vale a pena ainda comprá-lo?
Parece retórico? Um exemplo: uma analisante ‒ filha não reconhecida, cujo provável pai teria sido alguém com um passado sujo de participação na guerra do lado do horror ‒ passa a vida sem parar de trabalhar para lavar, limpar, melhorar seu nome, e também o que quer que seja sua causa no momento. Com a análise, ela encontra um modo de fazer a mesma coisa, de um jeito diferente e que muda a sua vida. Para nos dar uma ideia da paradoxal mudança ocorrida, ela extrai de um sonho uma propaganda do sabão OMO: "aquele que lava mais branco que o branco”. Com esse bordão, consegue traduzir o que foi feito de seu empuxo ao gozo do trabalho. Ela continua nele, continua tomada por seu sintoma: “lavar”, afinal, não é ele que a fez desde sempre viver? Como viver sem ele? Ele muda, porém, de sentido. Ela não correrá mais atrás de um passado negro, mesmo mantendo seu sintoma (é o que faz Miller chamar a política da Psicanálise de “política do sintoma”). No entanto, talvez não mais como dona de casa, ela precisará comprar o melhor sabão, o de melhor desempenho.
Com muitos analisantes assim espalhados pelo mundo, quem sabe um dia a Psicanálise levará a Unilever, fabricante do OMO, à falência, ou pelo menos a deixará em maus lençóis? Uma análise se desenrola visando a um plano que não é nem regulado pela norma nem pela oposição a ela: o campo de uma fração desregulada de nossa vida. Este será abordado em sucessivas aproximações com o que resta de nós e não está recoberto pela normatividade social. O inconsciente não revoluciona, mas força o eu consciente a se reconfigurar, não para ser melhor em algum sentido geral, ideal, mas para se tornar mais próximo do que nele não cabe, para fazer sua vida vibrar mais em sintonia com o que escapa a seu domínio. É um modo de descrever o que Lacan chamou de “subversão do sujeito”. Nesse sentido, a Psicanálise não é nem disciplinar, nem revolucionária: é subversiva.
Resta a questão: é possível para o psicanalista, em sua política do sintoma, ir além da subversão “um por um” de cada análise? A pergunta poderia ser: quem mais está, na cidade global, fazendo algo parecido? Deve haver políticas que tenham pontos de contato com a Psicanálise e sua política do sintoma.
Michel Foucault propunha as contracondutas como formas de se escapar a esse poder, pois sabia que a um poder que vem “de dentro para fora” ‒ o biopoder ‒ não adianta lutar “de fora para dentro”. Suas contracondutas assinalam um fazer diferente, um outro modo de gozo, não uma decisão ou escolha. Devem ser coletivas, pois tudo o que for “um”, mesmo os ideais, são tornados imediatamente gadget pelo mercado. No plano das contracondutas, talvez se situem os movimentos slow e as ocupações. Estes se apresentam como coletivos em torno de um fazer, são frágeis em termos de ideias, têm duração imprecisa, mas, por isso mesmo, delimitam bolsões alternativos ao neoliberalismo.
Quais ações no plano da política, no sentido lato, usam o objeto mais-gozar como uma saída do empuxo ao gozo do capetalismo? Devemos buscá-las nas ocupações, nos movimentos slow, mas também nos saraus das periferias, nos ativistas das minorias, nos ativistas trans e em um sem-número de intervenções artísticas que abundam nos espaços sociais em que o eu não dá as cartas. Como ficarmos atentos aos pontos de contato em que as reinvenções singulares que vivemos em cada análise dialogam com as práticas dos que conseguem agir do lugar do não-eu? Como aprender com os que, do lugar do objeto, tomados como todos nós pelo mercado, trazem um pouco do que vivem de gozo para nele incluir, como o inconsciente em uma vida, um pouco de sonho, fracasso e riso?