Os novos abismos, duas versões

Marcelo Veras
Patrícia Veras

 

Esse texto é um híbrido da observação de um psicanalista e de uma cientista sobre o novo cenário mundial em que se desenrola a questão do singular e do coletivo na Saúde. Sua estrutura foi pensada deliberadamente como dois em um: não se trata de um texto, nem tampouco são dois.

 

I – O psicanalista

Durante a pandemia, somente foi possível a politização das estratégias de Saúde quando o pensar na coletividade e o pensar na liberdade individual foram identificados como modo de gozar, e não como estratégia de sobrevivência. Por isso, os caminhos e descaminhos do tratamento da pandemia não obedeceram aos critérios de falseabilidade da ciência, e, sim, da política. Para além do aspecto universal que a palavra pandemia pode evocar, tornou-se evidente que os modos de enfrentamento da Covid-19 acentuaram os dispositivos de segregação do mundo contemporâneo.

A segregação está na base da teoria lacaniana dos discursos. Para Lacan, o preço a pagar pela fraternidade é a segregação do gozo do outro na sociedade. Ou seja, uma fraternidade é uma defesa coletiva ao modo de gozar que lhe faz oposição. Essa teoria aparece claramente no seminário 17, O avesso da Psicanálise. Para além do nome, é o regime de gozo que está na base dos grupos sociais, o gozo do outro sendo sempre um problema para o estabelecimento de vínculos. Trata-se de um coletivo social cada vez mais repleto de sujeitos observadores e participantes das novas formas de gozar, ao mesmo tempo em que emergem, cada vez mais, manifestações segregativas e raciais, nas palavras de Oscar Zack, em El psicoanálisis y la política, una discontinuidad discursiva, de 2017.

Contudo, podemos dizer que alguns aspectos foram efetivamente vividos de modo global. Algo novo irrompeu em escala planetária com o advento da Covid-19: subverteu-se em parte o comando do mundo pelas regras do capitalismo. O mundo parou de comprar. O matema proposto por Jacques-Alain Miller na conferência “Uma fantasia”, de 2004, para mostrar o sujeito contemporâneo determinado pelo objeto (a > $), cedeu lugar ao mestre sanitário, que passou a determinar as novas regras de organização da vida em comum, quer elas fossem acatadas pelos governos ou não.

Iniciemos com um conceito que não faz parte do dispositivo científico, a identificação. Em escala global, foi possível constatar a tensão entre as orientações preconizadas pela Organização Mundial de Saúde, que se apoiavam no trabalho dos cientistas, e os opositores do lockdown e da vacina, ainda que estes dois últimos tampouco formassem um grupo homogêneo. A divisão escancarou aquilo que Miller chamou de mal-estar na identificação, fazendo valer um matema distinto do matema proposto acima: I(Ⱥ). Ou seja, se antes, como aponta Miller em Malaise dans l’identification, de 2019, o “déficit significante do sujeito” encontrava uma resposta no Outro, chamada de Ideal do eu, agora é o próprio Outro dos ideais que é dividido, fraturado entre o mestre respaldado pelo pensamento ultraliberal, individualista, e o mestre sanitário que busca uma resposta ao mal-estar pelo coletivo.

Em seu paroxismo, foi possível constatar o negacionismo como rechaço total ao saber advindo da produção dos cientistas. O negacionismo é um modo de recusa do saber científico que se propunha a ser universal. Ele deriva da paixão da ignorância, que é, como afirma Daniel Roy em Haine et violence dans l’expérience subjective et dans le lien social, de 2016, muito mais potente, que o amor ou o ódio para mascarar a violência subterrânea das atuais relações sociais. Não deixa de ser curioso que, no momento civilizatório em que o mundo buscou sua unificação pelos mercados comuns, o resultado encontrado foi o aumento da segregação, como previu Lacan em Proposition du 9 octobre 1967 sur le psychanalyste de l’école. O negacionismo nada mais é do que uma das faces de segregação.

Assim, quando o estado se apoia no discurso negacionista para justificar suas ações, estamos diante do pior. Lacan é premonitório quando trata os campos de concentração como uma mostra do que viria no futuro. Para além da memória do Holocausto, é o germe da segregação que passa definitivamente a habitar o mundo atual. Um comportamento recente, evidenciado sobretudo durante a segunda onda da pandemia no Brasil, mostra essa tese ironicamente pelo seu avesso. Respaldados pelo pensamento negacionista, muitos decidiram romper o isolamento social.

Assim, surgiram os campos de aglomeração. O que leva alguém a querer participar de uma festa com quinhentas, mil pessoas, mais ainda, em pleno momento da expansão sem precedentes da Covid-19 no Brasil, o verão de 2021? Ficou comprovado o quanto essas aglomerações catapultaram os números de caso após o verão, tanto no Brasil quanto em todo hemisfério norte. É mais fácil compreender a lógica que promove as pequenas festas, em que as pessoas querem encontrar seus amigos de turma, sua família, seus colegas de academia. Mas ninguém consegue conversar com mais de cinquenta pessoas em uma festa. Outro desejo certamente está em jogo ao querer participar de um evento onde sabidamente não será possível abraçar todos. É mais fácil isolar o mal quando temos a figura de um líder, essa é a lógica bastante conhecida da Psicologia das massas freudiana. Mas aglutinar-se em plena pandemia não é a mesma coisa que encontrar vinte amigos – um novo fenômeno de massa está em jogo. Por mais que haja a figura de um bufão dizendo que todos devem se aglutinar, é difícil conceber que todos viraram bufões.

Ser parte da massa ao preço de brincar com a vida fica mais fácil quando abrimos mão do senso crítico e aderimos à lógica do "todo mundo está fazendo". Fazer parte do rebanho é sempre uma liberação do sentimento interno de vergonha. Implica a manifestação maníaca descrita por Freud em seu texto de 1927, “O humor”. Trata-se do triunfo diante da morte do pai. É preciso entender a lógica que faz com que o desejo de ser rebanho em uma massa supere o sentimento íntimo de vergonha que temos quando transgredimos a lei. E qual a lógica dessas aglomerações que se tornam campos de difusão na pandemia?

 

2 – A cientista

As tensões que levaram à revolta da vacina são reeditadas, cem anos depois, com impressionante atualidade. A ciência não busca a verdade, ao contrário, ela é um perpétuo sistema de destruição da verdade. É necessário, contudo, que ela ajude a construir estratégias, definir políticas, construir protocolos. A ciência permite ler o Real, criar a partir de seus efeitos no mundo, mas ela é incapaz de barrar a força disruptiva do Real no mundo dos falantes. Por isso, ela não pode ser apropriada por aquele que se sirva dela para impor um discurso totalitário, pois toda ciência tomada como verdade se torna uma pseudociência. Poucas vezes os cientistas estiveram tão em evidência e foram tão respeitados ou rechaçados como nesse período da pandemia.

Destacando esta passagem de um texto que publiquei em 2012 na Lacan Quotidien, “Ce que la Science ne peut pas lire”, vejamos onde estamos hoje, sobretudo após as lições da pandemia:

Atualmente, não temos a experiência, maturidade ou massa crítica para avaliar se estamos gerando conhecimento real com esses grandes conjuntos de informações, ou se estamos simplesmente gastando bilhões de dólares em tecnologia para obter pouca ou nenhuma informação realmente útil. Mas esse é agora o caminho de qualquer procedimento científico. [...] É certo, portanto, que o pensamento científico em rede se tornou parte de nossa realidade. Mesmo que estejamos no processo de reaprender como fazer ciência, como flertar, analisar e criticar esse pensamento em rede, ele é certamente um caminho sem retorno. Uma nova era de conhecimento científico começou, e a comunidade científica está dividida entre dois paradigmas.

Desde a época em que os cientistas passaram a trabalhar com sistemas integrados para responder a uma pergunta científica, período no qual foi escrita essa passagem de 2012, podemos dizer que muito se evoluiu. Hoje, o avanço científico feito por meio das ômicas está consolidado. Ele foi fundamental para que a ciência atingisse, em tempo recorde, um saber aplicado à urgência da pandemia. Do que se trata quando os cientistas falam de ômicas? Implica em uma análise global das respostas de um organismo ou de células frente a algum estímulo, como as respostas ao vírus ou a uma doença, sem que haja uma hierarquia dos saberes. Trata-se do estudo de todas as proteínas de um organismo (a proteômica), do estudo de todos os genes (a genômica), da transcrição de todos os genes de uma célula (a transcriptômica), dos metabólitos de uma célula (a matabolômica), e por aí vai.

Até os anos 2000, isso tudo era feito de modo não integrado. Acontece a busca da utilização dessas matérias de modo integrado em redes neurológicas, não no sentido de que se está analisando os neurônios, mas de que são neurológicas por serem baseadas em estudos de redes muito complexas. Quem primeiro pensou nessa integração foi o matemático e economista John Nash, ganhador do prêmio Nobel em 1994 e celebrizado no filme Uma mente brilhante.

As ômicas e a integração das ômicas geraram uma quantidade de conhecimento gigantesco, já que todas as células do corpo passaram a ser analisadas por redes complexas formadas pelos seus elementos, sejam eles genes, proteínas ou metabólitos, que permitem de modo cada vez mais preciso conhecer a resposta de um indivíduo singular ou de um grupo muito específico de pessoas, e não apenas de todos os indivíduos de uma mesma espécie. Como consequência, é totalmente possível a identificação de tratamentos específicos para uma doença ou a agressão a uma pessoa única. Trata-se de uma medicina revolucionária em que o tratamento será para X e não para Y, um tratamento um a um, chamada de Medicina de Precisão.

Contudo, o fascínio por essa nova medicina acende a batalha das grandes empresas de biotecnologia para produzir ferramentas que possam vir a ser utilizadas na prática clínica. O primeiro desafio é técnico: análises de integração de dados, demanda de sistemas computacionais poderosos e pessoal capacitado para unir essas informações e traduzi-las para a prática clínica. Uma vez vencidas as questões técnicas e que a medicina personalizada seja implantada, surge um novo desafio: como e quando ela se tornará de acesso universal. Quem realmente poderá ter acesso a esses tratamentos? Assim, é formidável afirmar que o indivíduo comum pode viajar e dar uma volta em torno da Terra, sem se interrogar sobre quantos dos bilhões de indivíduos comuns poderão realmente fazer essa viagem...

Trazendo essas reflexões para a Covid-19, é possível perceber que o volume de informações gerados pela transcriptômica, sobre a resposta de macrófagos e monócitos, quando associados em rede, cria uma tamanha quantidade de informações que se torna possível pensar um tratamento para a infecção de uma única pessoa. O macrófago de X é diferente do macrófago de Y, e por aí vai. Contudo, isso não é uma realidade para a Saúde Pública, que mal consegue tratar os dois por cento da população que foi parar em uma UTI por conta da pandemia...

O sonho da Medicina de Precisão vai brevemente se tornar realidade, mas para poucos... Seria esse mesmo o caminho da ciência? É curioso que, apenas em aparência, a Medicina de Precisão se aproxima da Psicanálise, já que esta se dedica aos indivíduos um a um, mas a Medicina de Precisão nada quer saber sobre os sujeitos reais, apenas de seus corpos. Lembramos aqui o cenário retratado no filme Elysium, de Neill Blomkamp, que mostra a população mais rica sendo levada para uma estação orbital onde encontrará a Medicina de Precisão, enquanto todo o restante do planeta, a esmagadora maioria, continua submetida às doenças ocupacionais e sem possibilidades de ter tratamentos coletivos eficazes...

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