Comunidade Imunidade

Junia Ferrari

 

Falar sobre o Comum nos permite vários caminhos. Foi necessário, então, fazer uma escolha que coubesse nos limites impostos pelo tempo e pelas circunstâncias deste debate. Dessa forma, escolhi abordar o tema por uma perspectiva que, para mim, ilumina boa parte da noção de Comum que venho construindo na prática da minha vida acadêmica. Trata-se do entendimento do Comum ou communis a partir da etimologia do termo 'comunidade' ou communitas, substantivo latino de onde os demais derivam.

Recorro, então, ao filósofo italiano Roberto Esposito, em Comunidade, imunidade, biopolítica, de 2013, cujo trabalho em torno da concepção de 'comunidade' se deu a partir de um "movimento genealógico rumo à origem do conceito", tendo como ponto de partida o seguinte paradoxo: ao mesmo tempo que nos remetia à ideia de algo coletivo e público, portanto, um sentido antagônico ao que é próprio, o termo 'comunidade' também era associado à noção de identidade e propriedade, por invocar sentimentos de 'tomar parte de' ou 'identificar-se com'.

Por volta da década de 1980, a partir de Jean-Luc Nancy, Georges Bataille, Giorgio Agambem e do próprio Esposito, o termo ganha outra conotação: "ao invés de referir-se a uma propriedade ou a uma pertença de seus membros", o vocábulo 'comunidade' adquire o sentido de "uma alteridade constitutiva que [...] a excluía de qualquer conotação identitária" para com os seus integrantes. Em outras palavras, "a comunidade (e o comum que lhe corresponde) não é [...] uma substância ou uma essência pertencente a todos os sujeitos que dela participam [...], já que o que lhe define é precisamente [o fato de] ser antagônica ao que é próprio, e portanto à 'propriedade'", como esclarece João Tonucci em sua tese Comum urbano: a cidade além do público e do privado, de 2017. Se, por um lado, essa outra concepção resolvia a forte vinculação do vocábulo às noções de próprio e de propriedade anulando-os, ela desconsiderava, por outro, a potência política da "comunidade" gerada no intercâmbio entre seus membros. Diante desse impasse, tornou-se necessário buscar o significado do termo em outra direção. Para isso, Esposito, em Communitas: origen y destino de la comunidad, de 2003, decompõe o termo 'comunidade', a partir do seu étimo latino communitas, nos radicais cum e munus. O primeiro expressa o sentido relacional de 'comunidade', os vínculos, o 'estar com'. O segundo, o substantivo munus, revela, de forma bivalente, a noção de um dever (onus) ou ofício (officium) a ser cumprido, além do sentido de dom ou dádiva (donum) recebidos. Em outras palavras, munus seria a obrigação de retribuir uma dádiva recebida, na forma de algum benefício aos demais membros da comunidade. Nesses termos, "o que une as pessoas em comunidade não é a identidade ou uma propriedade em comum, mas um dever, uma dívida, uma falha original, que nos abre aos outros e da qual não podemos nos desfazer", sintetiza Rafael de Oliveira Alves em sua tese Entre despossessão e apropriação, o direito à cidade: quando o comum é possível, de 2015. Para Esposito, uma vez que "alguém aceitou o munus, está obrigado (onus) a retribuí-lo, seja em termos de bens ou de serviços (officium)". Isso atribui um outro sentido ao termo 'comunidade', agora mais associado à noção de dever ou obrigação em relação ao(s) outro(s), além de resgatar a percepção de intercâmbio recíproco entre os sujeitos e, consequentemente, o seu "significado potencialmente político".

Nessa compreensão de 'comunidade' (e de seus comuns), pertencer a uma communitas significa renunciar ao que lhe é próprio, num duplo processo de progressiva abertura ao outro e de desprendimento de si mesmo. "É projetado completamente no ato transitivo de dar. Não implica de forma alguma a estabilidade de uma posse e muito menos a dinâmica de aquisição de um ganho", afirma Esposito. Pelo contrário, significa perda, subtração e atribuição de um dom ou serviço em benefício do(s) outro(s): "não é o próprio, mas o impróprio – ou, mais drasticamente, o outro – o que caracteriza o comum. [...] Um despojo que investe e descentra o sujeito proprietário, e o obriga a sair de si mesmo. A se transformar".

Se na definição de communitas o substantivo munus desempenha seu papel de compromisso donativo mútuo entre os sujeitos, no conceito de immunitas ele é anulado pelo prefixo "i". Dessa forma, o vocábulo designa justamente o que nos livra do ônus e do compromisso para com os outros, seja delegando essas atribuições e deveres de maneira contratual ao Estado, ou pela privatização do trabalho, da propriedade e dos afetos. Isto é, o immunitas nos desobriga do compartilhamento.

Entretanto, essa imunidade, ainda que necessária (em parte) à conservação das nossas vidas, se levada a extremos, nos tolhe a liberdade, a oportunidade de convivência e até "o próprio sentido da nossa existência", como define Esposito, em Comunidade, imunidade, biopolítica, de 2013. Se a concepção de 'comunidade' esquadrinhada por Esposito determina a ruptura das identidades e da noção de próprio e privado, a imunidade, por sua vez, vai na sua contramão constituindo barreiras contra qualquer responsabilidade em relação aos outros. Imunizados, vamos nos fechando em grupos identitários (de família, trabalho, crença) ou em guetos virtuais, e promovendo, cada vez mais, a descoletivização da vida.

É justamente nesse contexto de convivência da contemporaneidade que o filósofo nos apresenta, com renovada urgência, a necessidade de separarmos a imunização necessária da destruição da vida. E completa: ao mesmo tempo que se deve lutar para a “desativação dos aparatos de imunização negativa”, é preciso investir forças na outra direção, ou seja, no sentido da “ativação de novos espaços do comum” gestados na experimentação compartilhada e alimentados pela potência produtiva que a coletivização promove.

 

     
Texto apresentado, inicialmente, no evento Sete minutos, organizado pelo Grupo indisciplinar, como parte da programação do Verão de Arte Contemporânea, em 2018.

     





Imprimir E-mail