Cozinha do comum
"O pensamento se faz na boca", apregoava Tristan Tzara no Manifesto Dadá, em 1916. A construção de simbolismo e relações, assim como o processo de digestão de crenças e representações coletivas acontecem, via de regra – sejam os eventos familiares, acadêmicos, políticos ou religiosos –, no compartilhamento de uma mesa. Num simpósio, banquete, ceia ou comunhão. A refeição é, portanto, um ritual social de compartilhamento, e nenhum espaço de cultura experimental é tão antigo quanto a cozinha.
"Máquina de alimentar, coração do lar, prisão doméstica, espaço de convivência, laboratório doméstico", é como define a cozinha o físico espanhol Antonio Lafuente, estudioso das relações entre tecnologia, patrimônio e bens comuns, no artigo “Na cozinha, convite à imaginação pós-capitalista”, publicado no blog OUTRASPALAVRAS, em 11 de agosto de 2020 (htps://outraspalavras.net). Esse lugar para fazer testes, inovar procedimentos e contrastar receitas pouco se importa com as leis do sabor ou as regras da cor, da textura e do aroma. Seus ingredientes principais são imateriais, e o que se busca ali, para além do elogio ao cozinheiro (hoje em dia dito, pedantemente, chef), são formas mais abertas de sociabilidade, atentas ao paladar dos convivas e aos recursos da vizinhança: uma grande conversa em torno de uma mesa. A cozinha é o espaço por excelência de vida em comum, ponto de encontro informal, esporádico e hospitaleiro, espaço de mudança ‒ de regras, receitas, tempos e tradições ‒ e de diluição ‒ de fronteiras de gênero, raça, idade e classe ‒, sempre amador: mesmo em época de uma nova religião gourmet ‒ a farsa neoliberal chamada gastronomia ‒, a cozinha pode se distanciar dessa indústria cultural regida pela moda, para se afirmar no desejo caseiro de uma vida compartilhada.
O cotidiano como reduto de resistências, como compreende Michel de Certeau, em A invenção do cotidiano, de 1997, é o espaço daquele que, pelas inúmeras e singulares formas de fazer, resiste a imposições e, assim, opõe-se a uma representação objetificadora e determinista, e o cozinhar é um desses fazeres ordinários, miúdos, diurnais ‒ mas potentes ‒, de reinvenção, ressignificação e deslocamento do que é dado como limite do Real. Os fazeres decorridos das práticas de cozinhas, mais do que tramarem jogos entre sujeito e seu contexto sociocultural, produzem-nos, ampliando as possibilidades do comum.
Alguns artistas estão usando, contemporaneamente, a comida como proposta poética e interativa de diversificação dos modos de vida existentes, operando com a ideia do "juntos", do "comum". Primeiramente, podemos citar o restaurante Food ‒ considerado tanto um negócio quanto uma ação artística ‒, no SoHo, em Nova York, no início dos anos 1970, montado pelo americano Gordon Matta-Clark, no qual artistas como Donald Judd, Robert Rauschenberg e John Cage preparavam e serviam as refeições. Matta-Clark é conhecido pela pesquisa e produção de obras criadas especificamente para espaços e lugares determinados (site-specific), intervenções urbanas e, principalmente, pelos cortes que realizava em prédios e casas abandonadas.
Gordon Matta-Clark: Food. Licensed by CREATIVE COMMNS. Attribution-NonCommercial-NoDerivs 3.0 Unported (CC BY-NC-ND 3.0)
Um dos artistas que mais é associado ao uso da comida em seu trabalho é o argentino Rirkrit Tiravanija, que organiza refeições em espaços de arte especialmente desenhados para compartilhar refeições, cozinhar, ler ou tocar música, num trabalho caracterizado, fundamentalmente, por "reunir pessoas", numa ética relacional de envolvimento social que convida o público a habitar e ativar o seu trabalho. O privilégio de experiências e trocas em tempo real elimina as barreiras entre objeto e espectador, questionando a reputação do objeto artístico como "fetiche" e das galerias e museus como espaços "sagrados". Tiravanija descreve seu trabalho como "equivalente a retirar o mictório de Marcel Duchamp de seu pedestal, reinstalá-lo em uma parede e, em um ato que restaura seu uso original, urinar nele".
Rirkrit Tiravanija: (who's afraid of red, yellow and green), 2019. Installation view. Photograph by Shannon Finney. Courtesy of Hirshhorn Museum and Sculpture Garden.
No Brasil, o coletivo de artes carioca Opavivará! desenvolve ações em locais públicos da cidade, galerias e instituições culturais, propondo deslocamentos e inversões dos modos de uso e ocupação do espaço urbano, por meio da criação de disparos poéticos, ambientes envolventes e dispositivos relacionais que geram experiências de cooperação, situações coletivas e momentos públicos. “Criar uma arte coletiva, pública, popular, prazerosa e crítica” é a definição do trabalho pelo grupo, que, ao oferecer almoços em praça pública em uma de suas ações artísticas, enfatiza a sociabilidade no ato de comer, montando uma estrutura de cozinha e convidando os passantes a preparar e a consumir as refeições coletivamente. “Torna-se mais importante criar momentos públicos, promover dinâmicas comuns, inclusivas, abertas à interação do público para o público", dizem os artistas do coletivo, cuja ideia principal é "ressignificar a arte como algo democrático, que na verdade já está nas ruas ao acesso de todos”.
OPAVIVARÁ!: OPAVIVARÁ! AO VIVO! Praça Tiradentes, Rio de Janeiro, 2012.
Fonte: http://opavivara.com.br/p/opavivara-ao-vivo/opavivara-ao-vivo
No projeto Banquetes, Louise Ganz e Breno Silva propõem refeições compartilhadas sobre mesas cuidadosamente colocadas em espaços públicos de Belo Horizonte, expandindo o espaço doméstico para a rua, estendendo arenas de vivência e de convívio das cidades, e humanizando o meio urbano. A ação favorece a ideia de ocupação de espaços assépticos e sem vestígios de ocupação, transpõe as fronteiras rígidas entre o público e o privado e faz "uma ruptura com o cotidiano de distanciamentos", como definiu Frederico Canuto a respeito dessa ação artística, no ensaio "Sobre fracassos documentais", de 2008. Louise Ganz diz que se sentiu despertada por um pensamento sobre outros modos de viver o cotidiano nos espaços da cidade, que a fez romper as fronteiras entre a casa e rua e ampliar a dimensão de coexistência. A mesa foi o objeto comum a todos que realizou a transposição do dentro para o fora, e a comida, o elemento mediador entre as pessoas, tanto no ato de cozinhar, quanto no de comer. Impulso de vida, criativo e criador, constituinte e regenerador, comer é "instalar-se no próprio centro do processo formador, gerador e conservador de si próprio", como localizou Michel Onfray, em A razão gulosa: filosofia do gosto, de 1999. Os lugares escolhidos para a ação eram espaços vagos na cidade ‒ canteiros, rótulas de circulação, finais de ruas, áreas sob viadutos, praças abandonadas, margens de córregos ou lagoas, calçadas e lotes vagos ‒, "lacunas a serem preenchidas", como diz Louise Ganz. "Não se trata de acabar com o vazio", complementa a artista, mas, ao contrário, de incorporá-lo, "mantendo-o como vago, mas sendo potencial de uso coletivo", de modo que o ocupante pode ter uma presença ativa e inventiva.
Louise Ganz: Banquetes, 2008. Fonte: https://lganz.wordpress.com/2016/03/21/banquetes/
Também de Belo Horizonte, as artistas-cozinheiras Joseane Jorge e Sílvia Herval (Cozinha Kombinada) propuseram, em 2016, pelo Programa de Residências Internacionais do JA.CA – Centro de Arte e Tecnologia (organização da sociedade civil que desenvolve atividades no bairro Jardim Canadá, em Nova Lima), a composição da coleção Carpoteca e Espermoteca Jardim Canadá, a partir da coleta de exemplares de espécies que crescem na região, comestíveis ou não. Por meio de experimentações e curtas expedições ao longo de dois meses de pesquisa nas cercanias do bairro, coletando raízes, caules, sementes, folhas, flores e frutos, a dupla desenvolveu técnicas de processamento de alimentos, visando ao compartilhamento dos seus modos de fazer, receitas, histórias e saberes. O interesse das artistas, bem distinto do que move certos modismos recentes, relacionados ao cultivo e consumo de alimentos orgânicos, era ativar redes dentro do bairro, assim como interferir diretamente sobre o contexto que as recebeu, conhecendo pessoas, quintais e modos de vida diferentes dos habituais de contextos de plena urbanização, e fomentando laços entre os próprios moradores-plantadores, enquanto semeavam, no terreno que abriga o JA.CA, framboesas, manjericões e chuchus.
Cozinha Kombinada: Carpoteca e Espermoteca Jardim Canadá, 2016.
Fonte: https://www.jaca.center/a-resistencia-dos-quintais/
Merecem destaque, em relação ao aspecto de subversão das imposições socioculturais contemporâneas que a cozinha pode ter no desenvolvimento de formas particulares de vida comum ‒ uma "antigourmetização da vida cotidiana" ‒, uma série de procedimentos artísticos inventivos e divertidos de Joseane Jorge, em sua busca de liberdade de "modos de fazer" diante daquilo que impõe normas. Como ela diz, seus preparos são "livres de receita", e os ingredientes são disponibilizados em diferentes invenções e formas de servir. Seja com adolescentes de um projeto psicossocial ou com militantes da agroecologia, assim como em eventos em espaços culturais, as proposições de Joseane Jorge não servem à lógica neoliberal de um sujeito-gourmet, mas à singularidade de um sujeito do desejo, enlaçado por significantes saborosos – que envolvem objetos orais misteriosos e inusitados – para saber fazer algo com seu vazio de conhecimento sobre o Outro. Tudo feito numa dimensão espirituosa, bem-humorada, que desidealiza o objeto, possibilitando certa integração social.
Joseane Jorge: FORRAGEIO, intervenção inserida na programação do Inhotim Ocupações Temporárias,quiosque/jardim do Palm Pavillion de Rirkrit Tiravanija
com experimentações culinárias feitas a partir da colheita de juçaras, licuris, pupunhas, tamareiras e outras palmeiras do Inhotim, 2017.
Fonte: https://www.facebook.com/joseanejorge
Em uma sociedade atravessada por uma crise do Simbólico, é preciso estar atento à possibilidade de se pensar uma relação com o Outro não mais pautada pela dialética entre lei e transgressão, mas na dimensão do que Lacan chama de Real, encontro do sujeito com a Coisa para além da lei, numa relação que seja capaz de destituir a fantasia de uma proibição do gozo. A transgressão terminaria simplesmente por substituir o mestre antigo por um novo mestre, num novo regime de dominação política, na qual o saber inconsciente passaria a determinar o sujeito a produzir o mais-gozar, ou seja, o gozo passando a ser contabilizado por meio da produção infinita de um mais-gozar.
Esses artistas-cozinheiros parecem resistir ao mais-gozar, que determinaria o imperativo do trabalho ou da produção de um excesso de gozo passível de ser contabilizado no mercado gastronômico. Tampouco apostam numa restauração de algum tipo de mestre (ou chef). Há um saber-fazer aí da ordem do múltiplo, que não se prende a qualquer significante mestre, apostando na diversidade de possibilidades de que o sujeito institua o próprio impossível como seu guia, sem dar consistência ao Outro.
De algum modo, é possível ver ressonâncias desse procedimento pós-moderno e não-todo em um campo também afeito ao simposium (termo grego para "banquete"): a Escola de Psicanálise, lugar de formação onde acontece o que Jacques-Alain Miller nomeou de "banquete dos analistas". Ao constatar, com a globalização, a desestruturação contemporânea dos grandes filtros de saber, ou seja, as tradições, as autoridades consagradas ‒ organizações do significante que difundem modelos de comportamentos coerentes sob a autoridade de instâncias habilitadas e reconhecidas ‒, Miller destaca o efeito de abalo do laço social para os seres falantes, sujeitos agora desarticulados e dispersos, que solicitam da Psicanálise uma resposta própria para esses tempos. O modo de viver junto está comprometido, e o psicanalista ‒ fora de qualquer Ideal preestabelecido ‒ tem que se haver com a passagem de um regime de gozo a outro, para cada sujeito, com "estilos de vida".
Se o artista, para além dos ideais, como diz Marie-Hélène Brousse, em L’objet d’art à l’époque de la fin du Beau, de 2009, "interpreta diretamente em meio ao objeto pulsional que circula entre os objetos comuns e anima o nosso mundo, nossos corpos, nossos estilos de vida e, portanto, nossos modos de gozo", o "banquete dos analistas" ‒ a formação dos psicanalistas em uma Escola ‒ também propõe um novo laço social a partir de uma adição de solidões, de gozos e sintomas singulares. Um banquete como o de Platão, no qual os analistas são convidados a – segundo a metáfora de Dante, no seu Convivium (termo latino que também indica a participação de pessoas em um banquete) ‒ comer o "pão dos anjos". Chama-se "pão dos Anjos" a comida em comum, o que alimenta e gratifica o espírito e o intelecto, e "convívio", a conversação em torno da mesa.
Espaços nem de silêncio nem de segregação, esses das cozinhas dos artistas ou dos analistas, no qual se ouvem muitas vozes, em sua singularidade. Experiências de gozos singulares, não de sentido ou de consumo, que se transmitem para os participantes como base possível do laço social, por meio de ressonâncias no corpo. "Quando o gozo é elevado à dignidade de Coisa", diz Miller, em "A salvação pelos dejetos", "ele é sublimado, ou seja, socializado". O que chamamos de “sublimação” efetua uma socialização do gozo, ou seja, uma integração ao laço social, ao circuito das trocas, a partir de uma cozinha única para cada um, mas sempre junto com os outros.
Ensaio produzido pela equipe editorial de DERIVAS ANALÍTICAS como efeito da provocação do tema desta edição. |