Apresentamos ao leitor a segunda edição de Derivas analíticas. Este número contempla, entre outras coisas, as saídas que a psicanálise, a literatura e a arte oferecem aos sujeitos traumatizados que somos.
Na seção Mathesis, que privilegia a dimensão epistêmica da Orientação Lacaniana, publicamos Traumatismo e sintoma em Lacan, texto do psicanalista francês Pierre Naveau, que visa compartilhar com os leitores de campos afins a renovação e a consequente atualidade da psicanálise. O texto, que se apoia em fragmentos clínicos bastante elucidativos, articula língua, traumatismo e interpretação. “A palavra que fere”, em torno da qual se concebe esse texto, é aquela que, ao afetar o corpo, confere destinos singulares ao que chamamos traumatismo. Afinal, como lembra o autor, quem procura uma análise sofre essencialmente das coisas que lhe foram ditas.
Barrocolúdio. Transa chin?, de Haroldo de Campos, republicado na seção Aquele texto… faz parte da história do campo freudiano no Brasil. O artigo do poeta é caleidoscópico, como não poderia deixar de ser. Ali, se evoca autores brasileiros que, segundo Haroldo de Campos, se inscrevem, por um “salto prospectivo voluntariamente extremo”, na tradição do Barroco Gongorino: Guimarães Rosa, pelas “circum-veredas metafísico-linguageiras” de O grande sertão, e Clarice Lispector, por seu idioleto amoroso “glíglico”. Na linhagem barroca, Haroldo de Campos inclui Jacques Lacan, que, conforme diz, reconjugou em sua escrita Gôngora e Mallarmé. A psicanálise lacaniana interessa aos poetas, pois, ao refutar o dogma saussuriano da linearidade da linguagem, Lacan propõe uma escuta polifônica e partitural da cadeia do discurso, modelada na poesia. Por fim, o escritor se dedica a Li Shang-in, poeta chinês do século IX, considerado por ele “poeta barroco”. Haroldo de Campos vê certas similitudes entre o Barroco – referido à arte e à literatura europeias do século XVII – e o século em que viveu o poeta chinês.
Na mesma seção publicamos a tradução do artigo de François Regnault Lição sobre um homem que se atreve a querer curar um outro, extraído do célebre diálogo da peça de Molière O doente imaginário. No texto, as palavras “medicina” e “médico” são substituídas por “análise” e “analista”. Segundo Regnault, inspirando-nos em Lacan, poderíamos querer dar razão a Molière, que fala através de Béralde: “Não conheço nada mais ridículo do que um homem que se atreve a querer curar um outro”. Mas é justamente porque nenhum homem pode curar outro homem que a psicanálise foi inventada. Estamos aqui no “teatro dentro do teatro”, e se psicanálise vem no lugar da medicina é porque nela se trata de um doente imaginário, aquele que uma catarse lúdica poderia curar.
A seção Você disse contemporâneo? traz uma entrevista concedida por Gilson Iannini e Pedro Heliodoro, respectivamente editor e tradutor de Freud. Em que medida se pode falar de uma “tradução contemporânea” de Freud? De uma tradução de Freud para o século XXI? Em suas argumentações, os entrevistados evocam aspectos incontornáveis de uma tradução que pretende estar à altura do leitor de hoje.
Em A escritura-troumatisme de Leila Danziger, Lucíola Freitas de Macêdo nos oferece um testemunho de seu encontro impactante com a obra estética e literária da artista carioca. Lucíola, que também é poeta, fala do modo como foi capturada pelo procedimento estético-literário de Leila, que, ao “se servir da palavra plasticamente e da imagem como escrita”, subverte os parâmetros tradicionais da apreensão da obra plástica, dando lugar a um encontro que sempre se renova sem perder sua singularidade.
Por fim, na mesma seção, publicamos o ensaio fotoliterário de Reginaldo Luiz Cardoso: Aventuras contemporâneas da subjetividade. Um texto de Adorno – Minima moralia – leva o autor a uma reflexão sobre a solidão, a cidade e o homem contemporâneo: até que ponto a cidade pode representar uma terra firme para nós, náufragos que somos de nós mesmos, estilhaços de muitas explosões? O apelo ao outro se configura aqui como um elo possível entre a dor, matéria bruta, e a sempre possível leitura de uma mensagem.
Na seção Sinopses, resenhas, etc. & tal Frederico Feu de Carvalho comenta o belo filme de Cao Guimarães e Marcelo Gomes O homem das multidões. No desenrolar das cenas, o filme revela o paradoxo do homem contemporâneo: um homem ao mesmo tempo conectado e separado do outro. Esse homem parece fazer corpo com a multidão que ele ao mesmo tempo conduz e pela qual é conduzido. Mas o filme também revela os pequenos gestos em que esse homem das multidões delas se destaca, o que expõe sua intimidade para além de seu anonimato.
Em sua resenha do livro Ella Sharpe lue par Lacan, Márcia Rosa destaca, por sua vez, que o interesse de Lacan pelo trabalho da psicanalista inglesa Ella Sharpe se tornou evidente com a publicação, em francês, de Le séminaire, livre VI: le désir et son interprétation. Segundo Márcia, Lacan destacou e apreciou em Ella Sharpe o valor que ela atribuía ao caráter significante das coisas: “Ela colocou o acento sobre a metáfora de um modo que não é absolutamente dissonante das coisas que eu vos explico”, diz ele. Para Lacan, Ella dará provas de seu saber quanto à convergência da letra com o inconsciente. Num ensaio que marca sua volta à literatura inglesa, depois de seu encontro com psicanálise, Sharpe tenta demonstrar que Hamlet é não uma tragédia da procrastinação, mas sobretudo a tragédia da impaciência relativa a um luto não realizado – o que levou Lacan a afirmar que as coisas ditas por Ella sobre Hamlet não seriam sem interesse.
Fechando este número de Derivas Analíticas, Ednei Soares comenta o livro de Gérard Wajcman L’Oeil absolu, destacando que o mundo atual pode ser concebido como um imenso campo do olhar: se antes tudo era escondido, hoje tudo se mostra. Indo além do rigor conceitual lacaniano sobre o olho e o olhar, Wajcman convoca, entre outros, Bob Dylan, Mick Jagger, Tom Waits, bem como J.-L Godard, Woddy Allen, Stanley Kubrick, Brian De Palma e Steven Spielberg. Todos tão bem situados na discussão quanto Jeremy Bentham e Walter Benjamin. Segundo Ednei, Wajcman parece propor uma nova circunscrição à opacidade. É assim que L’Oeil absolu reivindica o direito de esconder e, faz, ao mesmo tempo, o elogio da escuridão e da sombra.
Derivas analíticas agradece a todos os autores e artistas que colaboraram com esta edição, bem como aos colegas da equipe de publicação da EBP-MG pelo seu inestimável trabalho.
Boa leitura!
Yolanda Vilela