Revista Derivas Analíticas - Nº 21 - Agosto de 2024. ISSN:2526-2637
Encontros e desencontros - Lost in translation - Sofia Coppola[1]
Elisa Alvarenga
Psicanalista
Analista Membro da Escola (AME),
membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP)
e Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
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Agradeço a Cristiane Barreto pelo convite para comentar Encontros e desencontros, cujo cartaz já nos diz muito: um Bill Murray com sua expressão inimitável, de quimono e chinelos em um quarto de hotel em Tóquio, cujas luzes podemos ver ao fundo. Uma fascinante Tóquio que, no entanto, apenas entedia o personagem Bob Harris e entristece Charlotte – a charmosa e muito jovem Scarlett Johansson –, abandonada no mesmo hotel pelo marido fotógrafo de celebridades, a trabalho no Japão. Confinada à janela de um arranha-céu capaz de nos dar vertigens, ela se aborrece até encontrar Bob no bar do hotel, e alguma conexão se estabelece logo de início entre eles. Se a tradução para o português dá ênfase aos encontros e desencontros, no português de Portugal o título foi mantido, Lost in translation, e acrescido de O amor é um lugar estranho. Sobre esse amor falaremos mais adiante.
O nome do filme poderia se referir à dificuldade dos ocidentais de se fazerem compreender no Japão, mesmo quando acompanhados por tradutores. A Wikipédia nos informa que “lost in translation” é uma expressão americana que representa a parte cultural de palavras e frases que se perde quando é traduzida para outra língua, mesmo que a tradução seja feita corretamente. Mas, em Encontros e desencontros, o desencontro vai além daquele promovido pelas diferenças culturais entre o ocidente e o oriente, pois há também desencontro entre Charlotte e a amiga do marido, patética e deslumbrada na sua babaquice midiática. Ou entre Bob e a cantora do bar do hotel, com quem ele, deduzimos, passa a noite, sem nenhum envolvimento amoroso. Ao contrário, entre Bob e Charlotte há encontro, cumplicidade, humor. E há até ciúme e ressentimento, mas também promessa, se quisermos pensar isso a partir do cochicho que ele lhe faz ao ouvido ao despedir-se em meio ao burburinho da megalópole.
Sofia Coppola, que fez este filme em 2003, teria pedido o divórcio de Spike Jonze, diretor e roteirista de Ela, filme de 2013 em que Joaquin Phoenix encarna um solitário divorciado que se relaciona com um aplicativo de celular, cuja voz é nada mais nada menos do que aquela de Scarlett Johansson. Sofia e Spike teriam ficado casados por quatro anos, mas se conheciam desde 1992. Quando questionada sobre seu filme, a diretora admite que há elementos de experiências com Spike no filme, assim como elementos seus em todos os caracteres – o que normalmente podemos dizer dos personagens de nossos sonhos. Theodore, personagem do filme de Spike Jonze, guarda algumas semelhanças com seu diretor, pois se divorciou e não conseguia expressar seus sentimentos em relação à ex-mulher. Daí seu trabalho de escrever cartas de amor, assim como seu apego a Samantha, aplicativo de celular pelo qual se apaixona. No final do filme Ela, a carta que Theodore escreve à ex-mulher não poderia, especulam alguns, funcionar como um pedido de perdão à própria Sofia? Seu filme, dez anos depois do dela, também se serve de um cenário contemporâneo e futurista para falar das dificuldades de um encontro amoroso.
Sofia Coppola é perspicaz e sensível a alguns aspectos da cultura japonesa, ao ponto de se tornar, em alguns momentos, debochada: não apenas em relação ao Japão, mas também aos Estados Unidos e a um planeta globalizado e consumista. Charlotte, vagando entre duas mulheres ocidentais – a caricatural protagonista de um filme de ação e a sensual cantora do bar –, sofre com a solidão do seu casamento e se encanta pelo solitário Bob Harris, também desencantado com um casamento em que a superficialidade de sua mulher o faz sentir-se completamente supérfluo como pai e marido. Enquanto ela descobre, nos espaços do hotel e da cidade, alguns aspectos tradicionais do Japão (a milenar arte do Ikebana, com seus arranjos florais, um casamento em um templo possivelmente xintoísta, a meditação em um templo budista), ele enfrenta os produtores de um comercial de uísque, cujos cartazes o olham dos letreiros iluminados. Ou, ainda, um excêntrico apresentador de um programa de entrevistas. Juntos, Charlotte e Bob fogem do assédio dos produtores e dos amigos japoneses, para vagar, em longas horas de insônia, pela noite da metrópole em que tradição, ocidentalização e excesso convivem de maneira estranha.
A sutileza de Sofia Coppola é conhecida desde 1999, quando dirigiu As virgens suicidas, numa crítica sofisticada à sociedade norte-americana, a partir do romance homônimo de Jeffrey Eugenides. Cinco jovens irmãs se suicidarão, em série, ao não saberem como enfrentar a alienação do pai professor e a rigidez da mãe dona de casa, preocupados apenas em conter os desejos das filhas adolescentes. A beleza das meninas, encabeçada por Kirsten Dunst, muito jovem, o playboy que tira sua virgindade, a inocência dos meninos da vizinhança, encantados pelas cinco filhas do casal, são um retrato refinado das agruras da juventude dos anos 70, submetida às tradições.
A jovem diretora não se serve da grandiosidade das produções cinematográficas milionárias de seu pai, Francis Ford Coppola, que marcou os anos 70 com a trilogia O poderoso chefão e Apocalipse now, retratos de uma América violenta, às voltas com a máfia italiana e a Guerra do Vietnã. Nascida em 1971, Sofia Coppola recebeu o Oscar de melhor roteiro original por Encontros e desencontros em 2004, assim como vários outros prêmios. Fez, ainda, Maria Antonieta – sobre a rainha da França que morreu guilhotinada na Revolução Francesa (2006) –, Um lugar qualquer (2010), Bling Ring – A gangue de Hollywood (2013), O estranho que nós amamos (2017), A very Murray Christmas (2015) e On the rocks (2020), estes dois últimos também com Bill Murray. E, em 2023, será lançado Priscilla, um filme sobre a devastação amorosa vivida pela jovem Priscilla no casamento com Elvis Presley.
Ao contrário de um comentário de Encontros e desencontros que encontrei na internet, não penso que os encontros e desencontros entre Charlotte/Sofia e Bob/Bill poderiam ter se dado em qualquer lugar do mundo globalizado, pois a maneira como se dá o encontro entre os corpos no Japão é, creio, especialmente distinta desse encontro em outros lugares do mundo. Não sei se ela se daria da mesma forma em outros países orientais, pois me parece bem específica do Japão, onde as tradições e comportamentos codificados são bastante respeitados, creio, ainda hoje. Um exemplo pode ser verificado na série televisiva da Netflix Três dias que mudaram tudo, sobre a tragédia ocorrida na usina nuclear de Fukushima, em março de 2011, após um tsunami. Mesmo diante de um cenário de desespero e destruição, a dedicação ao trabalho, a responsabilidade e o espírito coletivo foram inabaláveis e permitiram que, no final das contas, pouquíssimas vidas fossem perdidas e gravemente afetadas pela radiação. Os comportamentos prescritos e a disciplina dos corpos, sob um ponto de vista mortificados, paradoxalmente permitiram que a vida fosse preservada.
Roland Barthes (2007, p. 18), em O império dos signos, que Lacan (1971/2003, p. 24) retoma como “império dos semblantes”, diz que no Japão o império dos significantes é tão vasto, excede a tal ponto a fala, que a troca dos signos é de uma riqueza, de uma mobilidade, de uma sutileza fascinantes, apesar da opacidade da língua, às vezes mesmo graças a essa opacidade. A razão, considera Barthes, é que lá o corpo existe, se abre, age, se dá sem histeria, sem narcisismo, mas segundo um puro projeto erótico, embora sutilmente discreto. Não é a voz, com a qual identificamos os direitos da pessoa que comunica a alma, a sinceridade, o prestígio, mas o corpo todo: os olhos, o sorriso, a mecha, o gesto, a roupa, que mantêm conosco uma espécie de balbucio, ao qual o perfeito domínio dos códigos tira todo caráter infantil. Marcar um encontro – o que podemos ver no filme – leva de fato tempo, mas passa uma mensagem que teria sido abolida num instante se tivesse sido falada, é o corpo do outro que é conhecido, degustado, recebido, e que desenvolve, sem verdadeira finalidade, sua própria narrativa. Bob Harris se mostra impaciente e escorregadio frente a todo esse gestual que o acolhe e recebe, ora com mesuras e presentes, ora com pedidos e exigências.
Ainda comentando o comportamento dos japoneses diante das máquinas caça-níqueis chamadas Pachinko, Barthes (2007, p. 42) diz que no Japão a sexualidade está no sexo, não em outra parte, enquanto nos Estados Unidos teríamos o contrário: o sexo está em toda parte, exceto na sexualidade. Procuro entender isso através do filme, na cena em que Charlotte e Bob saem à noite para encontrar amigos em uma casa noturna. Nesta, as mulheres dançam quase nuas excitando os fregueses japoneses, fascinados pelos corpos em posições pornográficas, enquanto os dois amigos escapam para a rua e a noite de Tóquio, sem no entanto estabelecer nenhum contato erótico. Eles terminam a noite de insônia dormindo na mesma cama de hotel, porém não se tocam. Um amor que nasce separado do sexo, já teria sido contagiado pela cultura local? Ou seria algo próprio à subjetividade de Charlotte e Bob, desencantados pelo casamento recente, para uma, e na meia-idade, para o outro?
Lembrei-me do documentário sobre a sexualidade dos japoneses, L'empire des sans, realizado em 2010 por Pierre Caule, sobre o fenômeno dos casais sem sexo no Japão. Ele mostra como o sexo é buscado pelos homens fora de casa, em vários tipos de casas para sexo onde se satisfazem, até mesmo acariciando gatos, enquanto as mulheres ficam deprimidas em casa. Toda outra coisa é L'empire des sens, O império dos sentidos, filme japonês dirigido por Nagisa Oshima, de 1976, comentado por Lacan (1975-76/2007, p. 122-123) em seu Seminário 23:
Fiquei embasbacado, porque se trata do erotismo feminino. Não esperava isso ao ir ver um filme japonês. Comecei então a compreender o poder das japonesas. [...] Nele o erotismo feminino foi levado ao extremo, e esse extremo é a fantasia, nem mais, nem menos, de matar o homem. Mas mesmo isso não basta. Depois de tê-lo matado vai-se mais longe.
A japonesa em questão, uma prostituta que se tornou amante do dono do bordel onde trabalhava, corta o pau do seu parceiro.
Lacan comenta que o homem faz amor com seu inconsciente ou com sua fantasia. Quanto ao que fantasia a mulher, se é isso que foi apresentado no filme, é alguma coisa que impede qualquer encontro.
Voltemos então aos encontros e desencontros entre Charlotte e Bob. Lacan (1972-73/1985, p. 197) dizia que todo amor se baseia numa certa relação entre dois saberes inconscientes. Isso quer dizer, entre outras coisas, que não sabemos muito bem porque amamos alguém. E o encontro, em meio aos desencontros, é o encontro, no parceiro, dos sintomas, dos afetos, daquilo que marca o exílio do ser falante da relação sexual (LACAN, 1972-73/1985, p. 198). A partir do momento em que falamos, não há fórmula ou receita para a relação entre os sexos, como há nos animais, que procuram o parceiro instintivamente, por um saber inscrito no corpo. O amor que nasce do encontro contingente entre dois exilados da relação entre os sexos, aqui Charlotte e Bob, é somente pelo afeto que resulta da solidão de um e outro que, por um instante, algo se encontra, que dá a ilusão de que alguma coisa se inscreve no destino de cada um. E da contingência do encontro passa-se à necessidade, necessidade que dure, que perdure: aí está o ponto de suspensão a que se agarra todo amor. A existência do inconsciente nos seres falantes constitui o destino e o drama do amor. O encontro de Charlotte e Bob os sacode, os tira da tristeza e do tédio, os vivifica: que destino darão eles ao que, desse encontro, se escreve na vida de cada um?
Referências
BARTHES, R. O império dos signos. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1972-73).
LACAN, J. Lituraterra. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 11-25. (Trabalho original publicado em 1971).
LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Tradução de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76).
[1] Este texto foi apresentado na Sessão de Cinema e Psicanálise, promovida pela Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas e o Cine Humberto Mauro, na cidade de Belo Horizonte, em 07/07/2023.