Entrevista com o coletivo de música experimental O Grivo
realizada por Carla Carvalho e Cristina Marcos, em 2018.
Segunda-feira, início de uma tarde de abril. Estamos em um dos tradicionais casarões do bairro Mangabeiras, em Belo Horizonte, onde funciona o estúdio d´O Grivo. A tranquilidade do lugar espalha aconchego. Uma ampla sala, onde repousam apenas instrumentos musicais já prontos para serem tocados, à semelhança de um palco, revela que aquele é um ambiente onde a música tem espaço privilegiado.
Uma conversa que prometia ser apenas musical tornou-se, em pouco tempo, cinematográfica, literária e filosófica, com reflexões sobre o exercício da criação de trilhas sonoras num mundo que vibra em ritmo cada vez mais ruidoso e veloz. Afine os ouvidos para um papo em tom de cumplicidade e cadenciado por sucessivas risadas com Marcos Moreira e Nelson Soares: artistas plásticos e músicos experimentais, cujas criações e ressonância das obras repercutem em diferentes esferas, como o cinema, a dança, a televisão e as artes plásticas.
Indicado para o Prêmio PIPA de arte contemporânea em 2010, O Grivo já teve trabalhos expostos em Nova York, Londres, Paris, MOMA São Francisco, além de Espanha, Alemanha e Portugal. Apesar do reconhecimento também internacional, os amigos e sintonizados parceiros de quatro décadas de trabalho ainda preservam uma simplicidade que faz barulho! Ouçamos com atenção.
Carla: Gostaria de fazer algumas perguntas que foram formuladas a partir de frases de pensadores, escritores, músicos e outros artistas falando sobre som e silêncio. A intenção é saber se o que elas dizem faz sentido ou não para vocês. Por exemplo: há uma máxima que diz: “Se você não entende o meu silêncio, não compreenderá as minhas palavras.” Isso se aplica ao tipo de música produzida por O Grivo?
Marcos: Eu sinto que, para que a coisa aconteça, tem que ter esse silêncio. E eu não estou falando que é o silêncio de não ter ninguém conversando, mas o silêncio da tensão. A partir desse silêncio... me parece que só é possível uma imersão diante desse silêncio espiritual para que a coisa signifique alguma coisa. Então, eu acho que sim, que a partir disso é que vai brotar alguma coisa que seria a palavra, mas não sei se esse texto está nesse contexto.
Carla: Aqui está “palavra”, mas, no universo de vocês, seria sonoridade. Tenho a impressão de que é necessária certa concentração para apreciar o som d´O Grivo: se a pessoa estiver muito distraída, não compreende a proposta. Você falou do brotar. Eu acho que a apreciação adequada brota do silêncio, o silêncio é que engendra.
Marcos: Isso. E a gente trabalha com a improvisação. Parece que ela tem mesmo que brotar, tem que surgir de um lugar. É claro que a performance musical também tem isso. Mas, na improvisação, você parte, às vezes, de coisas mais soltas. E parece que, para a coisa acontecer, é necessário que haja uma espécie de ritual, um ritual da improvisação! [risos] E só diante dessa magia é que a coisa realmente acontece. Esse silêncio é importante para que aconteça. Porque é de onde vai surgir tudo.
Carla: É isso, Nelson?
Nelson: Tem coisas diferentes. Há uma relação da música com quem está escutando: a plateia, a audiência. E tem outros contextos como aqueles em que as coisas são compostas para uma situação de concerto, considerando o silêncio, uma tensão. Por exemplo, os trabalhos instalados estão considerando todos os jeitos possíveis. Tem horas que as pessoas estão numa galeria de arte, o trabalho está lá exposto e as pessoas entram, assim...
Carla: Sem cerimônia?
Nelson: Não, sem escutar! Elas passam pelo trabalho, se encantam às vezes pela coisa visual e lá pelas tantas que vão perceber que tem ali uma proposta musical, talvez seja esse o contexto mais frequente. Porque tem essa história – e eu acho que é fato – que a gente escuta pouco, indiscutivelmente. A sensibilidade das pessoas para a coisa visual é muito mais fácil. Até mesmo para a gente, que não veio de uma geração que tinha YouTube, percebe quando está escutando música que é muito diferente você pegar para ouvir uma peça para orquestra e escutar já vendo as pessoas tocando. Então, tem a situação que você pressupõe um silêncio e tem outras que não. São variadas as formas. Outra coisa também é o nosso diálogo: a gente trabalha quase que 90% do tempo nessa questão de duas pessoas, é uma coisa dialógica. Aí, já entra uma outra história pois, quando a gente está tocando, pelo fato de ser improvisado, tem horas que eu proponho um diálogo e a resposta é o silêncio. Ou a resposta é uma coisa que eu não tinha perguntado. [risos] E isso vai criando uma narrativa que é muito difícil de prever. Então, às vezes, eu tento responder uma coisa achando que a pergunta era x, mas depois percebo que não, que aquela pergunta era y. Então, a gente vai criando uma forma que, ao invés de ser um fio narrativo, é confusa, é um emaranhando de jeitos. Algumas vezes, é um discurso que tem uma pergunta que não é respondida aqui, outra ali e só o contexto geral é que torna isso uma linguagem. E além dessas duas coisas, tem ainda a frase clássica do John Cage, que afirma que todo silêncio é grávido de som. Ele partia para uma coisa mais no limite entre a filosofia e a física, de que tem que ter silêncio para que alguma coisa vibre e produza som. Fiquei lembrando também que, num curso que a gente fez para dar aula de som para cinema, a Mônica Cerqueira [roteirista e gestora cultural] citou Shakespeare: “the rest is silence” [últimas palavras de Hamlet, na peça homônima do autor]. Eu sempre lembro disso porque moro com dois enteados: são dois barulhentos enteados. E eu, às vezes, tenho vontade de matá-los! [risos] Por isso, eu uso muito protetor de ouvido. Então, eu vivo muito com esse desejo do silêncio total. Tem horas que eu coloco, eu durmo com o protetor de ouvido e ainda ponho uma máscara. Daí, algumas vezes, minha mulher fala: “nossa, você vai morrer!” [gargalhadas] Então, acho que, nessas horas, tem um desejo pela situação do silêncio absoluto.
Marcos: A turma do educativo das exposições propõe esses exercícios do silêncio antes do início, pois recebem muita visita de escola com crianças e pessoas em geral. E quando tem esse educativo com a proposta de entrar com esse silêncio todo, aí vai para um outro lado também.
Nelson: A gente tem feito muita coisa também em espaços alternativos. O Canário [apelido pelo qual se refere ao Marcos] lida bem melhor do que eu com essa expectativa do silêncio. Eu fico muito irritado quando estou nessa situação que não tem atenção, eu tenho dificuldade. Conversando com os artistas da performance, vejo que eles têm uma liberdade muito grande em relação a essa questão. Mas se tiver um grupo muito grande lá que não está muito ligado, isso me incomoda.
Carla: Isso empobrece?
Nelson: Ah, não sei, tem uma coisa estranha. Já é uma posição muito estranha você estar tocando para outras pessoas, uma situação meio quase bobo da corte, e ainda tem essa interferência, é mais complexo. O Canário lida melhor, fala: “Ahh, deixa o povo conversar”. Eu não, tenho vontade de falar: “Presta atenção!” [risos]
Cristina: Você falou de como a imagem chama muito mais. E o mundo é muito barulhento hoje. Em todos os lugares que a gente entra, sempre tem uma música, um ambiente sonoro, uma caixa de som tocando alguma coisinha. Então, quando você fala dessa coisa de chamar para o silêncio, eu acho que é fundamental para uma experiência estética mesmo. Tem que ter. Porque, aí, você passa a escutar coisas que não escutaria se estivesse no meio do barulho, concordam?
Nelson: Eu acho que tem uma arrogância do mundo, hoje. As pessoas consideram muito pouco que tenham alguma coisa para ouvir. Acho que tanto do ponto de vista da palavra quanto do ponto de vista do som. As pessoas desconfiam que você tem alguma coisa a dizer, que mereça ser escutada. [risos] Eu tenho essa impressão.
Carla: A escritora chilena Isabel Allende disse que “a vida é puro abismo entre dois silêncios abismais: silêncio antes de nascer, silêncio após a morte.” Que tipo de silêncio havia antes de nascer O Grivo?
Marcos: Nelsinho, essa aí é para você. [risos] Antes do som d´O Grivo? Ah, o Grivo não é divisor de águas, já tinha tudo aí. A única coisa é o jeito muito da gente de fazer as coisas, talvez seja o mais importante.
Nelson: Mas não é uma coisa incomum, eu acho.
Marcos: Tem muita gente que faz esse tipo de música.
Cristina: Vocês se inserem numa tradição?
Nelson: Sim, com certeza. Aqui no Brasil tem coisa pra caramba!
Marcos: Ainda mais agora, tem aumentado cada vez mais. Muito menino novinho que mexe com música eletrônica, que vai para esse lado de descobrir sons em vários lugares.
Carla: Sobre essa coisa de tirar sons sublimes de objetos cotidianos, mundanos...
Cristina: Precários, né?
Carla: Sim, e também inesperados! Eu não acredito que vocês olhem para o objeto e pensem: olha, vai dar um som legal! Então, minha pergunta é: vocês acham que extrair essa sonoridade desses objetos seria elevar ao sagrado a musicalidade ordinária do cotidiano? Porque está ali, mas vocês têm todo o cuidado de pegar esse objeto e tirar dele um timbre, é um trabalho sublime. Então, acho que tem algo de divino nisso, no sentido de tirar do uso comum e elevar a coisa a um outro patamar.
Marcos: É a intenção. Descobrir o som e fazer da melhor maneira possível para que realmente ele se torne, em vez de ser um som qualquer, ele se torne um som divino.
Carla: Que já estava lá, né? Você vai lá descobrir.
Marcos: A gente tem todo o cuidado ali de descobrir a intensidade certinha, pois tem que ser assim: nessa intensidade, desse jeito. Aí, a gente vai adquirindo um repertório desses sons que a gente elegeu no meio dessa profusão. Mas nem sempre funciona.
Carla: Mas o bom é isso! Se funcionasse sempre, vocês já teriam parado, não ia ter graça! [risos] Bem, tem uma frase do Aldous Huxley que diz: “Depois do silêncio, o que mais se aproxima de exprimir o inexprimível é a música.” As obras d´O Grivo parecem ter essa proposta de captar o som do ínfimo, do nada, do vazio. Partem do silêncio que engendra, como foi dito no início da conversa. É isso mesmo que passa na cabeça de vocês ou acontece absolutamente sem querer? Vocês buscam dar uma consistência para esse imponderável que é o silêncio que está no objeto? Há toda uma elaboração para conseguir extrair aquele som ou é acaso?
Marcos: Não, é um trabalho mesmo, tem essa busca. A gente fica trabalhando um monte até sair uma coisa que a gente ache digna. Mas é um trabalho muito da prática mesmo.
Nelson: E tem uma coisa que não é falsa modéstia nem autodestruição, mas acho que é muito frequente a gente estar fazendo alguma coisa e ter uma referência externa. Por exemplo, um cara fez tal coisa que a gente gostou muito, daí a gente pensa: será que a gente consegue traduzir isso de alguma maneira? Então, o trabalho da gente passa por outros caminhos diferentes desse dos sons dos objetos cotidianos. Tem hora que a gente está tentando fazer uma coisa orquestral; tem hora que a gente está tentando fazer uma coisa que é rítmica; outras vezes, algo mais melódico. E o engraçado é que eu tenho a impressão de que a gente erra muito para achar essas coisas. Às vezes, você está tentando fazer uma coisa, mas a solução que surge é outra. Um exemplo: a gente retomou uma coisa das antigas, de ser instrumentista, pois eu estudava bateria, o Canário tocava guitarra e fomos tentar fazer isso de novo. Aí, a gente faz, faz, faz – no caso, estávamos tentando fazer alguma coisa mais a ver com jazz para um curador que tinha pedido. Mas, no meio dessa busca de deixar mais solto, que é o caminho que a gente costuma trabalhar, a gente acaba achando coisas que são de outra natureza, como os sons dos objetos. É engraçado como isso soa fácil, como que, de cara, isso sai na linguagem. Então, acho que é por causa do foco nisso. Se a gente está procurando uma coisa, ficamos ali, trabalhando pra caramba. Mas, às vezes, a gente tropeça nas coisas.
Carla: E é mais gostoso quando tropeçam?
Nelson: Para mim, o mais gostoso é quando você escuta e acha bom. Aí, não interessa muito se deu trabalho ou não.
Carla: Voltando o foco para o cinema, uma frase atribuída a Fellini diz: “Se quisermos compreender alguma coisa, precisamos nos dedicar ao silêncio.” E lembrando das cenas de um filme do Cao Guimarães, chamado Ver é uma fábula, cuja trilha sonora vocês fizeram, parece realmente que, ali, ela cumpre essa função de facilitar a compreensão. Vocês acham que o som pode ajudar a ver melhor as coisas?
Nelson: Eu pensei numa coisa, não sei se é por aí. Mas tem um negócio que é muito poderoso: existe uma determinada sequência e quando você faz uma música para ela, você provoca uma transformação que é gigantesca: para o bem ou para o mal. Então, acontece muito que, quando você faz mal, parece que você não conseguiu entender o que estava acontecendo ali. Como se aquela sequência pedisse alguma coisa que não é para eu inventar: é para eu obedecer. Tanto eu quanto o diretor que fez ela. Por outro lado, quando funciona, quando eu vejo e acho que funcionou, dá uma sensação de que não é muito meu. Que, na verdade, eu só respondi uma coisa que tinha que ser respondida corretamente e que, se eu respondesse errado, ia ferrar tudo. [risos] Causa um ruído pavoroso!
Marcos: Mas você tem que levar em consideração que tem várias respostas possíveis.
Nelson: É, mas tem uma. Às vezes, você até experimenta várias e chega na resposta que você conseguiu dar. Aí, você transforma ela um pouquinho para ver se é essa mesmo, e, na verdade, ela vai te calibrando, sabe? Você vai vendo e diz: não, é menos.
Marcos: Eu acho que quando a gente consegue ter essa força, ter um fio em uma certa imagem, e o que está sendo produzido sonoramente entra numa certa ressonância com o que está sendo visto, parece que a força alimenta de um lado e do outro. Tudo faz sentido. Tanto que muita coisa que a gente faz de trilha sonora e escuta depois, sem nada, não tem tanta graça. Mas naquele outro contexto, em que se fez vibrar essa ressonância, parece que alimenta tanto do lado do som quanto do lado da imagem. E tudo já cresce numa coesão.
Carla: Quando vocês escolheram este nome – O Grivo –, já era uma busca por uma palavra que representasse a proposta de som experimental? Porque é um nome muito diferente. Ou a escolha foi só porque vocês gostam da sonoridade?
Nelson: Ah, foi meio que na obrigação.
Marcos: Foi no susto!
Cristina: Mas não tem uma referência ao personagem do Guimarães Rosa?
Marcos: Não teve tempo de ter! Eu só fui ler Grande sertão: veredas depois. Acho que só tinha lido “O burrinho pedrês” e, mesmo assim, pulando. [gargalhadas]
Nelson: A gente tinha lido outras coisas dele. Mas o que significava grivo, quem era, qual a história, a gente não sabia nada. Foi uma grande surpresa. Era uma época de primeiro contato com esses caras. A gente tinha o quê, quantos anos? Sei lá. Era uma época do Rogério, um professor nosso, um cara que apresentou a gente para um tanto de coisa legal e que falava: assistam ao filme do Herzog [cineasta alemão]. Eu lembro que a gente ia assistir Coração de cristal [filme de Herzog, de 1976], mas você gostava mais por uma obrigação, um desejo de ver algum sentido naquilo do que por aquilo bater mesmo e fazer um sentido. Mesma coisa com a literatura, mesma coisa com a música. Eu lembro de comprar discos referenciais, de coisas que eu hoje adoro e dizer: pelo amor de Deus, o que é isso aqui? [risos] E só alguns anos depois a gente foi amadurecer. Então, O Grivo tem um pouquinho desse erro de tempo. Mas era louco, fico abismado com o desejo e a paciência de enfrentar essa selva, era uma selva! Ficava assistindo esse negócio um milhão de vezes!
Marcos: Mas a gente gostava, Nelsinho!
Nelson: Eu gostava, mas, assim...
Marcos: A gente viajava em qualquer bobagem! Uma neblina passando na montanha, a gente dizia: nóoo... [risos]
Nelson: Lembra do “As ruínas circulares” [conto de Jorge Luís Borges]? Era um universo muito doido. Mas tinha um encantamento, claro, eu ficava encantado.
Carla: A coisa, às vezes, tem que ficar um tempo sedimentada para depois ser ressignificada. Você via, estava lá já gostando, mas sem nenhum apuro ainda.
Cristina: Tinha o desejo.
Nelson: É, tinha o desejo. E também um esforço. [risos] Quantos concertos na minha vida eu assisti observando a luz batendo no bloco de partitura e rezando para aquilo acabar!
Marcos: Sim, tinha uns concertos na escola que eram meio chatos.
Nelson: A gente foi bravo! Bravos guerreiros, estudantes, sobreviventes! [risos]
Cristina: Mas vocês acharam outra coisa depois disso, um outro jeito.
Marcos: A gente achou esse caminho das artes plásticas.
Nelson: A gente sempre ficou meio polarizado nesse início de carreira. E teve uma história muito engraçada: tinha um pessoal que adorava música francesa, Pierre Boulez [compositor e maestro], uma composição superorganizada, tudo pingos nos is completamente. Mas que era uma interpretação meio rasa disso. Porque se você escuta Pierre Boulez hoje, é pingo nos is, mas o cara tem uma liberdade gigantesca! Mas a gente não entendia muito isso. De alguma forma, a gente começou a dialogar com esses caras, a gente tentou dar uma organizada, uma forçada no material da gente e até compôs umas coisas, tentou ir por esse caminho. E aí, teve um festival de inverno e veio o Paulo Alves, que era um cara da organização, superpianista! E esse cara já transitava num nível altíssimo na Europa, nessa época. Então, a gente tocou para ele essas coisas que estávamos organizando, essa tentativa de fazer uma coisa mais ordenada. Aí, ele escutou. E, depois, a gente tocou uma coisa nossa mais antiga, que era totalmente livre. E ele falou assim: “Eu não estou acreditando que vocês estão perdendo o tempo de vocês fazendo essas coisas que me mostraram antes! Vocês têm que ir por esse caminho, vocês estão loucos?” [risos] Isso foi muito importante! A partir daí, a gente voltou a fechar os ouvidos para essas influências tão diretivas e tentou achar um caminho que era mais nosso. Eu também estudava bateria com um cara que era completamente louco: o Laércio, que foi uma influência importante. Ele era um baterista louco, era tão maluco que não aguentou a pancadaria, meio que se exilou. Mas esse cara era assim: faz você, faz a sua onda!
Cristina: Vai no seu caminho!
Nelson: É, no seu rumo.
Carla: Bem, eu tenho uma questão relacionada ao fato de nós sermos trabalhados pelo próprio ofício. Essa dedicação aos sons experimentais, ao longo de tanto tempo, deve ter trazido mudanças na maneira de vocês perceberem o ritmo e a melodia do mundo, talvez exigindo maior atenção à aparente quietude das coisas. Há um trecho da música Cálice, do Chico Buarque, que fala: “Esse silêncio todo me atordoa / Atordoado eu permaneço atento.” De que forma a escuta característica d´O Grivo, ao mesmo tempo contemplativa e participativa, transformou vocês?
Marcos: Eu vejo uma coisa que parece ser meio circular. Para mim, é o estado de contemplação, de uma determinada concentração, que torna possível você descobrir as coisas, entrar em sintonia com essa procura. Tem que ter certa calma, aí a gente volta àquela coisa do silêncio e tal. Mas pode acontecer de estar acontecendo aquele som procurado e você nem escutar porque está atribulado. Por isso, quando estou fazendo aquelas trilhas todas, às vezes eu paro, volto, descanso, dou uma caminhadinha que seja e volto, porque é esse estado que vai fazer as coisas funcionarem. É aí que você vai perceber, vai curtir mesmo o que você está fazendo, não pode ser uma coisa mecânica. Eu, pelo menos, caio muito nesse mecânico, nesse piloto automático que vai fazendo: pode até sair, mas depois não sei do resultado final. Então, para mim, o mais importante é ter esse estado de espírito, essa calma, para realmente curtir o momento de estar lá, descobrindo um som aqui, um som ali e manipulando esses instrumentos todos.
Nelson: Eu fiquei tentando lembrar quando é que começou essa coisa de prestar atenção nas coisas. Fico pensando no Laércio porque sempre achei que ele me deu um caminho inaugural. Tenho uma recordação nítida de estar esperando por ele na avenida Getúlio Vargas e lembro que ele chegou atrasado. Ele entrou dentro do carro, estava chovendo, e ele me fez prestar atenção numa coisa sonora: os carros passando. Fiquei com essa memória guardada. Depois, fiquei pensando numa coisa anterior: que eu sempre gostei muito, muito, muito de ficar sozinho. E que isso não significava silêncio. Porque eu tenho uma coisa de ter que lutar frequentemente para parar o diálogo interior de pensamento. Lembro também que eu, ainda criança, subia no cavalo sozinho e parava num lugar da fazenda que tinha uma lagoa. E ficava ali, prestando atenção nas coisas. Então, penso que tem uma coisa meio inata de ficar prestando atenção no que é auditivo, e até meio estratégica para parar o diálogo interno. Não sei se teve aí um desenvolvimento dessa acuidade, se você treina esse sentido para ele para ficar mais sofisticado. Porque a coisa musical, com certeza, você treina! Hoje, eu tenho muito mais facilidade para escutar uma peça musical do que antes. Eu escuto e tem camadas e camadas e camadas de reconhecimento, de relação entre as coisas que, obviamente, eu não tinha, há cinco anos, e foi se desenvolvendo. Mas, para esse que talvez seja o material de trabalho da gente, pelo menos o mais antigo – porque, hoje, a gente faz muita coisa que tem um pé na história mais tradicional de ritmo, de melodia, até de harmonia, mesmo com todo o meu desconhecimento delas, do ponto de vista acadêmico –, parece que essa coisa não é treinável. É como se ela fosse mais afetiva do que cultural.
Carla: Estou achando interessante que, para o Marcos, é uma postura. Uma pausa a ser buscada para não permitir que o som esteja acontecendo e você não esteja vendo. Então, se não estiver imbuído dessa postura, você não consegue fazer o trabalho?
Marcos: Hum, hum.
Carla: E, para o Nelson, juntando as memórias de uma infância bem remota, a palavra parece ser desejo, que você chegou a falar antes. As coisas já estavam lá, mas você tinha que parar e desejar prestar atenção. No final das contas, mesmo com palavras diferentes, a sensação é de que essa parceria de vocês é plim: mágica!
[Campainha toca, chega Roberto Freitas, artista plástico e parceiro d´O Grivo em alguns trabalhos.]
Roberto: Tem uma coisa que é incrível quando se vê os dois tocando, que é um estado de presença: adoro essa definição. É muito engraçado, pois eu estou lá, tocando junto, sou tipo um café-com-leite no meio de dois bruxos tocando. E aí, estão os dois procurando alguma coisa, ficam perdidos de um lado, perdidos de outro e, de repente, rola um estado de presença que, às vezes, me engloba também, me leva junto – mais me leva junto do que eu provoco. É uma conexão em que tem um desaparecimento de qualquer racionalidade, uma outra coisa acontece. E é bonito demais! De fora, nem sempre dá para perceber esses momentos em que essa coisa acontece, é algo maravilhoso! É quase inexplicável mesmo, acontece alguma coisa, é muito bonito. Logo depois, isso se perde, dura muito pouco. Daí, fica aquele embate para chegar nesse lugar de novo. Esse lugar se repete algumas vezes durante o concerto, são momentos em que tem um brilho ali. Não é necessariamente um momento em que a música está mais interessante. Mas tem uma outra coisa que acontece ali, que é muito mais interessante do que a música, que é muito mais interessante do que a arte, que é um outro lugar, é muito bonito. Depois, eles voltam para o comum e só pensam em cerveja! [gargalhadas] Voltam a ser dois cidadãos normais, cheios de desejo, de necessidade e vontade. Mas tem uma coisa muito espiritual na busca dos dois pela arte, é bem interessante. Talvez por isso o caminho do improviso, esse caminho que, quando você define o que você quer – e cada vez mais O Grivo tá indo para esse lugar – mais longe você fica desse outro lugar a que só é possível chegar fora dessa definição, fora do desejo de querer alcançar isso ou aquilo, enquanto experiência musical para o outro e para mim. É nesse lugar do escape, que escapa do que é intangível, que alguma coisa maravilhosa acontece. Engraçado que, cada vez mais, nos últimos concertos, eles vêm tirando os roteiros, tirando todas as estruturas, o que aumenta ainda mais a possibilidade para que esse tipo de coisa aconteça, esse momento que estou chamando de estado de presença, mas que poderia ser outra coisa. É muito bonito e muito raro no trabalho de arte, porque a gente quer resultado, a gente vive no mundo do pragmatismo. Se os dois fizessem a outra coisa certinha, possivelmente eles estavam ricos pelo talento! [risos]
Nelson: Tem um negócio bem bonito do Nelson Freire. Vocês lembram do documentário dele?
Cristina: Lembro.
Nelson: Ele toca o concerto inteiro e diz que tem um momento de alegria – ele fala de momento de alegria – em que está tocando e a coisa toma ele, você lembra disso? Aí, ele lembra do pianista de jazz, que eu não lembro mais quem é. Ele acha que, se não tiver esse momento, ele pode tocar a coisa mais perfeita do mundo, mais linda do mundo, mas não valeu a pena. E se tiver um momentinho desse, aí valeu tudo.
Cristina: É, eu lembro dele falando isso, exatamente. O músico de jazz como uma coisa assim...
Nelson: Como se ele fosse isso, antes de qualquer coisa.
Cristina: É o ápice da felicidade esse improviso, essa coisa, como se a música tomasse o músico.
Marcos: Tem um poema do Drummond, “A máquina do mundo”, que é muito famoso, em que o personagem está andando num fim de tarde e ouve o sino da igreja, lá longe. Então, naquele instante, ele entra em sintonia com o mundo, com essa máquina do mundo. Aí, num instante depois, já passou!
Carla: Isso tudo me fez lembrar de uma frase do Lacan: “Sou onde não penso, penso onde não sou.” Esses momentos que o Roberto chama de estado de presença, essa conexão, essa sintonia com o todo, acho que é um momento de ser, que não tem nada a ver com racional, com o que se estava buscando. São mais como tropeços, a coisa, de repente, pá... acontece!
Cristina: E não tem pensamento, né?
Nelson: Pai de santo! [risos]
Carla: E as instalações, que vocês chamam de engenhocas: as pessoas interagem com elas?
Nelson: Na verdade, não tem isso. As engenhocas interagem com o computador.
Marcos: Independe de quem está lá. No funcionamento das engenhocas, a gente é mais pautado por uma estruturação musical, de não estar tudo o tempo todo tocando, de ter um momento aqui, outro momento ali, algumas vezes, com processos randômicos para não ficar repetindo sempre igual. Mas independe de quem chega ou sai, é uma estrutura da peça mesmo.
Nelson: Mas a tentativa é deixar a coisa toda mais humana. Porque as respostas que a gente consegue nas instalações são muito básicas. Então, a gente fica tentando colocar elementos de acaso. Por exemplo: às vezes, para não cair numa coisa técnica, em vez de ter uma resposta sempre que acontece determinada ação, a gente cria um tanto de respostas possíveis, por meio de um sistema lá dentro do computador que vai escolher uma delas. Então, a gente vai deixando um pouco mais humano. E o programa tem esse nome mesmo: Humanize. Tentamos tirar um pouco da resposta dura demais do computador, mas sempre é um problema, do ponto de vista musical. Afinal, a resposta é, evidentemente, muito mais limitada do que quando a gente está tocando, mesmo que seja tocando com elas. Por isso, buscamos mais as propostas em que estejamos tocando com alguma máquina porque, aí, cria um diálogo que ela fica mais “humanize”. [risos]
Carla: Vocês, quando estão tocando, não conseguem nunca fazer outra vez igual?
Nelson: Não.
Marcos: A gente tenta tocar como se fosse a máquina e a gente tenta que a máquina toque como se fosse a gente.
Carla: É simples, muito simples essa busca! [risos]
Nelson: Porque tem várias peças em que é muito fácil cair numa coisa, como se diz quando a pessoa fala demais?
Cristina: Verborrágica.
Nelson: Verborrágica! Então, é muito fácil: tanto do ponto de vista da quantidade de palavras quanto do ponto de vista – não sei como vai soar isso para vocês – de psicologizar, de ser superromântico ou superfrio ou superduro, uma coisa meio clichê. Então, a gente tenta minimizar, tentar que as respostas sejam mais sóbrias: se estamos exagerando em um lado, então vamos...
Marcos: Ser mais cirúrgicos.
Nelson: Mais cirúrgicos, mais contidos, mais sóbrios, buscar uma concisão da linguagem, responder menos. É um pouco isso que a gente tenta: nos tornar menos máquinas.
Carla: Minha última questão tem a ver com a parcimônia, a economia nos sons para destacar aquilo que é importante. Isso lembra a ética do bem-dizer, que está no cerne do discurso psicanalítico. Então, pergunto: apurar o barulho ensurdecedor da vida e reduzi-lo ao seu mínimo – não o mínimo da quantidade, mas talvez da essência –, seria uma maneira correta de descrever o trabalho que fazem? Essa economia, essa poda dos excessos ajuda a colocar em harmonia a musicalidade de cada coisa?
Marcos: De certa forma, sim, como uma coisa a se perseguir. Agora, as coisas não são absolutamente tão rígidas; às vezes, tem que fazer o contrário disso tudo. Mas como uma coisa a se conseguir, antes de começar, entendeu?
Carla: Antes de começar?
Marcos: É, como um ponto a se atingir. Mas até lá, você vai se guiar pelo quê? Por nada? Pode acontecer tudo? Alguma coisa para te orientar, no sentido do fazer. Aí, eu acho que tem tudo a ver isso que você falou. Sendo que, algumas vezes, tem que fazer o contrário para que se realce isso, entendeu? Fazer o oposto para que isso se torne evidente. Mais ou menos isso.
Nelson: Quando você explica que essencial não significa poucas, abre um tanto de campo. Tipo assim: o John Cage, um compositor referência – eu ia falar que é o compositor que eu mais gosto, mas não sei mais se é isso; há alguns anos, responderia imediatamente que sim, mas tem um tempo que não escuto –, é um cara que compõe cada coisa tão diferente uma da outra que parece não ser possível que seja o mesmo cara: coisas para orquestras gigantescas; coisas para solistas; coisas absolutamente sagradas, minimalistas e zen-budistas; coisas absolutamente mundanas, perturbadas e loucas. É um cara do multifacetamento. O estranho é que, se uma pessoa quisesse isso de propósito – tipo: vou fazer uma peça o mais diferente que conseguir da outra –, eu duvido que a pessoa conseguiria ter o nível de excelência que ele tem. Tenho a impressão, posso estar redondamente enganado, que é da natureza dele essa diversidade. Tanto que ele escreve maravilhosamente bem, pinta e não é qualquer coisa, embora eu não conheça tão bem esse lado do trabalho dele.
Marcos: É maravilhoso!
Nelson: E ainda tem o trabalho de músico, que é sensacional!
Marcos: As partituras.
Cristina: As partituras são lindas!
Nelson: Ele tem essa coisa. Então, eu fiquei tentando imaginar a obra do John Cage pela sua pergunta e me pareceu conflitante. E fiquei pensando em mim também, que gosto imensamente de copiar. Exemplos: eu estava na Alemanha, tocando não sei o quê e vi lá uns meninos da Itália que me deu uma vontade imensa de fazer igual a eles. Outro dia, fui assistir Blade Runner no cinema e a trilha eletrônica é demais, eu fiquei com vontade de fazer aquilo! Como o trabalho com cinema é constante, tem tantos filmes que a gente acaba tendo espaço para experimentar isso tudo. Dá para fazer até uma coisa malucaça, que nem a música dos meninos italianos. [risos] Então, por um lado, a minha vontade é de ser conduzido por desejos diferentes e conflitantes. Por outro lado, depois que você começa a conhecer um pouco da obra do John Cage e, de repente, escuta algo que nunca escutou, você acha estranho e pergunta: será que é John Cage? Você vai ver e é John Cage! Então, no meio da loucura toda e de coisas absolutamente diferentes, você sabe que é ele. Ou seja, tem alguma essência que permanece no meio dessa coisa completamente diversa. Agora, voltando em uma coisa mais afetiva e primordial do que cultural, treinada e educada, acho que se eu fizer um monte de coisas diferentes, vai ter algo que é dessa...
Carla: Uma repetição?
Cristina: Esse traço seu?
Nelson: Querendo ou não, intencional ou não, talvez seja isso que vai ficando. Independente de buscar, meio sem querer.
Carla: Então, vai sendo apurado?
Nelson: É.
Carla: Quando se fala em essência, para vocês, do campo sonoro, fica sempre parecendo tirar, reduzir. Mas como você ilustrou, às vezes, é pelo excesso que se chega ao mínimo, pelo contraste.
Nelson: Sim. Até porque tem trajetórias que são assim: o cara fica a vida inteira batendo na mesma tecla e é altíssimo nível!
Marcos: Fica a mesma coisa, parece que é sempre a mesma música.
Nelson: Teve uma época em que a tradição era não ter tradição, era não ter escola. Mas essa época começou um pouco tardiamente para a gente. As escolas de música acadêmica eram muito da tradição da França, e a gente já estava em outra, não fazia mais sentido. Então, a gente não seguiu esse lado da academia.
Carla: Ainda bem! Pois isso permitiu a vocês abrir caminhos para chegar onde hoje vocês estão. Senão, ia ficar uma frustração imensa ou, com certeza, ia ser bem mais trabalhoso. [risos]
Cristina: Vocês foram achando um caminho.
Carla: Sons inesquecíveis para cada um, vocês conseguem listar? Não precisa ser música. Que marcou e ficou na memória afetiva, talvez.
Marcos: A gente fez som direto para cinema. E o Cao Guimarães, que é um parceiro nosso, filmava nessa época com Super-8, uma câmera que faz barulho. Então, quando ele saía para coletar imagens com 16 mm em Super-8, a gente combinava assim: você vai para um lado, eu vou para o outro. E esses passeios pelas cidades ou pelas fazendas para coletar material eram muito interessantes. Eu lembro que, em Pai Pedro [município mineiro], aconteceu uma cena que deixou registrada em minha memória um som incrível: um cavalo chegou de longe e estava relinchando porque um matuto estava judiando dele. Esses passeios proporcionam momentos incríveis e qualquer bobagem: uma menina cantando lá longe, você subindo um morro que nunca andou na vida ou entrando numa ruazinha e gravando as crianças brincando ali, tudo é uma experiência bem bacana. E tem ainda os passeios para coletar material sem gravador, sem nada. Mas tem que sair sozinho. Não pode ter outra pessoa, senão começa a conversar e ferrou. [risos] Eu saí para passear lá, subi o morro, dei a volta lá por baixo...
Cristina: E nesses trajetos tiveram outros sons inesquecíveis?
Marcos: Sim. Como são trajetos silenciosos, qualquer barulhinho... Tinha uns sapos-martelo certa vez, foi no período de Carnaval. É incrível o barulho dos sapos, incrível!
Nelson: Como é?
Marcos: Top, top [imitando com a boca o coaxar]: parece uma gota d’água, é louco! Começa um aqui, outro ali e, de repente, tem um pertinho de você! Se você fica quieto, os barulhos começam. [risos]