Revista Derivas Analíticas - Nº 21 - Agosto de 2024. ISSN:2526-2637
Entrevista com Angelina Harari
sobre o lançamento
do Seminário 14
Virgínia Carvalho: No texto “A tradução de Lacan”, de 2009, publicado em Arquivos de Biblioteca, você questiona a ilegibilidade de Lacan, ensinando-nos que “podemos torná-lo legível ao colocarmos algo nosso, algo de si próprio, um grão de sal”, a partir do estilo de cada um, que se refere à relação com o inconsciente. Você indica também que “ler Lacan ou traduzi-lo é tarefa de quem pretende transmitir a psicanálise, pois isto não se coloca somente para os tradutores de Lacan, mas sim para qualquer leitor, até mesmo para os francófonos, pois para ler Lacan é preciso visar a relação com o próprio inconsciente” (HARARI, 2009, p. 24). Nesse sentido, você inclui a importância do trabalho de revisão das traduções e a necessidade de sempre atualizar as edições dos Seminários. No referido texto, também indica que “as letras francesas favorecem a genialidade de Lacan” (HARARI, 2009, p. 27). Você poderia nos contar um pouco mais sobre o desafio de se encarregar das publicações de Lacan em português, imprimindo seu estilo nesse precioso trabalho que você tem realizado há tantos anos?
Angelina Harari: Perfeito! Eu começaria apontando a primeira referência que vocês fazem na pergunta, que seria uma referência à “ilegibilidade” de Lacan. Vendo sob esse prisma, pareceria que eu endosso essa tese da ilegibilidade. Na verdade, eu tomo isso que é muitas vezes atribuído a Lacan para me opor a essa ideia da “ilegibilidade”, algo que é postulado por críticos a Lacan, ao estilo de Lacan e ao ensino de Lacan, porque, na verdade, na contracapa dos Outros Escritos, lemos que um escrito é “A-NÃO-SE-LER”. Então, ele mesmo se contrapõe à ideia da “ilegibilidade”. Eu tomo a “ilegibilidade” para mostrar a importância do trabalho da tradução. Esse era o contexto daquele texto, que foi uma apresentação na Aliança Francesa, organizado pela eminente colega da EBP do Rio de Janeiro Mirta Zbrum e que contava com a participação do Manuel Barros da Motta, alguém que também trabalhou muito nas publicações, no Campo Freudiano, no Brasil. Faço-lhe, aqui, uma homenagem, porque ele já não está mais entre nós.
No contexto daquela fala, eu tomei a “ilegibilidade” para falar, no fundo, do que é ler Lacan. Nesse sentido, a tradução é uma das propostas, como se fosse um recurso necessário para que os leitores de língua portuguesa possam ler Lacan. E ler, sim, implica colocar algo de si, porque é na leitura que você vai encontrando os obstáculos para poder fazer sua leitura, para que a sua leitura aconteça. Ler Lacan sem colocar algo de si é exatamente o discurso universitário. Não é uma crítica que eu faço ao discurso universitário, é a forma como Lacan propôs o discurso universitário. É preciso tomar cuidado para que, estando na universidade, não se perca o que seria ler Lacan no discurso universitário, que é o que temos que evitar, até na universidade.
Isso mostra, inclusive, um panorama, se tivéssemos que pensar numa investigação de como anda, por exemplo, a psicanálise nas universidades. Então, ler Lacan implica, sim, colocar algo de si. Nesse texto que vocês resgataram, digo que a questão da leitura não é apenas para os leitores em português. Ler Lacan é uma questão, vamos dizer, da Associação Mundial de Psicanálise, porque todos têm este mesmo objetivo: “como ler Lacan?”. Nesse sentido, entram todas as línguas, as cinco línguas da Associação Mundial de Psicanálise. Nesse texto, sustento que é assim até para os franceses.
A tradução implica em ler Lacan. Não dá para traduzir sem fazer sua leitura própria, porque, caso contrário, tanto na tradução, na produção do livro, quanto na transmissão da psicanálise, o que vai acontecer é uma repetição de frases de Lacan. Então, ler Lacan significa poder incluir nessa leitura o contexto e, em se tratando de Lacan, é difícil sabermos à primeira vista qual é o contexto.
A frase é irônica? De quem ele está falando naquela frase? Ele está produzindo o ensino dele e muitas vezes nós não temos ideia de com quem é que ele está falando naquela frase, mas ele está citando. Ler Lacan então implica sabermos o contexto, as referências, e é nesse sentido que implica a todos, não importa a língua. Então, eu vejo a questão da tradução muito articulada com ler Lacan. Por isso me pareceu que a pergunta de vocês é muito preciosa: porque vocês falam da tradução, mas também incluem o ler Lacan.
Virgínia Carvalho: Quinze anos depois desse texto “A tradução de Lacan”, haveria algo de novo nessa experiência, levando em conta as transformações do mundo de lá para cá?
Angelina Harari: Sobre a mudança no contexto, não gostaria de me perder com muitos resgates históricos. Se formos datar o início desse trabalho na minha experiência, eu traria dois episódios. Um foi uma tentativa fracassada de traduzir o Seminário 4. Na época, eu me dei conta, numa conversa com o Jorge Zahar, de que, realmente, o nosso trabalho como analistas, como praticantes, não nos permitia uma dedicação à tradução do jeito que seria necessário para a confecção de um livro. Então, eu desisti da empreitada e fiquei responsável pela revisão. Alguém da confiança da Editora Zahar fez a tradução e, no Campo Freudiano, no caso do Seminário 4, eu fiz a revisão conceitual, para ver se estava dentro da lógica da orientação lacaniana.
Um ano depois, em 1995, fui incluída como responsável (assistente executiva na Zahar e assistência brasileira na Contra Capa) pela Coleção Campo Freudiano no Brasil, que é uma coleção na qual estão os Seminários de Lacan, seus Escritos, os Outros Escritos, livros de Jacques-Alain Miller e outros do Campo Freudiano. Atualmente, a coisa está mais centrada em Lacan e Jacques-Alain Miller. Então, eu comecei aí. Em 1995, houve a fundação da Escola. O meu primeiro projeto foi a publicação dos Escritos. Da edição brasileira dos Escritos, só tínhamos até então uma tradução reduzida, da editora Perspectiva, uma tradução que deixava a desejar. E havia uma questão dentro da EBP, nessa época em que ela se centrava no múltiplo, para fazer essa tradução. Existia, antes da fundação da Escola, a Comissão do Campo Freudiano no Brasil, que era constituída por grupos: cada cidade tinha um grupo e um líder. Bom, vocês bem podem imaginar que não funcionou. Cada um tinha um pedaço, queria ser um pedaço, queria fazer uma patente, enfim, não ia pra frente. Então, eu aproveitei minha experiência no Seminário 4 e propus que uma tradutora da confiança da editora fizesse a tradução, o grosso, e colegas designados da EBP fariam a “revisão técnica” – é assim que se chamava na época. Isso porque eu estava imbuída da entrevista com o Jorge Zahar, em que ele dizia que não era possível, ao mesmo tempo, se dedicar à prática e à tradução. Durante muito tempo eu pensei assim e só um Seminário de Lacan escapou dessa lógica. Foi o Seminário 23, traduzido por Sérgio Laia. Com as dificuldades encontradas, vimos que o Jorge Zahar tinha razão e não tinha.
Então, essa é a diferença do que acontece atualmente. Os Escritos foram publicados em 1998, 32 anos após a publicação na França. Seguimos essa lógica de um só tradutor que faria o arcabouço do livro e dois colegas na revisão. A revisão conceitual significava realmente a leitura de Lacan dentro da orientação lacaniana. Eu diria que o que há de novo é que mudou a leitura de Lacan. Em 1995, realmente a prática tomava muito do tempo de cada um, porque era uma Escola recém-fundada e, portanto, os membros estavam em formação. Naquela época, dizia-se que éramos uma Escola de analisantes, para fazer a diferença com a Escola de analistas. A diferença é que, atualmente, a EBP é uma Escola de analistas. Nesse sentido, a leitura de Lacan está mais avançada e isso permitiu entender que a prática não se opõe à tradução, graças também à fusão entre a Zahar e a Companhia das Letras.
Atualmente, no Seminário 14, mas também nos Primeiros Escritos, que vão sair junto com o Seminário 14, os colegas da EBP fizeram a tradução e eu fiz a revisão. Então, isso mudou. Eu acho que essa mudança é a mudança que ocorreu na Escola, que ocorreu com a leitura de Lacan e que tem seus efeitos no trabalho de tradução. Acho que tem a ver com a formação dos analistas a partir da Escola, que muda muito em relação à época dos grupos. Por isso é importante, em cada momento da Escola, verificar como anda essa questão dos grupos que prejudicam a lógica do Um por Um. De vez em quando, a gente tem que colocar um termômetro e medir.
Vinícius Lima: Eu fiquei com uma questão que eu queria convidar você, Angelina, a desdobrar, sobre o que foi dito a respeito da “ilegibilidade”. Lacan se contrapõe à crítica que ele sofre, mas, ao mesmo tempo, quando você destaca essa questão dos escritos “A-NÃO-SE-LER”, dá a entender que tem uma diferença dessa proposta do próprio Lacan em relação à crítica que ele sofre.
Angelina Harari: Sim, na leitura de Lacan, é necessário e vital buscar o contexto. E como é que a gente encontra esse contexto? Diferentemente do discurso universitário, que implica a procura na literatura, de um modo geral, a busca pela primeira coisa que foi escrita sobre a questão da “ilegibilidade”, até atualmente. Para nós, a busca do contexto tem a ver com o que Lacan chamou de seus alunos, ou seja, das pessoas que ele formou, que faziam análise com ele e estavam no público quando ele transmitia, da posição de analisante, posição a partir da qual se pode ensinar.
Lacan é muito claro em 1976, em “Lacan a favor de Vincennes”, quando diz que a psicanálise não é matéria de ensino. Então, cada praticante, cada analista, busca uma forma de ensinar a psicanálise, apesar de ela não ser matéria de ensino. Já começamos com esse paradoxo. Então, como buscar o contexto? Através dos alunos e pessoas que participaram, que escutaram Lacan. Não foram só os analisantes dele, mas também os analisantes estavam lá. Lembro a vocês que, diferentemente da Associação Internacional de Psicanálise (IPA), Lacan abriu a possibilidade de ser escutado pelos seus analisantes. Na minha experiência, é aí que se dá o encontro com o curso da Orientação Lacaniana, porque aqui no Brasil poucos foram os que se encontraram com Lacan vivo. Como eu não faço parte desses poucos, a minha leitura de Lacan passa, essencialmente, por Jacques-Alain Miller.
Por quê? Hoje em dia, eu vejo que o fato de estabelecer o texto de Lacan deu a ele, e ainda dá, uma visão privilegiada do que Lacan produziu. Miller, na sua forma de transmissão da psicanálise, é um autor que nos dá as referências. Eu acho que tem a ver com sua dedicação ao estabelecimento do texto. Quem mais poderia nos fornecer o número da página do Seminário na qual Lacan disse isso ou aquilo? Então, é um trabalho importante para quem quer ler Lacan, colocando algo de si, esse comentário pelo qual Miller nos leva a uma certa página.
Jacques-Alain Miller é tão essencial para mim que eu costumo dizer Lacan-Miller. Esse Lacan-Miller, inclusive, esteve em uma pergunta que eu fiz para o Jacques-Alain Miller no lançamento do seu livro que se chama Polêmica política, da editora Gredos de Barcelona, com seus textos políticos publicados na Espanha. Miller facilita, na minha leitura, essa busca do contexto. .
Isso não quer dizer que outros alunos de Lacan não contribuam muito para lê-lo. Mas não é dessa forma, porque mesmo que façam elaborações em que cada um traz esse algo de si, mostrando-nos o contexto de onde vêm suas elaborações, eles não nos dão o acesso. Eu me lembro muito bem, quando estava buscando uma formação na França, que busquei várias pessoas, não só na ECF. Algumas delas faziam elaborações muito interessantes, mas de impossível acesso. Elas não nos abrem o acesso a Lacan. São elaborações interessantes que a gente pode incluir em nossa leitura, mas não servem para buscar o contexto em que Lacan disse aquela frase. Eu queria, digamos, trazer essas precisões, que é um termo meio galicístico, mas que às vezes a gente pode usar também, sem abusar.
Estou tentando responder a sua pergunta, que não é simples. Tem Lacan, que diz para não se ler, e tem Jacques Alain-Miller, que diz que Lacan é quem mais críticas tem sobre o que ele próprio diz. Então, Lacan se coloca tão crítico ao que ele diz, ao que ele disse e ao ensino que ele deu, que ninguém mais consegue criticá-lo depois disso.
Então, é para não se ler, e ele já nos apresenta isso para tornar inútil a crítica da ilegibilidade. Como assim? Eu tenho que ser legível? Não, eu escrevo para não se ler. Jacques-Alain Miller nos diz que esse “para não se ler” tem que se entender e, Lacan mesmo o diz, que são necessários dez anos. Miller nos mostra essa referência. O que são dez anos? Para mim, é o tempo de uma formação mínima. Quer dizer, o tempo mínimo de uma análise para um praticante.
De 1995, quando, a partir da Escola, eu comecei a me interessar e a ser responsável pela questão da confecção dos livros da Coleção Campo Freudiano no Brasil, ao momento atual, já se passaram 30 anos da EBP. Essa é a diferença, a formação dos membros. Isso permite que a oposição entre prática e tradução, que foi importante naquela época, atualmente seja menos, porque avançou a leitura de Lacan.
Mas nós sabemos muito bem que somos nossos algozes, não é? Sabemos disso, e aí se coloca a questão do fantasma.
Virgínia Carvalho: Aproveitando o tema do fantasma, o próximo Seminário de Lacan a ser publicado em português é o livro 14, La logique du fantasme. Sabemos que esse termo "fantasme" tem diferentes possibilidades de tradução em português. Alguns preferem se servir da palavra “fantasma” para separar as fantasias cotidianas e o fantasma fundamental. Outros acreditam que a melhor tradução seria a de "fantasia", já que as diversas fantasias imaginárias das quais o neurótico se serve obedecem a uma mesma lógica, que se encontra reduzida na fantasia fundamental. Você poderia nos revelar qual será a escolha para essa tradução e nos explicar um pouco mais sobre ela?
Angelina Harari: Sim, hoje podemos dizer que estamos às vésperas do lançamento do Seminário 14 em português.
Quanto à escolha do termo, eu diria que escolhemos – estou falando também em nome da tradutora, que é a Teresinha Meirelles do Prado – o termo “fantasma”. Três argumentos a favor.
Primeiro, uma questão histórica. Quando Lacan foi introduzido no Brasil, via universidade usava-se o termo "fantasma" , porque, nos primórdios, pouca tradução existia. Aqui em São Paulo tinha o Luís Carlos Nogueira, na Universidade de São Paulo. Lacan entrou pela universidade e usava-se o termo “fantasma”, mas sem muito texto traduzido, e muito menos publicado. Por sua vez, a lógica da constituição da Escola Brasileira de Psicanálise foi: Comissão Brasileira do Campo Freudiano e seus grupos; Iniciativa Escola e a Escola. Nessa época da Comissão, o texto de Lacan começou a ser publicado. Houve uma discussão dentro da Comissão de que deveríamos usar o termo “fantasia”. Havia o argumento de que “fantasma” tinha uma acepção de assombração em português, o que iria contra a ideia do fantasma para Lacan, pois o termo “fantasme” não tem essa acepção em francês. Então, entendeu-se que “fantasia” seria, vamos dizer, “colocar algo de si” na tradução em português. Mas isso foi introduzido de uma forma muito autoritária. De repente, não podíamos mais falar “fantasma” em português, e havia uma espécie de terrorismo. Eu digo isso porque estou incluída nisso também, não falo como alguém que está denunciando. Não, eu estava incluída nesse “vamos respeitar a língua portuguesa!”. Então, entrou de uma forma hegemônica em relação ao que cada um poderia escolher. O primeiro argumento para essa tradução, portanto, é o de que agora, depois de tanto tempo, usarmos “fantasma” quebra a ditadura, digamos assim, do termo “fantasia”. Por que, depois de tanto tempo, e estando a palavra “fantasia” em todas as publicações, a gente introduz “fantasma”? A ideia é essa de quebrar a ditadura, ou seja, deixar que cada um use da forma que quiser, porque estará colocando “algo de si”, confiando que estará colocando algo de si. Então, a ideia é dar uma certa liberdade, porque sempre vamos ter que usar “fantasia” quando nos referimos aos Escritos, aos Outros Escritos, a todos os Seminários de Lacan publicados até agora. Com o Seminário 14, com o termo “fantasma”, vamos poder diversificar um pouco mais e, principalmente, sair dessa ditadura, digamos assim, que estabelece um termo, que tem que ser esse e não outro. Isso me leva ao segundo argumento e, depois, ao terceiro.
O segundo argumento é o advento da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). Estamos em comunicação com outros colegas de outras Escolas. Estamos, eu digo, os membros brasileiros. E o termo “fantasia” realmente produz muito mal-entendido, muita confusão, porque, embora muito poucos falem português e entendam português na AMP, os termos “fantasia” e “fantasma” são conhecidos em todas as línguas. Então, quando você apresenta um trabalho, numa jornada clínica da AMP junto com outros colegas, quando você diz “fantasia”, eles entendem “fantaisie” e não “fantasme”. Tanto é que, muitas vezes, a gente tem que dizer “fantasia fundamental”. Quando a gente diz “fantasma”, não necessariamente. O termo “fantasma” não se confunde, como quando usávamos “fantasia” para fazer diferença com os devaneios, ou, como traduziram na Editora Imago, por “sonhos diurnos”. O termo “fantasia” leva os colegas da AMP a acharem que estamos falando dos devaneios. Assim, o segundo argumento tem a ver com a comunicação, com o diálogo para além dos muros da sua Escola. Há uma entrada dos membros, dos praticantes da Associação Mundial de Psicanálise (na tradução) e parece-me que isso favorece as trocas entre pessoas de diferentes línguas. A AMP, diferentemente da IPA, respeitou as línguas de cada Escola e a cultura de cada lugar, implicando uma dificuldade a mais. A IPA escolhe o inglês para suas trocas, dentro dos congressos.
Terceiro argumento. Vou citar um trecho do número 88 da Opção Lacaniana, de abril de 2024, que tem dois textos sobre o fantasma, publicados originalmente no número 114 da La Cause du Désir. Um dos textos é uma compilação de algumas falas de Jacques-Alain Miller, depois da publicação do Seminário 14. E o segundo é uma conferência que ele deu sobre “O sintoma e o fantasma”. O trecho que citarei é da “Proposição sobre a lógica do fantasma”. . Vou citar um trecho que me parece elucidar bem o argumento do porquê do fantasma. Por que essa escolha? Uma das proposições dele é a seguinte: "De maneira esquemática, digamos que o fantasma tem um triplo estatuto. Primeiro, o fantasma como devaneio. Assim como Os devaneios do caminhante solitário [ele está fazendo uma citação], trata-se de devaneios que são feitos de modo solitário, conscientemente, manejando esses devaneios ao seu gosto." (MILLER, 2024, p. 22-23).
Então, esse é o primeiro estatuto do fantasma. Por sua vez, “O segundo sentido é mais delicado: trata-se do fantasma como um meio de gozo – solitário, aqui também. É, digamos, a imagem, o pensamento, a frase, o cenário que suscita e acompanha a masturbação – a experiência é conhecida de todos” (MILLER, 2024, p. 23).
Por fim, “O terceiro sentido é o mais complexo. O fantasma inconsciente, o fantasma dito fundamental, dá seu enquadre a toda a vida mental do sujeito e se descobre no decorrer do tratamento” (MILLER, 2024, p. 23).
Esses três sentidos do fantasma – o primeiro como devaneio, o segundo como meio de gozo e o terceiro como inconsciente – justificam, para mim, a utilização do termo “fantasma” em português para falar do fantasma inconsciente. Quer dizer, o inconsciente vai prevalecer sobre a ideia da assombração. Então, “fantasma” em português é o fantasma inconsciente, porque estamos falando da psicanálise. E isso nos permitirá nomear os devaneios como “fantasias”. E vamos nos juntar com as outras línguas, por exemplo, como a francesa, que designa “fantaisie” para “fantasia” e “fantasme” para “fantasma”. Tradução é traição. Quer dizer, nunca vamos achar um termo que recubra 100%, mas vamos nos aproximando, fazendo um esforço de conceituação, de leitura de Lacan. Eu acho que essa escolha tem a ver também, como na primeira pergunta, com a leitura que fazemos dele, a partir do estabelecimento do texto A lógica do fantasma, e que foi lançado em janeiro de 2023.
Virgínia Carvalho: Achei interessante essa ideia de um uso democrático nessa tradução, porque não apaga a possibilidade do uso da palavra “fantasia”.
Angelina Harari: Ou “fantasmas”, porque realmente depende do momento, depende do contexto, depende se você está falando num Congresso, se está dando uma aula no Instituto ou se está fazendo uma fala numa atividade de uma Seção – são diferentes possibilidades. Eu gostei do uso democrático. Eu acho que é isso mesmo, é abrir e não fechar. Não é vir com um “não, a partir de agora é fantasma”. Eu acho que vai liberar e respeitar, digamos, o momento. Se alguém falava “fantasma”, logo diziam “é porque quer copiar os argentinos”. Tinha uma série de tititi, não respeitando o que a pessoa quer dizer naquele contexto. Mas tem gente que realmente faz sua formação em Buenos Aires, na Argentina. Eu já expliquei porque eu sempre fiz e sigo muito referenciada com a França. Porque tem a ver com essa escolha que eu fiz em relação a ler Lacan, Lacan-Miller. É um percurso mesmo. Não se pode aplicar o mesmo percurso a todos.
Virgínia Carvalho: Ao ser questionado, numa entrevista a Fréderique Roussel (“Hoy, sin Lacan, es uma calma chica”), sobre a razão pela qual escolheu publicar o Seminário 14 neste momento, Miller afirma que esse Seminário responde à atualidade das questões sobre o final de análise e o passe. Como você vê a atualidade do Seminário 14 no Brasil, neste momento, inclusive no que concerne às nossas discussões sobre o passe e o fim de análise?
Angelina Harari: Achei realmente as perguntas muito pertinentes. Agora, essa é capciosa, porque ela nos leva a refletirmos um pouco sobre o momento do lançamento de cada Seminário, o momento em que Jacques Alain-Miller define que é esse que será publicado e não aquele. Numa atividade de Biblioteca da ECF, em que quatro pessoas foram chamadas para falar sobre o Seminário O ato psicanalítico, lançado este ano em fevereiro, falaram que os Seminários são lançados para além da AMP. Eu acho que sim e que não. Prefiro pensar no porquê eles são lançados, nesse momento, para a AMP. Há os temas da atualidade, ok! Mas, tem os temas da atualidade dentro da AMP. E parece-me que essa foi a razão de Jacques-Alain Miller responder que tem a ver com o passe lançar A lógica do fantasma neste momento. Para mim, a resposta dele mostra que o lançamento de um Seminário responde à atualidade na AMP, quer dizer, tem a ver com a formação do analista, tem a ver com a pergunta sobre “o que é um analista?”, e não com uma resposta ao discurso do mestre contemporâneo.
Jacques-Alain Miller tem mostrado, cada vez mais, que o interesse e as questões de atualidade são sobre nossos temas. Quer dizer, os temas do Campo Freudiano. Como isso será usado para responder às questões do discurso do mestre na contemporaneidade vai depender de uma elaboração. Então, é secundário. Lógico que temos que nos colocar nos espaços públicos e isso tem mais a ver com Zadig, esse recurso que agora temos, desde 2017 e, em Salvador, haverá nosso oitavo fórum. Não é que não nos interessemos pelas questões da atualidade, mas para poder responder a isso, você precisa entender a qual atualidade na AMP isso responde. Então, assegurados nessa questão, a gente abre.
Em relação à AMP, Jacques-Alain Miller responde ao que vocês me perguntam e ele diz: “refere-se ao passe”. De fato, se formos ver datas e o que acontecia durante o estabelecimento do texto, esse Seminário foi lançado em 2023, respondendo à crise do passe na ECF, ao “Encontro com o passe”, que aconteceu em 2022. Temos um texto muito bom, “Oito pontuações sobre o passe”, que está na Opção Lacaniana, em que Jacques-Alain Miller retoma toda a discussão sobre o passe. Foi em uma atividade só para os membros da AMP, mas esse texto se encontra agora publicado nessa revista. Ele o escreve depois de todo um dia de discussão sobre a questão do passe e os seus disfuncionamentos. Cada Escola que tem um dispositivo do passe apresentou um disfuncionamento e isso fez parte de um dossiê que foi enviado a todos os membros e participantes inscritos no Congresso. Eu queria chamar a atenção de vocês para esse ponto. Os dois eventos maiores da AMP são reservados aos membros inscritos no Congresso, não aos membros da AMP. Por quê? Porque, se você é membro, realmente não se justifica não participar do evento da AMP aberto ao público, evento que mostra a cara da AMP. O Congresso é aberto. O “Encontro marcado com o passe” e a “Grande conversação da Escola Una” são eventos reservados aos membros.
Assim, a ECF estava em pleno Colégio do Passe, que se concluiu em outubro de 2022, e A lógica do fantasma sai em janeiro de 2023. Então, realmente tem a ver com o que estava acontecendo dentro da AMP. Como isso servirá para sairmos fora dos muros da AMP e das Escolas, depende dessa cocção interna. O ano passado, como a edição brasileira não havia saído, eu me dei conta de que não tínhamos trabalhado ainda o Seminário 14 nas Seções. Eu propus para a diretoria e conselho da EBP-SP que o trabalhássemos, e estamos fazendo isso.
Há, ainda, outro aspecto sobre o Seminário 14. Pela primeira vez quando ele foi lançado, Jacques-Alain Miller anunciou o próximo Seminário, o 15, O ato psicanalítico, que seria lançado no ano seguinte. Pela primeira vez, anunciou isso porque é sempre uma escolha dele, exatamente para responder às questões de atualidade da AMP. Geralmente, não se sabe, ninguém sabe, somente quando o livro vai para a editora. Então, parece-me que esse elemento também tem que ser levado em conta.
No lançamento do Seminário 14 tem as questões do passe, mas também o fato de que esse Seminário 14 responde ao Seminário 15. Assim, não é à toa que o Seminário 15 surge em fevereiro de 2024, quando o tema da AMP para o próximo Congresso é escolhido por um aforismo que, dentre os aforismos, é o mais radical de Lacan, e no qual a questão do ato psicanalítico é absolutamente imprescindível: “não há relação sexual”.
Em português, o Seminário sobre A lógica do fantasma será lançado junto com os Primeiros Escritos, que são os textos mais psiquiátricos do Lacan. A “Apresentação de pacientes” é um texto bem importante para quem está se iniciando no tema da psicose e para se chegar naquele sobre a psicose ordinária. Para quem está tentando se introduzir em Schreber, a partir do Seminário 3, os Primeiros Escritos são bem interessantes.
Ainda para responder à pergunta sobre a escolha do Seminário 14, eu gostaria de trazer um trecho do livro Como terminam as análises, de Jacques-Alain Miller. Trata-se de uma coletânea que traz textos sobre o passe de antes da fundação da ECF até 2002. A prática do passe suscitou muita polêmica na Escola Freudiana de Paris. Nesse livro, na “Liminar”, Jacques-Alain Miller dá uma ideia de como foi essa polêmica. Na época de Lacan, você só sabia que o AE era nomeado porque saía no anuário. Era muito discreto, muito silencioso. E o AE era um título para a vida toda. Jacques-Alain Miller diz nessa “Liminar” que, depois do advento da AMP, a Escola da Causa praticou o passe. Com algumas mudanças. Em vez de um júri fechado em torno de Lacan, dois cartéis do passe. Em vez de só aparecer no anuário, foi dado um prazo, uma transitoriedade ao exercício do AE: três anos. A partir do advento da AMP, introduziram-se os testemunhos. Quer dizer, que o AE deveria dar testemunho e, durante três anos, se apresentar em torno do que era o final de análise dele. Então, quanto ao Seminário 14, ele foi lançado num contexto determinado que é o do passe, da crise do passe na ECF, e que depois se estendeu não como crise, mas através da reunião dos Colégios do Passe em outras Escolas. Não se instituiu uma crise, mas, sim, uma reformulação a partir da reformulação feita na ECF: "Recentemente, a orientação do passe que prevalecera na Escola foi abandonada. Foi abandonada, não em benefício da prática da fala que foi a de Lacan. Mas "foi abandonada sob a influência do que chamei de último ensino de Lacan, abordado em meu curso de psicanálise, depois de eu ter por muito tempo adiado, pois eu previa seus efeitos desestruturantes." (MILLER, 2023, p. 22).
Então, aqui ele nos diz que a crise do passe da ECF obedece à influência do último ensino de Lacan e seus “efeitos desestruturantes”. Quer dizer, como os “efeitos desestruturantes” do último ensino de Lacan chegaram até o passe, que foi exatamente naquela Jornada em que eu estava e na qual inclusive presidi uma sequência. Eram 8 AE. E aí se viu os “efeitos desestruturantes” do último ensino nas nomeações desses AE. Por isso, aqui na EBP, eu repeti muito, ao longo da crise da ECF, que a gente quer ficar com o último ensino e abandonar todo o anterior, esquecendo-nos de que é Lacan quem critica a si mesmo. Ele o faz de uma forma desestruturante, mas isso não nos deve levar à imitação dele, como ele diz com humor: “não me imitem”.
Vinícius Lima: Será que você pode aprofundar um pouco nisso, Angelina? Nesse “efeito desestruturante” que esse último ensino provoca?
Angelina Harari: Bom, um deles é esse que eu já falei que foram as últimas nomeações na ECF. Na medida em que tomava apenas um aspecto, digamos, da análise. Você não tinha que percorrer a análise do começo ao fim. Isso fazia com que fossem nomeados em função de um único aspecto, em detrimento de outros aspectos fundamentais da análise. A influência desses efeitos do último ensino levou-nos à investigação sobre os números. Entre a demanda de passe e a nomeação, a proporção atingiu níveis absurdos. Constatou-se uma nomeação que parecia mais respeitar a um imperativo de massa, em detrimento da lógica do final de análise que encerra um percurso. Também houve o fato de a pessoa se reapresentar mais de uma vez ao passe... Perdia-se todo o lado da tiquê do passe. Só se faz o passe uma vez. Isso não quer dizer apenas que a entrada no dispositivo vai ficar mais difícil. Quando você podia fazer o passe várias vezes, podia fazer uma primeira vez para testar. Tem gente que queria fazer o passe para ver se o analista dele realmente estava em boa posição e assim, faziam, vamos dizer, perdendo o lado da aposta, de um momento definido. A não nomeação não significa que se contesta o final da análise da pessoa. Significa apenas que você participou da experiência e pode ter sido uma contingência que não permitiu a sua nomeação. E só isso. Não é uma sentença, é uma circunstância.
Se a pessoa se reapresentava ao passe, é porque ela tinha uma convicção dela. Ok que ela tenha uma convicção dela, mas impor a convicção dela para todos... não pode ser! É importante respeitar a contingência, um dia de Cartel em que não se estivesse de bom humor... lá sei eu? Tudo é possível, tudo entra. Não respeitar essa contingência, é também querer controlar a nomeação. Então, houve efeitos deletérios também nesse sentido. De um controle, de uma necessidade de nomeação que não existe. Lacan disse que o passe não é para todos.
Mas os “efeitos desestruturantes” do último ensino, isso é algo que a gente vê inclusive na Escola mesmo. Eu acho que se entende responder ao discurso do mestre na contemporaneidade como submeter-se ao discurso do mestre na contemporaneidade. Por isso que é importante primeiro a gente trabalhar dentro da AMP, elaborar a partir do estabelecimento do texto, do que é a lógica. Aliás, eu aprendi muito com A lógica do fantasma para entender que Lacan não fala da lógica do fantasma no Seminário 14. Na verdade, ele é só o prenúncio para O ato psicanalítico. Ele falou sobre a lógica do fantasma no Seminário 6, O desejo e sua interpretação. E há um texto do Jacques-Alain Miller muito bom, que se chama “Uma Introdução ao Seminário 6”. Eu o recomendo porque, ali nesse texto, que está na Opção Lacaniana 68/69, ele diz que há uma primeira versão da lógica do fantasma, que é a versão do Seminário 6, e que, depois, tem uma outra versão, que ele chama de “a verdadeira”, que é a do Seminário 14. Nesse texto, ele apresenta a primeira versão, na qual Lacan fala da lógica do fantasma no Seminário 6, e dá página por página o percurso que ele, Jacques-Alain Miller, faz para dizer por que ser trata de uma primeira versão. Como eu estive revisando a tradução, percebi que, na verdade, o que mudou entre a primeira versão, que é o Seminário 6, e a versão do Seminário 14 foi o status do objeto a. O objeto a passa de imaginário à consistência lógica. O objeto a traz em si, incorporado o objeto à consistência lógica, a questão do corte. Então, essa é a mudança em relação a A lógica do fantasma.
Mas Lacan não fala isso. É por isso que é tão difícil e por isso que todo mundo quebra a cabeça. Jacques-Alain Miller não fala da lógica do fantasma no Seminário 14. É o Seminário mais difícil de traduzir, por causa disso. Lacan não entra no tema e fica nas elaborações. Você vê que ele está cozinhando, digamos assim, O ato psicanalítico. Então, por causa disso mesmo, é bem difícil esse Seminário, sua tradução. Uma colega francesa, a quem perguntei sobre um termo da contracapa, me disse: “coragem aí nessa reta final porque é um negócio que não é fácil”. Eu acho que o Seminário 15 será mais fácil!
Então, tem a questão dos efeitos desestruturantes, porque as pessoas abandonam o que se coloca desde o início e acham que precisamos falar de coisas muito contemporâneas. O último ensino de Lacan é um empuxo ao contemporâneo. Mas está errado entender que o contemporâneo é o discurso do mestre. O contemporâneo é o discurso analítico em todas as voltas que ele tem que dar. É isso.
Virgínia Carvalho: Essa palavra coragem é interessante porque é um exercício de coragem mesmo, traduzir e se encarregar da tradução do Lacan aqui. Isso é muito precioso, considerar que a tradução é um ato de leitura e uma leitura que não pode ser separada da própria formação e de nossa posição na Escola de Lacan. Outro ponto que achei muito interessante também é o de que tanto a tradução, quanto a formação e a própria Escola são vivas, estão sempre em movimento.
Angelina Harari: Exatamente.
Virgínia Carvalho: Então, eu acho que isso foi muito bacana e corajoso. Quero agradecê-la muitíssimo.
Vinícius Lima: Eu queria lhe agradecer também, Angelina. Para mim foi uma experiência muito bonita, agradeço-a pela oportunidade.
Angelina Harari: A melhor forma da gente se conhecer é esta: trabalhando. Nas perguntas é que aparece a sua transferência de trabalho com a Escola e é isso que nos une, uma transferência de trabalho forte. Eu relembro a vocês uma definição de transferência de trabalho, trazida por Jacques-Alain Miller nesse evento da Polêmica política. Ele disse que o que Lacan transmitiu para ele foi o amor ao trabalho. É assim que ele entende a transferência de trabalho. Você pode transmitir de um para outro o amor ao trabalho. E, no meu caso, o amor à leitura de Lacan, para traduzir.
Referências
HARARI, A. A tradução de Lacan. Arquivos de Biblioteca, n. 6, dez. 2009.
MILLER, J-A. Proposição sobre a lógica do fantasma. Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 88, p. 22-31, abr. 2024.
MILLER, J.-A. Como terminam as análises: paradoxos do passe. Tradução de Vera Avelar Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2023.