Revista Derivas Analíticas - Nº 21 - Agosto de 2024. ISSN:2526-2637
Entrevista com Caetano W. Galindo
Por Daniela Viola, Ludmilla Feres Faria,
Raquel Guimarães, Sérgio Laia e Virgínia Carvalho
Derivas Analíticas: Gostaríamos de agradecer sua disponibilidade em responder às nossas questões e contribuir com esse número da Revista Derivas Analíticas. Diga-nos também, por favor, como você gostaria de ser apresentado.
Caetano W. Galindo: Upa. Eu que agradeço pelo convite!
Apresentado? Caetano W. Galindo é professor da UFPR, tradutor e escritor.
Derivas Analíticas: Em seu Latim em pó, vemos que o português falado no Brasil é como um mosaico, com várias versões diferentes na mesma língua e sem um centro nítido. Os trechos a seguir indicam bem essa dimensão:
Todas aquelas pessoas que um dia ergueram as vozes que nos deram o “céu” (indo-europeu) “azul”(persa), que nos desejaram “axé”(fon), que nos moldaram o “barro”(ibérico) ou um “carro” (celta) de “boi”(latim), aquelas que por “azar”(árabe) atravessaram “guerras” (germânico), as mães que nos fizeram “pipoca” (tupi) e zelaram por nossos “cochilos”(banto). (GALINDO, 2023, p. 210)
E migrantes do mundo inteiro que vieram e virão com palavras, sangue, suor e novas e com novas maneiras de alterar, para sempre, essa floração estranhíssima (como todas) do indo-europeu que acabou florescendo em terras tupiniquins e daí quis perfumar o mundo. (GALINDO, 2023, p. 210)
Lembrando que o título desse livro é extraído da música Língua, em que Caetano Veloso se pergunta sobre “O que pode essa língua?”, gostaríamos que nos dissesse um pouco sobre o que pode essa língua na dimensão de tradução que ela, em seu mosaico, tem para ela mesma e na tradução de outras línguas.
Caetano W. Galindo: Pode tudo. Mas ainda precisa poder tudo.
Quando você traduz para um determinado idioma, precisa contar com um repertório, um arcabouço de possibilidades de invenção, por exemplo, que foi desenvolvido ao longo de toda a história do idioma. Uma carreira, como a minha, em que você traduz textos de vários gêneros literários, produzidos entre o começo do século XVIII e os anos mais recentes, faz com que você tenha que se servir de ideias, possibilidades e criações que apareceram no teu próprio idioma ao longo desse tempo. Se o teu original pede que você lide, por exemplo, com complexidades dos sistemas de formalidade nas formas de tratamento, as respostas que você vai poder desenvolver serão baseadas nas maneiras com que o teu idioma abordou esse problema em sua história. Se o teu original pede que você seja inventivo na formação de palavras novas, ou na elaboração de contornos sintáticos que pareçam novos, você normalmente vai precisar se apoiar em precedentes, em todo o coro de vozes que foram compondo as possibilidades do português brasileiro.
E a questão é que, por vários motivos enraizados na história do nosso idioma, e da nossa variedade do nosso idioma (uma história curta, uma sociedade cindida, complexo de vira-latas, uma literatura que nem sempre lidou diretamente, e de frente, com as questões mais próprias de seu próprio idioma, no que elas tivessem de idiossincrático), nem sempre o português do Brasil oferece, aos tradutores, seus leques mais plenos de possibilidade, e muitas vezes são justamente os tradutores que precisam ampliar esse leque, permitindo, então, que a língua de fato possa mais.
Derivas Analíticas: Em sua nota de tradução do Ulysses, de James Joyce (2012), você faz uma importante marcação: “tentamos apresentar Ulysses como o que ele deve sempre ser em primeiro lugar: um romance, talvez o maior romance de todos, e não um quebra-cabeça exemplar”. Essa proposta parece sustentar também seu guia de leitura para o Ulysses, intitulado Sim, eu digo sim (GALINDO, 2016), assim como em seu site, que contém valiosas dicas de como aproveitar essa leitura, inclusive com sugestões de passeios pela Dublin de Joyce.
Quando Jacques Lacan se encontra com o texto de Joyce, chama-lhe a atenção que toda a fascinação que esse escritor produz em seus leitores não tem a ver com o sentido. Finnegans Wake, por exemplo, se lê, mas não se compreende. Assim, no Seminário 23, O Sinthoma, Lacan (1975-762007, p. 161) diz: “se isso se lê, [...] é porque sentimos presente o gozo daquele que escreveu isso”; o que fascina o leitor de Joyce é “essa gozação, por ser esse gozo a única coisa que, do seu texto, podemos pegar”.
Em sua tradução de Joyce, podemos experimentar essa dimensão da satisfação com o texto na nossa língua materna, o português brasileiro. Você poderia nos contar um pouco mais sobre sua maneira de traduzir? Você considera que o trabalho de tradução implica também a transmissão desse gozo de quem escreve e é traduzido?
Caetano W. Galindo: Bom, primeiro de tudo, me deixa muito feliz, de verdade, saber que vocês percebem isso no meu trabalho. Eu, como professor antes de mais nada, e também quando escrevo ou traduzo, cada vez mais me convenço de que a parte mais importante da minha ação é a transmissão do que eu chamo de entusiasmo (e que vocês podem chamar de gozo). Eu nem sempre tenho a densidade necessária para transmitir todos os “dados” que seriam talvez relevantes, mas (talvez até como maneira de racionalizar essa minha insuficiência) eu acabo me dizendo que a minha tarefa pessoal se define muito nessa dimensão do contágio, de saber o suficiente para entender o quanto é maravilhoso aquele tema, aquele livro, e de me deixar mover o suficiente por essa paixão para sair à rua gritando “vocês precisam saber disso”. E, a partir daí (esse é talvez o dado racional que se sobrepõe), elaborar estratégias efetivas que me permitam convencer os outros da intensidade daquele gozo, da intensidade do meu entusiasmo por algo, e de seus motivos.
Eu me motivo muito por isso. Por perceber isso nos textos que leio e traduzo, por perceber isso em mim no processo de trabalho.
Recentemente, por exemplo, eu desisti de um trabalho que já tinha me consumido mais de dois anos e estava com quase duzentas páginas de texto. E o motivo principal foi ter percebido que ele, agora, não estava me empolgando. “Eu não faço nada sem alegria”, dizia o Montaigne (ie ne fays rien sans gayté), meu farol, e eu entendo que ele nunca quis dizer que era capaz de levar alegria a tudo que precisava fazer, mas sim que ele não fazia as coisas que não lhe traziam essa alegria. Lasciatemmi divertire (“deixem que eu me divirta”), dizia o Palazzeschi, outra frase que eu carrego como uma bandeira.
Alegria, diversão, empolgação, entusiasmo, tesão. Essas coisas me movem mesmo. Inclusive no trabalho intelectual.
E eu levo isso pra minha forma de trabalhar. O fato, por exemplo, de eu não gostar de ler antes os livros que vou traduzir. Eu gosto de trabalhar a quente, no limite da velocidade da minha (sempre truncada) digitação, pra me manter numa espécie de ritmo de leitura, e de leitura empolgada. Eu gosto de traduzir “a quente”, curioso pelos rumos da trama e os destinos do livro. Eu traduzo o mais rápido que posso porque é assim que eu me mantenho interessado. Empolgado.
Derivas Analíticas: Na conversa com o jornalista Irinêo Neto, no podcast O que ler agora? (2023), você afirma que “exige-se mais de um tradutor que de um escritor, porque o escritor pode escolher seu estilo, seu jeito e ficar bem... já o tradutor, não”. Acrescenta que o sucesso do tradutor é não ser ele mesmo. Por outro lado, nessa mesma entrevista, você fala da tradução como “um prazer meditativo, uma atividade que mantem seu organismo em ordem” e que sem ela você se sente “chato e angustiado”. Haveria um estilo do tradutor, que teria uma relação com a satisfação, ou seja, com gozo extraído pelo próprio tradutor nessa tarefa de passar uma língua para outra?
Caetano W. Galindo: Estilo de tradutor é uma questão complicada.
É claro que cada um de nós tem lá um conjunto de estilemas, de preceitos, de decisões típicas, que muitas vezes pode já garantir uma espécie de assinatura. Uma posse estilística do texto. Uma identificabilidade.
De outro lado, mesmo fora dessas questões, existe aquela incontornável. Eu sempre lembro aos alunos que stillus era o nome da caneta de ponta seca com que, em temos romanos, se escrevia nos tabletes de barro. Logo, quando você dizia que reconhecia o estilo de alguém, estava dizendo que reconhecia sua forma de manusear a ferramenta. Seu toque, sua pegada, como dizem os músicos.
E esse tipo de estilo é praticamente inescapável. É uma espécie de impressão digital mesmo, que acompanha mesmo os nossos melhores esforços de escapar da nossa personalidade, das nossas marcas. Fernanda Montenegro pode ser a maior das nossas atrizes, a mais capaz de se transformar em outras pessoas. Mas mesmo assim há um estilo Fernanda Montenegro de ser outras pessoas.
Eu gosto de lembrar que, bem antes de os aliados conseguirem quebrar os códigos de comunicação dos alemães na Segunda Guerra, eles descobriram que algumas das funcionárias de Bletchley Park tinham a capacidade de entender qual era o telegrafista que estava transmitindo a mensagem codificada. E isso já carregava informação. Saber que o mesmo fulano que estava na semana passada naquele ponto onde uma divisão Panzer foi avistada e agora transmitia de outro ponto do mapa podia nos dizer algo sobre o deslocamento dos tanques.
O estilo é a pessoa.
Não sei se conseguimos apagar completamente essas marcas. Daí inclusive o fascínio e de certa forma o arrepio diante de certos atores que chegam perto disso. Daniel Day Lewis, Meryl Streep, Gary Oldman talvez mais do que todos, que chega ao ponto de se transformar fisicamente sem nem precisar passar por alterações ou maquiagem.
Agora, existe ainda um terceiro viés. Que é o do ego. Mas ego no sentido do self. E é a esse que eu me refiro mais diretamente quando falo desse prazer de me outrar na operação da tradução. Porque ali não estão apenas (ainda que também) em jogo essas marcas mais tradicionalmente consideradas estilísticas. Ali existe o conforto de não pensar o que eu penso, não articular como eu articulo, não passar pelo que eu vivo: seguir disciplinadamente o fio de um texto que já foi estendido, me ater ao dever de passo a passo repercorrer aquela trama, transferir a atenção dos meus mecanismos de tomada de decisão para o nível estritamente verbal, deixando que o resto transcorra sozinho. É aí que eu encontro uma atividade meditativa, capaz (especialmente se realizada daquela maneira que eu descrevi, a quente e rapidamente) de apagar o meu discurso interior e me manter, ao mesmo tempo, muito ativo mentalmente.
Derivas Analíticas: Ainda sobre Joyce, Lacan (1975-762007, p. 93) afirma, no já mencionado Seminário 23:
no esforço que faz desde seus primeiros ensaios críticos, logo depois em O retrato do artista, enfim em Ulisses, para terminar em Finnegans Wake, no progresso de certo modo contínuo que sua arte constitui, é difícil não ver que uma certa relação com a fala lhe é cada vez mais imposta – a saber, essa fala que, ao ser quebrada, desmantelada, acaba por ser escrita –, a ponto de ele acabar por dissolver a própria linguagem [...]. Ele acaba por impor à própria linguagem um tipo de quebra, de decomposição, que faz com que não haja mais identidade fonatória.
Na também citada conversa do podcast O que ler agora?, você menciona os aspectos sonoros do texto, principalmente na escrita de poesia, tais como a prosódia, a pronúncia, o ritmo etc., e da importância de se ler em voz alta “para sentir o peso da palavra”. Nesse contexto, você fala também da tradução, sobre escrever “a voz de outra pessoa”. Você poderia nos dizer sobre o papel da sonoridade no processo de tradução? Em se tratando de Joyce, houve alguma particularidade no trabalho de tradução a propósito desses aspectos fonatórios dessa fala que Lacan chamou de “quebrada” e “desmantelada”? Você percebe essa dimensão em outros escritores e poetas que traduziu?
Caetano W. Galindo: Eu sempre tenho impressão de que os comentários de Lacan sobre Joyce se aplicam mais diretamente ao Finnegans Wake, e ali acho que de fato as coisas se articulam de uma maneira qualitativamente diferente. Ali, a enunciação toma o lugar da escrita, e os sons com imensa frequência passam à frente do “sentido”.
Mas, na maior parte da literatura de Joyce, o que a gente encontra é um autor que não parecia capaz de desconsiderar qualquer nível de elaboração da obra. E, assim, a vocalização dos textos, em toda sua capacidade de dar a ouvir, de concretizar as escolhas de fonemas, de ritmos, acaba sendo um elemento muito bem trabalhado. Desde a primeira frase do primeiro livro de ficção de Joyce[1] (“There was no hope for him this time”) você percebe com clareza essa preocupação com o ritmo e a sonoridade, mas longe de padrões “poéticos” convencionais.
Como a oralidade, a representação plena da realidade da fala dublinense é outro elemento de muito peso na obra ficcional de Joyce (e essa você só avalia de verdade quando lê em voz alta), você se vê sempre obrigado a pensar os textos em voz alta na hora de considerar a versão final da tradução. Ou, na melhor das hipóteses, a realizar mesmo essa vocalização do texto para entender o que ainda não tinha entendido, de forma e de conteúdo.
Coisa muito parecida se deu com J. D. Salinger, na minha experiência.
Eu gosto de contar uma história que eu acho ilustrativa, sobre O apanhador no campo de centeio, um livro todo narrado em primeira pessoa, numa voz que é um triunfo, e responsável por quase todo o impacto de uma primeira leitura da obra.
No dia do lançamento da tradução, na Biblioteca Mario de Andrade, em São Paulo, eu estava sentado ao lado da Marcia Copola, que tinha feito a preparação de originais para a [editora] Todavia. A gente estava receoso, sem saber se o livro conseguiria conversar com os jovens brasileiros de hoje, muito menos com a juventude periférica que estava muitíssimo bem representada ali no evento.
Quando Pedro Bial começou a ler um trecho em voz alta e a biblioteca imediatamente se calou atenta, eu troquei um olhar veloz com a Marcia, e um sorriso. Ali a gente entendeu que tinha funcionado.
Derivas Analíticas: Encontramos uma afirmação sua, em seu Instagram, de que “o trabalho da tradução literária é o trabalho de gerar um texto literário de qualidade em português brasileiro”. Considerando essa perspectiva, como você se posiciona com relação à tradução realizada por robôs?
Caetano W. Galindo: Putz.
Primeiro, ela já é, e será cada vez mais, um fato incontornável. A tentação é simplesmente grande demais. Um tradutor automático é capaz de realizar em minutos, e de graça, um trabalho que um tradutor típico pode levar um mês para fazer, a um custo de alguns milhares de reais. Mesmo que ainda haja uma diferença perceptível de qualidade nos resultados, e mesmo que o texto gerado por uma IA precise de um trabalho de preparação e de revisão um tantinho mais longo e mais custoso, ainda vai valer a pena.
E é claro que, até onde a gente possa entender, a qualidade dos resultados desses processos só vai aumentar, e mesmo a velocidade de melhora vai crescer.
Ou seja, teremos que conviver com isso. E muita gente pode perder seu ganha-pão.
E eu, de fato (infelizmente?), não duvido que essas IAs consigam, em breve, gerar traduções satisfatórias, e até boas, da maioria, da imensa maioria dos textos literários. Até porque, veja, eu não quero romantizar demais o gênio dos tradutores. Nós quase invariavelmente seremos criadores “inferiores” aos escritores que traduzimos, então não se trata de pregar a insubstituibilidade das minhas traduções, por exemplo.
O que me interessa pensar agora é quando nós vamos querer, ou sentir que precisamos, valorizar o “feito à mão”, aquela “assinatura” de um ser humano que (curiosamente) durante tanto, mas tanto tempo, o senso comum dos leitores julgou ser justamente o incômodo, a pedra no caminho da fruição de um texto literário em tradução.
Como nos mais otimistas dos cenários referentes ao que haja de ser o nosso futuro em contato com as IAs, eu insisto em dizer que vamos ganhar excelentes oportunidades de repensar coisas que julgávamos claras.
Derivas Analíticas: Como se dá a relação entre seu também reconhecido trabalho de escritor e poeta com aquele de tradutor?
Caetano W. Galindo: Acho que as coisas se alimentam.
Mas em todos os sentidos a assimetria é grande.
Eu escrevi quase nada, e traduzi quase sessenta livros.
Eu sou um escritor acanhado também em mérito, e traduzi gente do porto de Pynchon e Ali Smith, Joyce e Eliot, Salinger e Munro.
É claro que eu aprendi (ou acho que aprendi) muito sobre a elaboração, a construção interna da literatura, nesse processo de desmontar e remontar os livros dos outros. É claro, também, que eu pude levar a essas minhas traduções as minhas empolgações, os meus interesses e as minhas curiosidades como escritor. Isso fica muitíssimo mais claro na poesia, em que não há como se traduzir um soneto sem ser capaz de escrever um soneto, mas não acho que seja tão fundamentalmente diferente na prosa também.
Mas, acima de tudo, acho que a atividade de tradutor literário, e o tipo dos livros que eu tive a sorte de traduzir, me influenciaram em termos de uma autorização, de uma percepção, derivada tanto de cada um desses projetos, quanto do coletivo formado por essas décadas de trabalho, do contraste entre cada um desses projetos, de que há infinitas maneiras de se abordar esse trabalho, e de que a coisa mais preciosa que você pode fazer é encontrar uma maneira de viabilizar que você seja o que já era, e não o que pretendia ser.
Derivas Analíticas: Poderíamos ter alguma notícia sobre o processo de tradução de Finegans Wake, pela qual estamos aguardando ansiosamente?
Caetano W. Galindo: Não.
:)
Claro. Ele está parado agora, há mais de um ano que eu não traduzo uma linha. Mas nunca está parado de verdade. A minha cabeça retorna a ele. E eu acho que pretendo terminar.
Derivas Analíticas: À medida que lemos Lia (GALINDO, 2024), vemos sem dúvida uma mulher e sua vida se apresentarem e se desfazerem para nós, mas sem que haja uma descrição propriamente realista do que aparece e desaparece, embora, ao mesmo tempo, o que se compõe em cada capítulo seja minucioso. Assim, acabamos por “conhecer” Lia não pelo que se descreve dela e de sua vida, mas pelas palavras que a compõem. Essa estratégia ou, talvez, possamos mesmo dizer, esse método de “composição de uma personagem” (como se falava há mais tempo nos estudos de literatura), evocou-nos o modo como Joyce faz surgir Molly Bloom, no final de Ulysses, apenas pelas palavras que ela mesma diz em seu monólogo. Você mencionou, nas notas finais de Lia, a afinidade dessa protagonista com Ana Lívia, outra célebre personagem de Joyce. Teria havido, também, certo toque de Molly Bloom na composição de Lia? Se houve, como foi para você, ao escrever esse livro, deslocar sua protagonista do monólogo joyceano em primeira pessoa para o que é composto, em terceira pessoa, por uma espécie de narrador que, embora sem se apresentar diretamente, não nos pareceu ser do tipo onisciente?
Caetano W. Galindo: Olha… eu nunca tinha pensado desse jeito. Isso que é bonito nessa coisa de dar um livro aos outros, e encontrar bons leitores. A gente aprende sobre o próprio texto.
Ana Lívia é de certa forma uma presença sonora na Lia, pela proximidade dos nomes. Ao mesmo tempo em que resta lá como o “eterno feminino” que ela representa. E a Lia é, para mim, uma espécie de manifestação de vários aspectos de várias mulheres, apesar de, para quem lê, eu achar que ela tem muito mais de particular, de singular que de universal.
Quando a Molly, não sei. Se a gente pensa na Molly do monólogo, quase dá pra dizer que os métodos são opostos, né? No Ulysses, eu tenho o jorro da primeira pessoa que reflete sobre si e sobre seu entorno com total confiança na sua autoridade discursiva, psicológica, epistêmica. E a Lia, pelo contrário, é vista, ou entrevista, sempre de longe, sempre recortada. Eu cheguei a pensar nessa possibilidade, mas nem sei direito que efeito teria a mera inclusão de UM fragmento narrado por ela em primeira pessoa. Podia desmontar o brinquedinho todo.
Agora, esse método de descrever por fora, de longe, de manter uma presença no fundo sem lhe dar o direito de falar do proscênio, é exatamente o que Joyce usa para encarnar a Molly antes do monólogo, quando, durante o livro todo, ela é exatamente isso, alguém formado de breves aparições e, acima de tudo, das opiniões dos outros sobre ela.
Então, vá saber.
Acho que eu nunca escapo de Joyce.
Sobre a última parte da pergunta, pra mim foi habilitador empregar esse recurso. Tipo metaliterariamente. Porque não se tratava de um artefato de mascaramento, tipo de velar para quem lê o que eu concebo na sua inteireza. Eu concebo a Lia daquele jeito, como, no fundo, acho que concebo as mulheres, e os seres humanos todos, e incluir essa visão fragmentada como parte do método de exposição foi o que, para mim, possibilitou falar dela com honestidade.
Referências
GALINDO, C. W. Sim, eu digo sim: uma visita guiada ao Ulysses de James Joyce. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
GALINDO, C. W. Latim em pó: um passeio pela formação do nosso português. São Paulo: Companhia das Letras, 2023.
GALINDO, C. W. Lia. São Paulo: Companhia das Letras, 2024.
JOYCE, J. Dublinenses. Traduzido por Caetano W. Galindo. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
JOYCE, J. Ulisses. Traduzido por Caetano W. Galindo. São Paulo: Companhia das Letras/ Penguin Books, 2012.
LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Tradução de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76).
O QUE LER AGORA? Episódio 2.7: Caetano W. Galindo e as estratégias para ler e entender poesia. Entrevistado: Caetano W. Galindo. Entrevistador: Irinêo Netto. Jornal Plural, ago, 2023. Disponível em: https://open.spotify.com/episode/4luyS4BsE5CPjyGX5ZhsL4?si=x-h-GtagQ9K6gi6CVP0KFw
[1] O conto “The sisters”, publicado no livro Dubliners (JOYCE, 2018).