Revista Derivas Analíticas - Nº 19 - Agosto de 2023. ISSN:2526-2637
Errância e amarrações: o que nos ensinam os andarilhos[1]
Entrevista com Beatriz Magalhães
Todos os dias, em absoluta solidão, ele tem de construir, preencher, organizar esse vazio, criar regras de uso, códigos,
disseminar marcas, pregar rótulos,afixar outras legendas, reescrever e redesenhar a cidade, lei e legenda.
Talvez assim ele sinta, por breve instante, ela tornar-se sua, a sua casa. Não uma casa que é, mas
que demanda ser, em constante fabricar.
(Beatriz Magalhães, 2008)
A equipe editorial da Derivas entrevistou Beatriz de Almeida Magalhães. Ela é escritora, artista (bacharel em Artes pela Universidade do Estado de Minas Gerais – UEMG), arquiteta (graduada pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG) e doutora em Letras (também pela UFMG) com a tese Poetopos: cidade, código e criação errante. É autora de Belo Horizonte: um espaço para a República (UFMG), Sentimental com filtro (Autêntica), Caso oblíquo (Autêntica) e Regiztros efêmeros (Matéria Plástica).
Virgínia Carvalho: Gostaríamos de primeiramente lhe agradecer a generosidade de compartilhar conosco seu olhar e sua escrita. Sua obra nos convida a nos deixarmos tocar pelo que foge à rotina da cidade, dando dignidade poética e artística ao que você vê e lê nessas “escritas diárias de alto teor poético e estético”.[2] Marcada pelos traços e curvas de Belo Horizonte, sua escrita também veicula uma pluralidade de recursos, objetos e disciplinas teóricas. Poderia nos contar um pouco sobre seu processo de criação?
Beatriz Magalhães: É muito simples e orgânico. Menina ainda, logo no grupo escolar, comecei a estudar dança. Quando terminei o primário, fui para o Ballet de Minas Gerais. Fiquei dos 10 aos 17 anos fazendo aulas e ensaios, participando do corpo de baile em temporadas líricas no Teatro Francisco Nunes e turnês pelo interior de Minas. Durante esse tempo, no mínimo três vezes por semana, ficava diante de uma parede espelhada vendo corpos se movimentando. Não sabia que estava aprendendo a desenhar. Não cheguei a ser bailarina, fiquei muito alta, não teria partners. Quando terminei o colegial, entrei para a Guignard, então Escola de Belas Artes e Artes Gráficas. No segundo ano, ganhei um prêmio nacional de desenho. No júri, estavam Mário Pedrosa,[3] José Geraldo Vieira[4] e Clarival do Prado Valladares,[5] que me levou a fazer uma exposição individual na Galeria Goeldi, no Rio. Meu compromisso com a arte cresceu, fiz uma individual na Galeria Guignard, em Belo Horizonte, participei de exposições e salões. No último ano, fui aceita na Bienal de São Paulo e no Salão de Ouro Preto, onde ganhei outro prêmio nacional de desenho. Na carência de mais conhecimento, fiz o curso de Arquitetura. Nele, aprendi a projetar, identificar, nomear e descrever espaços, porque a gente tem de fazer a memória descritiva de cada projeto. Isso tudo foi muito importante, mas não exatamente para o que eu estava me preparando. Também ali aconteceu algo que penso tenha a ver com os temas da revista Derivas: a escrita estava começando a tomar a frente naquele aprendizado, um pouco poética, dadas as experiências com a arte. Trabalhei em projetos de arquitetura, acabei indo trabalhar na Secretaria Estadual de Cultura e no Museu Mineiro, onde iniciei pesquisas e fiz o texto do projeto de uma exposição sobre a criação da cidade. Com o projeto Belo Horizonte: um espaço para a República, recebi bolsa de auxílio à pesquisa do CNPq, e, assim, o estudo acabou derivando para o livro, que foi publicado pela UFMG – Proex. Aí eu estava numa escrita ensaística.
Ludmilla Féres: Você é uma subversiva, não é? Achei muito bonito isso: você vê uma imagem e fala assim: “Eu não estava aprendendo a dançar, eu estava aprendendo a desenhar”. Quer dizer, você subverte o sentido, dá outra função para aquilo.
Beatriz Magalhães: É uma coisa tão espontânea! A gente puxa algo que internamente já está lá e vai encontrando o próprio caminho, aquele em que você pode ter mais liberdade, mais condizente com seu modo de ser. Bom, eu escrevi o ensaio crítico sobre a cidade de Belo Horizonte, não cogitava que iria chegar a uma escrita literária nem tinha essa pretensão. Na ocasião, escrevi o “Regiztros efêmeros”, que é o meu acompanhamento do poeta errante na rua. Por fidelidade ao tema, quis dar a forma que, no posfácio, Fábio Lucas[6] descreve como “descodificação lírica”. Mais tarde, escrevi duas breves narrativas. Vi que uma era a continuidade da outra. Daí, nasceu o Sentimental com filtro, publicado como vencedor na categoria Romance do concurso I Prêmio Nacional Vereda Literária, UniBH e Autêntica Editora.
Daniela Viola: Você inicia sua tese Poetopos: cidade, código e criação errante afirmando que busca responder uma pergunta irrespondível: “O que é isto?”. Essa pergunta está no ponto de partida e de chegada de sua tese, condensando um ponto de vista: o olhar de quem se depara com o inusitado na cena da cidade. Poderia nos contar um pouco sobre o que a levou a essa pesquisa e o que lhe possibilita ser provocada por essa imagem estranha, fora de lugar, que não deveria estar ali, à vista, mas está?
Beatriz Magalhães: Ao começar o livro sobre a criação de Belo Horizonte, eu queria, como arquiteta, achar onde residia o positivismo, além do plano das ideias, aqui, na cidade. Parti da sua forma e encontrei respaldo teórico em Bachelard, Foucault, Deleuze e no nosso Milton Santos, geógrafo que afirma que a história da cidade é a das suas formas e a história do urbano é a dos seus fluxos. Cheguei aos fluxos, à ideologia do projeto, ao fato, não declarado, de que a cidade de Belo Horizonte é a materialização da Lei dos Três Estados, de Auguste Comte: Amor, Ordem e Progresso, equivalentes a três momentos (antes, durante e depois). Essa tríplice legenda está aqui construída: “a superação do natural” está no Parque Municipal, uma testemunha, “pelo racional”, é o aparato do Estado, limitado pela Avenida do Contorno, “para o progresso social”, aquilo que, em função daquele ordenamento, decorria e continuaria a decorrer para além dela, no espaço e no tempo, em que pese a ingenuidade dessa formulação positivista.
Chegando à parte das ilustrações, selecionei fotografias documentais no Museu Abílio Barreto, no Arquivo Público e saí para fotografar o que restou da cidade original nas ruas. Logo me deparei com a escritura a giz que já havia anotado nos papeizinhos que estão reproduzidos nos Regiztros efêmeros. Era um poema sobre mulheres, que fotografei. Sob o impacto da crueza daquelas palavras, escrevi de um jorro o texto. Ao levar o filme para revelar, o fotógrafo que fazia as reproduções para o Belo Horizonte, o Gerson Pessoa,[7] contou que tinha fotos desses escritos e de desenhos, me ofereceu cópias para a primeira boneca dos Regiztros efêmeros, que montei em 1993. Em 1996, houve uma publicação virtual, em CD-ROM, no nº 1 da revista Zap, da Secretaria Municipal de Cultura. A boneca ficou 28 anos na gaveta, de onde foi resgatada pela Lei Aldir Blanc.
Depois que o Sentimental com filtro foi premiado, voltei para a universidade. Eu não tinha formação em literatura e acabei fazendo o doutorado em Letras. Já no projeto de Poetopos: cidade, código e criação errante, eu queria unir as duas simultâneas estranhezas minhas que motivaram Belo Horizonte: um espaço para a República e Regiztros efêmeros. Acreditava que eram extremos que se tocavam. Isso foi se confirmando: da origem de uma cidade absolutamente interior ao Estado, vislumbrei na outra ponta o absolutamente exterior ao Estado, o não cidadão, o não contribuinte, o não consumidor.
Ludmilla Féres: Você trabalhou com Geraldo Alves, Antônio e Nondas. Como foi o encontro com esses três personagens?
Beatriz Magalhães: Eu não conheci o Geraldo Alves nem o nomeei desde a forma inicial do Regiztros efêmeros, porque quis mostrá-lo como ele a mim se apresentou, como uma escritura anônima pela cidade, em lugares que chamo, ao mesmo tempo, de discretos e visíveis, estratégia que aprendi a identificar com a continuada observação.
Desse modo, eu pude detectar, a dois quarteirões da minha casa, num lote vago, o que ali estava fazendo outro homem. Mesmo não sendo andarilho, vivia em nomadismo (“são nômades por manterem um espaço liso que se recusam a abandonar”)[8]. Eu o vi construindo algo. Passei a fotografar o que ele fazia. Uma das primeiras fotos é a de dois altos galhos de pinheiro por ele cruzados aos pés da parede de uma mecânica demolida, envolvendo uma bandeira de rally que restou ali pintada. Aquilo assumiu uma força estarrecedora: os galhos tornaram-se ganhos, louros da vitória. Na primeira foto dele que mostro na tese, ele está vestido como coletor, com panos amarrados no corpo e nos pés, como botas, e na cabeça, como boina, tudo cinza, chegando carregado de sacolas ao terreno, vindo da coleta em caçambas e lixeiras. Ele logo se vestiria de construtor, cobriria a cabeça com um pano em forma de capacete e iria trabalhar no que chamava de “construção”, um totem mutante. Fiquei fascinada pelo objeto dia a dia assumindo configurações que remetiam a artistas contemporâneos, que ele desconhecia, como John Angus Chamberlain.[9] Compunha-o com transparências, opacidades, cores, paralelismos e às vezes parecia em diálogo com os outdoors ali afixados. Chegou a atravessar o tapume da frente com uma instalação, incorporando-o a ela. Tenho mais de 1.000 fotos, feitas durante cinco anos. Em uma delas, está reclinado, sorrindo, como se fosse o dia de folga, com roupagem de gala, feita por ele mesmo, azul real com acessórios vermelhos. As duas partes de cada manga são unidas na lateral por quatro pequenos laços, requinte japonês. Disse a mim que trabalhou em cartório, que só quando conseguisse uma posição social ia poder ter um nome, um valor, falou em transeuntes, protozoários, planisfério de Marte…
O terceiro é o Nondas: Epaminondas – olha o nome, grego! Eu vislumbrei os objetos já redigindo a tese, indo para a universidade. Lembravam um pouco os do Antônio, e soube que ele também queria o anonimato. Eram amarrados de coisas descartadas, mas distribuídos pela Avenida Antônio Carlos e vias vizinhas.
Esses errantes têm um passado sofisticado, não sabemos em que nível. São o nosso olho não naturalizado pelo Estado, pelo Mercado, pela História… William Kentridge,[10] artista sul-africano contemporâneo muito interessante, diz que quando sai com a máquina de fotografar e vê uma paisagem pictural, como um campo com uma árvore e uma montanha atrás, ele a vira para o outro lado, porque esse é o olhar domesticado. Eu também desconfio desse olhar que vem formatado pela história da arte, da pintura. Considero – e fui descobrindo isso na vivência desse trabalho – que os errantes são o nosso olho liberto, sem peias. É um olhar distanciado, crítico, oblíquo e lábil.
Ludmilla Féres: Você questiona se a escrita seria sempre uma errância: “Seria, então, a errância o compromisso duplo desta escrita? Aprende-se com os andarilhos que a errância pede amarrações, ancoragens. Enquanto se decide, uma coisa insiste em fixar-se, a perplexidade. E uma suspeita cresce: a arte e a literatura não estão mais no lugar de costume, no lugar dos costumes”.[11] Poderia nos contar sobre a relação entre a sua escrita poética e a errância? É possível dar o estatuto de escrita ao trabalho desses três artistas?
Beatriz Magalhães: Há narrativa, mesmo quando plástica. Antônio estava construindo no lote vago a sua, com resíduos que achava ao redor. Nondas também, dando nós em um bordado de resíduos sobre a cidade tomada como tela. Acreditando que tudo acabaria no ano 2000, Geraldo estava inventariando o mundo – como Bispo do Rosário, guardadas as diferenças, porque não vivia confinado, o espaço dele era a cidade, mas estava na incumbência de tudo assentar, tudo anotar. Fazia a lista dos cantores, dos deputados, dos políticos, das mulheres, dos homens… Na tese, cotejo escritos de Geraldo Alves, em fotos que me foram cedidas pelo Manoel Teixeira,[12] com o poema “Pequeno catálogo colonial de nomes, cor da pele e meio de vida”, do Affonso Ávila.[13] Não havendo evidência de comunicação, os dois têm um paralelismo no insondável fazer poético. Por isso chamei o trabalho de Poetopos, porque a cidade é tomada como o lugar da poiesis, da criação. Não por acaso, uma cidade criada, nunca vista no Brasil. Um artifício com o encargo político e ideológico de ser a cara do novo regime, um repúdio ao que lembrasse o passado. Até aquele momento, era da justaposição paulatina das casas que nascia uma rua e, assim, todas as cidades. A vida precedia a via. A via passou a preceder a vida com Belo Horizonte. Isso trouxe consequências: o lote vago; com ele, a especulação imobiliária. E provocou uma imediata literatura reativa.
Daniela Viola: Então esses artistas, com esse objeto que é Belo Horizonte, eles extraem alguma coisa disso a partir dessa estética crua…
Beatriz Magalhães: Tenho para mim – é apenas uma suspeita – que pelo fato de a cidade ser tão formalizada, regulada, estruturada geometricamente, eles sintam necessidade de contrapor a ela a própria linguagem, para que tenham o lugar como seu. Porque eles não se veem pertencendo a esse lugar. Fazem uma tradução crítica. Tomam expressivamente a cidade como suporte para que possam nela transitar, reconhecer espaços, apropriar-se deles.
Ludmilla Féres: É interessante essa dobradiça entre nômade e algo que se fixa…
Beatriz Magalhães: Os errantes têm a necessidade da fixação, dentro de uma liberdade que se permitem. Estranhei quando levaram lápis de cera e papel para o Antônio, sugerindo exposição em galeria. A cidade era a galeria dele, e o resíduo urbano, o seu material de trabalho. Ele me disse: “Eu vi esta casa abandonada e estou continuando a sua construção”. Seria ele “o homem de ocupação, de tarefa própria”, de que fala Gilvan Fogel?[14] Os artistas vão para o espaço urbano e produzem os grafites, ocupam as grandes fachadas, mas não é a mesma cunhagem.
Ludmilla Féres: Você faz uma contraposição entre grafite e pichação tribal com as criações errantes. Poderia nos dizer mais sobre isso?
Beatriz Magalhães: São completamente diferentes. Os errantes têm uma categoria totalmente autônoma, solitária, não pertencem a uma tribo, não estão preocupados em fazer com que a marca seja indelével, como os grafiteiros e os pichadores. Os errantes não têm essa noção. A questão deles não é imposição, a não ser a si próprios. Em Regiztros efêmeros descrevo Geraldo Alves como um discreto exibicionista, o que é um oximoro. Há na obra dele sutileza e ambiguidade, uma flutuação.
Daniela Viola: Tem algo do gesto, da performatividade? Na obra do Antônio isso fica claro, porque é o totem e o corpo dele, e os dois vão se transformando, não é?
Beatriz Magalhães: Sim, inclusive as figuras são antropomórficas. Ele põe até uma japonesa de corpo inteiro, um display. E tem uns encapuçados que lembram bruxos medievais e uma figura que parece uma noiva de branco com um disco amarelo, como um buquê. É materialmente sutil e sutil em significação.
Daniela Viola: A partir da sua introdução à história da construção de Belo Horizonte, entendemos que a constituição racional da cidade, com seus ideais de ordem e progresso, tem como contrapartida uma resistência poética, que as criações errantes retratam, segundo seu estudo, como irrupções de uma verdade residual. Além dessa resistência de caráter coletivo, há uma resistência individual por parte desses errantes que tentam existir na cidade. Nesse sentido, me chamaram a atenção as instalações em forma de amarração de Nondas, ou as ancoragens de Antônio, que, sem casa e sem nome, parecem precisar cravar suas produções na cidade. E, mais explicitamente, duas escritas de Geraldo Alves, clamando por sobrevivência: “NÃO MATA O ARTISTA MAIS NÃO AO TEU JEITO PRÓPRIO” e “NÃO FERE NÓS MAIS NÃO”.[15] Trata-se provavelmente de um apelo diante da violência sofrida por pessoas como ele, negras e em situação de rua. E, nesse apelo, ao falar de si, Geraldo Alves nomeia-se “o artista”. Então, gostaria que você dissesse algo sobre uma possível função vital dessas produções performativas, como se esses homens precisassem se inscrever na cidade para continuar existindo e para, diferente do que acontece a certo passado da cidade, não serem violentamente apagados.
Beatriz Magalhães: Eram chamados às vezes de mendigos. Eles não eram mendigos, absolutamente. O Antônio não aceitava comida, quentinhas que o pessoal da mecânica ao lado oferecia, nem cigarro. Ele dizia: “Eu já tenho meu fumo, já tenho tudo”. Eles tinham independência, não eram mendicantes, não estavam pedindo nada a ninguém. Estavam dando algo para nós, uma mensagem. O Geraldo Alves escreve “NU BRIGO NÃO”. Há quase uma superioridade, a consciência de que ele vale tanto quanto aquilo que está ali colocado por forças institucionais. Por exemplo, ele escreve na frente da balaustrada do Instituto de Educação ou na fachada do Palácio das Artes, quase como se estivesse dizendo “Eu também faço isso que vocês fazem aí”. Ele sabe que ali é um lugar de conhecimento, de cultura. É como se dissesse: “Eu também escrevo e desenho”. Você vê que o desenho e a letra têm refinamento. Tem um poema que é quase uma bandeira do vazio. Eu não quis em hora alguma falar em loucura. Acho que é com o lado saudável que eles dizem e fazem algo. Todo mundo tem algo a fazer, não é? “Fora do fazer não há salvação”, frase de Rubem Valentim[16] que uso muito. Sirvo-me também da etimologia da palavra “arte”, como está no livro sobre Belo Horizonte. Ars, artis: a atividade, da atividade. O contrário de arte seria inarte, sendo inerte. O movimento, o elã que move essas pessoas, é o mesmo que move artistas e poetas formais. São aquelas que, por uma razão pessoal, da própria vida, colocam-se nessa bandeira do vazio. “Quando eu conseguir ter outro valor, eu vou passar para outro ambiente”, disse o Antônio. Tratava de construir tal ambiente, preencher o vácuo. Ainda sobre Geraldo Alves, sua listagem de bancos, outro misterioso paralelismo com o Affonso Ávila de “Constelação da Usura Maior”,[17] é feita em modo curto circuito, sem o hífen, porque é circuito curto, contato direto com o real, que ele faz, precário, sobre o tapume e com giz, sem intermediação, direto para o transeunte. Poesia concreta radical. Ele prescinde de qualquer instância. É lindíssimo, porque não é apenas o que escreve, é como grafa. Com uma só linha escrita na vertical, antecedendo o bloco que vai compondo, deixa como contraforma uma bandeira. O vazio.
Ludmilla Féres: Ele escreve para fazer um vazio ali. Faz de uma forma que o vazio apareça.
Beatriz Magalhães: Sim. Tem um conceito japonês que é muito interessante, o Ma, o vazio constitutivo, intervalar, que dá valor ao cheio. Há pessoas que falam de talento como se fosse um plus. Eu penso que não, é do menos que vem o impulso. Diante do pleno, não há o que fazer. A falta move.
Referências
ÁVILA, A. Código de Minas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 5. São Paulo: Ed. 34, 1997.
FOGEL, G. Por uma fenomenologia do silêncio. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996.
MAGALHÃES, B. Sentimental com filtro. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
MAGALHÃES, B. Poetopos: cidade, código e criação errante. 2008. Tese (Doutorado em Estudos Literários) – Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, 2008.
MAGALHÃES, B. Caso oblíquo. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.
MAGALHÃES, B. Regiztros efêmeros. Belo Horizonte: Matéria Plástica, 2021.
MAGALHÃES, B.; ANDRADE, R. Belo Horizonte: um espaço para a República. Belo Horizonte: UFMG, 1989
[1] Texto da entrevista estabelecido pela equipe editorial da Derivas, a partir do encontro realizado em 23 de maio de 2023.
[2] Ver Magalhães (2008, p. 266).
[3] Mário Pedrosa, crítico de arte e escritor pernambucano (1900-1981).
[4] José Geraldo Vieira, crítico de arte e escritor paulista (nascido em Portugal, 1897-1977).
[5] Clarival do Prado Valladares, crítico de arte e historiador da arte baiano (1918-1983).
[6] Fábio Lucas, escritor e crítico literário mineiro.
[7] Gerson Alvim Pessoa, o Gersão, fotógrafo mineiro: “teve longa e importante atuação como integrante do Madrigal Renascentista. Faleceu em 2017, tendo publicado suas preciosas memórias em 2014 no livro Antes que se percam nas brumas do tempo” (MAGALHÃES, 2021, p. 190).
[8] Ver Deleuze e Guattari (1997, p. 189).
[9] John Angus Chamberlain, escultor e cineasta americano (1928-2011).
[10] William Kentridge, artista sul-africano.
[11] Ver Magalhães (2008, p. 29).
[12] Manoel Teixeira Azevedo Junior, arquiteto e artista plástico carioca. Com o jurista e urbanista Edésio Fernandes, organizou o livro O negro Dorieu Videla, publicado em 2016 pela Editora Gaia Cultural. A obra contém diversas fotografias e textos sobre o “poeta do giz”, incluindo-se um texto de Beatriz Magalhães.
[13] Affonso Ávila, poeta e ensaísta mineiro (1928-2012).
[14] Ver Fogel (1996, p. 41).
[15] As imagens com esses escritos estão disponíveis na página 314 da tese Poetopos: cidade, código e criação errante.
[16] Rubem Valentim, artista e professor baiano (1922-1991).
[17] Ver Ávila (1969, p. 11).