A escrita como mortalha, o cinema como lápide
Ilana Feldman
Na minha vida existem muitas janelas
e muitos túmulos
Às vezes eles trocam de papel:
então uma janela se fecha para sempre
então através de um túmulo
eu posso ver
muito longe
Yehuda Amichai
Embora se encontrem no centro do pensamento psicanalítico e da teoria literária, os campos teóricos do testemunho, dos estudos do trauma e das escritas de si têm orientado parte expressiva das manifestações culturais e midiáticas contemporâneas, sobretudo após as grandes catástrofes históricas que marcaram a experiência subjetiva e coletiva a partir da segunda metade do século XX, como o Holocausto, as ditaduras latino-americanas, as guerras de descolonização e todas as formas de genocídio e violência de Estado. Diante de experiências traumáticas, de difícil – se não impossível – simbolização pela linguagem, esses campos teóricos nos interpelam e interessam na mesma medida em que operam como modos de narração que colocam em questão os limites da representação.
Se partimos do princípio de que a dor é um bem comum, partilhável e transmissível, e não uma reserva de “exclusividade” restrita a certos grupos e identidades, seria interessante examinar de que formas certas produções literárias e cinematográficas contemporâneas dotadas de um teor testemunhal vêm, por meio de suas próprias invenções formais, tensionar as interseções entre as esferas pública e privada, a história e a memória, o pessoal e o coletivo, a intimidade e a extimidade – âmbito que, sendo tão próprio ao sujeito, só poderia apresentar-se fora dele, na relação com o outro, na exterioridade da linguagem. Como veremos, ao estabelecerem relações críticas e inventivas com a problemática do testemunho, da narração do trauma e das escritas de si, autobiográficas ou autoficcionais, as obras aqui mencionadas defendem a necessidade de uma poética do luto, aliada a uma política da imaginação, como tarefa primordial – cultural e social – face à elaboração do passado e, sobretudo, à construção de nosso presente.
No contexto de uma virada testemunhal no âmbito das ciências humanas e nos estudos da cultura, do atual recrudescimento dos autoritarismos e crise das instituições democráticas, bem como de uma sociedade simultaneamente marcada pela catástrofe e mediada pela imagem, talvez seja preciso, como tarefa política urgente, narrar o trauma, escrever o luto e imaginar, apesar de tudo – para, desse modo, desprivatizar a dor. Pois uma sociedade é tanto mais democrática quanto menor for a desigualdade na distribuição do luto público e maior for sua capacidade de imaginação.
Da mortalha à lápide: Scholastique Mukasonga e Rithy Panh
Em tempos caracterizados por aquele movimento que a ensaísta argentina Beatriz Sarlo, em "Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva" (2007), cunhou de “guinada subjetiva”, com a eclosão de uma verdadeira indústria dos relatos confessionais, considerados fontes sempre mais confiáveis, legítimas e autênticas, e de um “voyeurismo” agora consentido e midiatizado, é fundamental questionar – e poder distinguir – os efeitos estéticos e políticos da inundação das narrativas em primeira pessoa na paisagem cultural e midiática contemporânea.
Como se observa em diversos relatos testemunhais, autobiográficos e autoficcionais contemporâneos, seja na literatura ou no cinema, a escrita de si, ao invés de ser mero sintoma cultural de nossa época, tem podido comparecer como uma escrita do trauma e do luto, mas um luto que, embora transite pelas margens do íntimo, não apela nem à comiseração fácil nem ao registro confessional. Nesse sentido, se a literatura e o cinema a partir do pós-guerra encaram politicamente e encarnam formalmente uma discussão sobre o luto que a vida social tende a excluir e a denegar, é porque a narração do trauma e a escrita do luto não implicam a revelação de um segredo (de ordem pessoal ou íntima) que estaria escondido pelo muro da linguagem, mas a inscrição, na linguagem, de um evento (com sua dimensão sempre coletiva) que resiste à simbolização.
“Tornei-me escritora para encontrar meios de dar uma sepultura aos meus mortos. Eu tinha de tirá-los da vala comum e a solução que se apresentou para mim foi a de construir uma sepultura com as palavras. Fazer um túmulo de papel e poder assim esperar passar pelo meu luto, que não é um esquecimento”, diz em entrevista a escritora africana Scholastique Mukasonga, sobrevivente do genocídio dos Tutsi em Ruanda, em 1994, para quem a escrita exerce a função de mortalha, seja para sua própria mãe ou para os outros, desconhecidos.
Também o cineasta Rithy Panh, sobrevivente do processo de extermínio da burguesia cambojana liderado pelo Khmer Vermelho, entre 1975 e 1979, dedicou sua vida a construir uma filmografia composta por documentos e testemunhos vivos do massacre, definindo seu cinema como “lápide”. Em sua obra, como afirma a pesquisadora Anita Leandro em "A história na primeira pessoa: em torno do método de Rithy Panh" (2016), “não há presente sem as marcas do passado, e cada filme é o resultado de um trabalho reiterado de luto por parte dos personagens e do próprio cineasta”. Fazendo filmes contra o esquecimento, empenhados em restituir um rosto, um nome, uma língua e um país àqueles que foram exterminados, Rithy Panh tem afirmado: “Trinta anos depois, os Khmers Vermelhos continuam vitoriosos: os mortos estão mortos e foram apagados da superfície da terra. Sua lápide somos nós”.
Diante da força de tais afirmações, vemos que o teor testemunhal de ambos os relatos, em sua forma mais potente, pode vir a operar como parte importante de um trabalho de luto, de imaginação e desprivatização da dor, restituindo a identidade, o nome ou um traço àqueles que, anônima, individual ou coletivamente, foram ou são massacrados. Desse modo, a reflexão sobre o luto, uma reflexão com frequência a partir da identidade, torna-se também uma importante meditação sobre a alteridade, pois a testemunha do desaparecimento, nas palavras da poeta Tamara Kamenszain (2012), “já não é aquela que sabe mais que os outros, e sim aquela que precisa dos outros para saber de si mesma”.
Não é por outra razão, ressalta Jeanne-Marie Gagnebin, em "Lembrar, escrever, esquecer" (2009), a partir de Jean-Pierre Vernant, que a palavra grega sèma tem como significação originária a de “túmulo” e, só depois, a de “signo”, já que o túmulo é signo dos mortos. Túmulo, signo, palavra escrita, imagem: todos lutam contra o esquecimento. Assim, de Platão a Freud, de Bergson a Susan Sontag e Georges Didi-Huberman, sabemos que a escrita, do texto às imagens em movimento, passando evidentemente pela fotografia, na condição de dispositivo mnemônico, se dá contra a morte, mas inscrevendo o desaparecimento e a ausência em seu próprio corpo.
Da imagem fatal à imagem impossível: David Perlov e Roland Barthes
A problemática da dificuldade, ou mesmo impossibilidade, de representação da experiência traumática, seguida pela exigência de um trabalho de luto e de criação narrativa por parte das escritas autobiográficas, nos foi originalmente colocada durante nossa pesquisa a respeito do Diário 1973-1983, de David Perlov, cineasta brasileiro-israelense que, ao longo de dez anos, filma sua família, suas viagens ao Brasil e a realidade política de Israel, fundindo, através da mediação operada por suas janelas, o privado ao político. Na abertura dessa obra, formada por seis capítulos de uma hora cada, Perlov inicia sua jornada com a seguinte epígrafe, à primeira vista um pouco enigmática: “Nas terras de pobreza e analfabetismo, aqueles que não sabem assinar seus nomes colocam duas cruzes sobre suas fotografias: nome e sobrenome”.
Filho de uma mãe analfabeta, Perlov conhecia essa cruz como ninguém. Ao longo de seus diários, filma alguns túmulos e vai por duas vezes ao cemitério israelita de Belo Horizonte, onde sua mãe, Anna, fora enterrada. Na primeira visita, no sexto capítulo do Diário, Perlov percebe que o nome de Anna, em sua lápide de pedra, havia sido grafado errado, “Anna Perlof”, com “f”, em vez de “Perlov”, com “v”. Tal inscrição do “f”, letra que para ele se assemelha ao signo da cruz, opera no Diário como uma espécie de sombra a acompanhar a busca de Perlov pela “imagem fatal” da mãe, a mãe iletrada que não podia assinar seu próprio nome. A mãe iletrada que não podia, pela miséria, pela loucura, se inscrever na ordem simbólica da linguagem.
Já na segunda visita, quase vinte anos depois, no terceiro capítulo dos Diários revisitados 1990-1999, o nome de Anna é finalmente corrigido a pedido do filho. No lugar do “f”, Anna recupera o “v” de seu nome, reavendo também, contra o fluxo do esquecimento e do anonimato, a inscrição de sua própria identidade – lembrando que, para a tradição judaica, a inscrição do nome na forma do sepultamento é um de seus momentos estruturantes, como se vê na cerimônia da Matzeiva, quando se coloca a pedra tumular com o nome do morto um ano após o seu falecimento, para que sua memória seja mantida viva. É justamente por Anna habitar o lugar do trauma, o “irrepresentável” por excelência, que voltar ao túmulo, fazer o luto e, por meio do trabalho da imaginação, construir uma narrativa, constituem o sentido mais amplo da jornada de Perlov ao longo de todos esses anos. Pois, como bem sabem os sobreviventes, nas palavras de Ruth Klüger (2005), “onde não existe túmulo, o trabalho de luto nunca termina”.
Foi também lutando para conseguir fazer o luto da mãe que Roland Barthes escreveu seu belo texto autobiográfico, A câmara clara (1984). Nesse ensaio sobre a fotografia, contemporâneo aos diários de Perlov, Barthes inventa uma forma de narrar, misturando reflexão crítica, imagens, aforismas e narrativa biográfica para dar conta da dificuldade de sustentar o olhar sobre a fotografia de sua mãe, cuja imagem ele não consegue ou não pode publicar. “Diante da foto de minha mãe criança, eu me digo”, escreveu Barthes, “ela vai morrer. [...] Que o sujeito já esteja morto ou não, qualquer fotografia é essa catástrofe”. Nesse sentido, se tudo o que desaparece vira imagem, como Benjamin já assinalara, algumas fotografias – como “a imagem fatal” da mãe de Perlov ou a imagem da mãe de Barthes aos cinco anos, prenhe de futuro, sobre uma ponte à frente de um jardim – jamais poderão ser reproduzidas e serializadas, pois certas imagens são verdadeiras e únicas feridas.
De fato, tal como câmaras escuras, essas imagens que não podem ser representadas já estão presentes, pelo negativo, pela ausência, no interior das obras que as contêm. Portanto, à estética da presença, segundo a qual a fotografia seria um ápice do real e da inscrição do referente, tanto Perlov como Barthes propõem uma estética da ausência, da perda e da desaparição. Uma estética do “impossível”, no dizer de Alain Badiou, em Por uma estética da cura analítica (2004) – quem sabe uma “imagem impossível” no lugar daquela “imagem fatal” da mãe de Perlov –, que possa fazer frente à impotência do trauma, sustentando a necessidade do luto e o imperativo da criação. Pois só um trabalho de luto, mais precisamente, uma “erótica do luto”, como postula Jean Allouch em A erótica do luto (2004), articulado a um trabalho de imaginação, pode colocar a vida – pública e privada – em movimento.
Vida precária, vida passível de luto
Somos um país sem nenhuma tradição de luto público ou político. No Brasil, particularmente, a violência de Estado diz respeito não apenas à maneira como as pessoas morrem, mas também como são – ou deixam de ser – enlutadas. É como se as perdas, sendo anônimas, fossem exclusivamente individuais, restritas apenas ao âmbito privado daqueles que perderam seus familiares, suas casas, suas vidas. Todos os dias, inúmeras tragédias, do genocídio cotidiano e silencioso de uma população pobre, negra e indígena aos desastres ambientais, e, hoje, à catástrofe sanitária em curso no país, passam à história no anonimato e na falta de reconhecimento de que cada vida tem valor social e coletivo.
Pensar quais vidas são passíveis de luto e quais vidas podem ser descartadas tem sido o desafio da filósofa Judith Butler, sobretudo em seu livro Quadros de guerra (2016), do qual faz parte o ensaio “Vida precária, vida passível de luto”. Nesse texto, Butler defende que um país é tanto mais democrático quanto menor for a desigualdade na distribuição do luto público. Para sustentar seu argumento, a autora propõe uma forma de politização que tenha como fundamento a vulnerabilidade e a precariedade presentes em todos nós, e não a noção de pai ou de Estado como chancela ou garantia de nossas vidas. Isso significa, segundo Butler, que uma vida só pode ser passível de luto se ela for apreendida como “precária”.
Seguindo seu apelo, reconhecer a precariedade de alguém não significa reconhecer sua identidade, mas proteger sua possibilidade de tornar-se algo que ainda não se sabe. A vulnerabilidade, nesse sentido, conduziria à potência, a uma forma de saber que acolhe a dimensão sempre impossível do encontro com o Real, ao invés do lugar fácil da queixa e da vitimização, o lugar da melancolia, ao qual seria muito fácil aderir. Por isso, segundo a filósofa, demandar reconhecimento não significa pedir que se reconheça o que cada um já é, mas invocar um porvir, estar à espreita de uma transformação, exigir um futuro.
Evidentemente, Butler não trata aqui da dimensão subjetiva e clínica do luto, mas daquela social, ética e política, em um movimento crítico e filosófico que vai ao encontro da desprivatização do trabalho do luto e até mesmo da própria dor. Diferentemente da dinâmica da melancolia, caracterizada pela sensação de ausência de lugar social e subjetivo e pela dificuldade de abandono e desligamento de um objeto perdido, o que faria do melancólico um ser queixoso e autopunitivo, o luto, segundo a leitura freudiana, consistiria no consentimento da perda e no desinvestimento do objeto perdido, sendo provido de uma função de corte. Por essa razão, se para o melancólico a perda do objeto ou do ser amado não é apenas a perda de algo, mas sobretudo a perda do lugar que o sujeito ocupava junto a isso que foi morto, como enfatiza Maria Rita Kehl em Melancolia e criação (2011), o trabalho do luto a ser feito implicaria não o esvaziamento de si presente na melancolia, mas uma elaboração cujo fim último é a afirmação da própria vida e de sua capacidade imaginativa.
Não é por outro motivo que pensadores como Freud, Bergson, Benjamin, Adorno, Ricoeur e Derrida, pensadores que vivenciaram os efeitos das grandes guerras e crises mundiais do século XX, dedicaram-se a problematizar a narração e a memória diante da experiência traumática, defendendo um lembrar ativo (como já havia sido postulado por Nietzsche no século anterior), isto é, um trabalho de elaboração e luto em relação ao passado, mas realizado por meio de um esforço de compreensão e esclarecimento do presente. Nesse sentido, se somos estruturalmente sobreviventes, como acredita Jacques Derrida, marcados pela estrutura do rastro e do testamento, é porque a sobrevivência não se encontra do lado da morte, do passado, mas da vida e do porvir. Para o filósofo, o luto, em sua relação com a alteridade, sustentaria um paradoxo entre o desejo de conservar na memória aquele ou aquilo que foi perdido e o desejo de deixá-lo ir, numa aporia próxima àquela da própria escrita.
Como sabemos, se, de um lado, as escritas textuais e imagéticas delimitam a perda, organizando e formalizando na linguagem o desaparecimento, a ausência e o irrecuperável, como um “discurso funerário”, de acordo com Derrida, ou um “ofício de obituário”, segundo Adriana Kanzepolski em As línguas do luto (2012), de outro, elas procuram reter aquilo que da própria memória tende a ir embora com a morte, a finitude ou o extravio do outro. Nesse ponto, seria interessante pensar com Alain Badiou, a partir da obra de Mallarmé, que apenas a organização e formalização de um desaparecimento na língua poderiam conseguir a vitória sobre o desaparecimento inicial, fazendo surgir o impossível – a experiência do Real – onde antes só havia impotência. Por isso, tanto na escrita como na vida, para se conseguir a vitória sobre a perda é preciso imaginar e criar uma forma, um estilo, invenção sempre afirmativa.
A dor como bem comum, a imaginação como necessidade política
Uma expressiva parte da produção literária e cinematográfica contemporânea – a partir da literatura e do cinema modernos, nascidos no pós-guerra – tem elaborado formalmente o problema do testemunho face a um evento traumático, nos domínios da ficção, do documentário, do ensaio e das escritas de si. Tal produção, inscrita em um contexto de progressiva hipertrofia do “espaço biográfico” e atrofia dos espaços propriamente públicos e políticos, é comumente portadora de um nome próprio, vindo a problematizar os modos pelos quais a subjetividade constitui-se, cada vez mais, na imagem e por meio da imagem, a partir de uma dimensão performativa. Nesse caso, a literatura e o cinema deixariam de ser um lugar de “representação” para se tornarem também, intensamente, um lugar de “performance” e “autoficção”, em tensão e em diálogo com a sintomática tendência contemporânea à autorreferência e autoexposição, bem como com a difícil tarefa de simbolização da experiência traumática – que só pode ser elaborada e compreendida por meio de um trabalho de imaginação.
Assim, diante das heranças e sequelas das violências de Estado, as obras cinematográficas que mais têm nos interpelado são aquelas que problematizam, colocando em questão, sua própria forma de narrar, capacidade de ver, disposição para imaginar, possibilidade de compreender e de recordar, defendendo uma “ética do olhar”: “Você não viu nada em Hiroshima”, diz o amante japonês, a ela, uma atriz francesa escalada para trabalhar num filme sobre a paz, no para sempre moderno Hiroshima, meu amor (1959), de Alain Resnais. “Eu soube, mas não imaginei. E, como não imaginei, eu não soube”, escreve Raymond Aron, frase que será mencionada por Claude Lanzmann na abertura do documentário O relatório Karski (2010), desdobramento de seu monumental Shoah (1985). “Eu quero ver”, proclama Catherine Deneuve, viajando pelo sul do Líbano devastado após a guerra de 2006, no híbrido de ficção e documentário Eu quero ver (2008), de Joana Hadjithomas e Khalil Joreige. “Como é possível que os sírios estejam documentando a própria morte?”, pergunta-se o artista libanês Rabih Mroué, em Revolução em pixels (2014), misto de filme-ensaio e performance a respeito das imagens amadoras, produzidas com câmeras de telefone celular, por combatentes e homens comuns na Síria hoje. “Uma imagem falta, e essa imagem somos nós”, narra o cineasta cambojano Rithy Panh, em A imagem que falta (2013), tentando reconstituir a imagem de sua família exterminada pelo Khmer Vermelho.
A partir da emergência da palavra no cinema moderno, o cinema de depois dos campos, e da guinada documental e imagética da própria literatura a partir do pós-guerra, o estatuto sempre paradoxal do testemunho, entre sua necessidade e crônica dificuldade, acompanhado da tarefa do luto e do imperativo da imaginação, será trabalhado por diversos cineastas e escritores empenhados em dar forma ao desaparecimento, à perda e à dimensão “irrepresentável” da violência traumática. Resultante da experiência das catástrofes que traumatizaram o século XX e continuam a ferir sem trégua o XXI, a estética testemunhal no cinema e na literatura precisa, portanto, ser pensada na zona turva da memória e do esquecimento, da verdade e da imaginação, da ficção e do documentário, da crença e da falta. Diante de imagens que faltam, daquelas que colocam em questão os limites da representação ou, ainda, daquelas que existem, precárias e parciais, apesar de tudo, resta a transmissão pela imaginação, sem a qual não haverá elaboração e luto.
Neste ponto, é preciso salientar que o papel central da imaginação como uma das mais importantes faculdades políticas, abordado por alguns filósofos, de Kant a Hannah Arendt ou de Walter Benjamin a Cornelius Castoriadis, será postulado por Georges Didi-Huberman diante da dimensão radicalmente parcial, precária e lacunar dos únicos testemunhos visuais do Holocausto: as quatro fotografias capturadas, em agosto de 1944 na zona do crematório V de Auschwitz-Birkenau, por um membro do Sonderkommando, grupo de prisioneiros judeus obrigados, sob pena de morte imediata, a realizar um trabalho atroz, como direcionar os recém-chegados às câmeras de gás, recolher seus “pedaços” (“stücke”, como os alemães se referiam aos cadáveres), arrastá-los aos fornos crematórios, limpar os dejetos e dispersar as cinzas.
A partir dos intensos debates travados com Claude Lanzmann, Gérard Wajcman e Elisabeth Pagnoux, por ocasião da exposição de fotografias Mémoire des camps. Photographies des camps de concentration et d’extermination nazis (1933-1999), realizada em 2001 em Paris, Didi-Huberman escreve, como resposta à polêmica, seu importante livro Images malgré tout (2003), no qual refuta a ideia de que o Shoah – no lugar do termo “Holocausto”, cuja origem religiosa e sacrificial é bastante problemática, pois tende a transformar o genocídio judeu na realização de um “destino” já escrito e na expiação de uma “culpa” original, preferimos o termo hebraico “Shoah”, que nomeia uma destruição, devastação radical, aquela que deixaria a terra arrasada, reduzida a pó, a nada – seria um evento “inimaginável”, “irrepresentável” ou “impensável” – tese fartamente evocada por teóricos, artistas, cineastas (como Lanzmann), psicanalistas (como Wacjman), formadores de opinião (como Pagnoux) e, mais perigosamente, manipulada pelo negacionismo histórico. “O inimaginável como experiência não pode ser o inimaginável como dogma”, defende Didi-Huberman nesta obra, argumentando que o “inimaginável” corresponderia aqui à “experiência vivida” diante de um espaço desmesurado de dor, e não a um dogma, norma ou imperativo para a “experiência concebida”.
Na entrevista “Alguns pedaços de película, alguns gestos políticos”, concedida a nós a propósito da edição de seu Cascas (2017), misto de ensaio, relato de viagem e narrativa biográfica, Georges Didi-Huberman também ressalta que não se pode fazer da dor um privilégio, uma reserva de exclusividade, comportamento frequente nos discursos de vitimização e nas práticas de legitimação adotadas por certos movimentos minoritários. De acordo com ele, “o que é chamado de ‘vitimização’, ‘dever de memória’ e que é objeto de tanto abuso, consiste em fazer da dor uma obrigação, uma palavra de ordem, um capital psíquico, um fundo de investimento político ou sei lá mais o quê” e esta seria “uma maneira corriqueira de desvalorizar a dor dos outros”.
Por isso, o filósofo e historiador das imagens é enfático ao afirmar que, se a dor não se qualifica e não pode ser trocada por nenhuma outra coisa, o trabalho a ser feito consiste em “fazer da dor, e, logo, da história e das emoções que a acompanham, nossos bens comuns”, isto é, partilháveis e transmissíveis. Pois é somente por meio da transmissão que nos tornamos capazes de não nos resignar diante dos impasses do entendimento. Que nos tornamos capazes, apesar de tudo, de pensar, dizer, olhar, refletir e, sobretudo, imaginar. Não é por outra razão que, diante do “inimaginável”, a imaginação se afirme para Didi-Huberman, a partir de Hannah Arendt, como uma necessidade política.
Escritas de si, escritas do luto
No prefácio de seu livro A cena interior: fatos (2017), coleção de fragmentos construídos na tensão entre memória e reinvenção, sobre sua família deportada durante a República de Vichy, Marcel Cohen adverte o leitor: “Por mais que constituam pequenos sedimentos, os fatos reunidos aqui são lacunares demais para que se possa esboçar um retrato”. Tomando distância de uma literatura que reivindica para si a tarefa de reestabelecer a verdade (baseada “em fatos reais”) e reconstituir a história (produzindo uma ilusão de “continuidade” e “unidade”), esse breve livro, estruturado por oito fotografias e oito fragmentos, é constituído por lembranças de infância, fatos recolhidos de terceiros, testemunhos de parentes, fotografias restantes, imagens de objetos sobreviventes, acasos, sensações e esquecimentos. A pesquisa de toda uma vida encontra-se aqui tracejada em torno da lacuna e do silêncio, do presente e do passado, como retratos sempre inacabados e biografias faltantes. “Que a linguagem tem algo a ver com a perda e o luto, isso eu sabia desde a infância”, escreve o narrador do livro, enquanto recupera fotografias e objetos perdidos, “documentos” afetivos ou vestígios deixados por sua família deportada para Auschwitz.
Não por acaso, a figura do artista, escritor ou cineasta como coletor e colecionador de rastros e ruínas, espécie de detetive e arqueólogo, também está presente em K – Relato de uma busca (2014), investigação de Bernardo Kucinski a respeito do desaparecimento de sua irmã Ana Rosa, militante política durante a ditatura civil-militar brasileira, e em Dora Bruder (2014), busca incansável de Patrick Modiano pelas pistas rarefeitas deixadas por uma jovem, até então anônima e desconhecida do autor, que, como outros milhares, desapareceu durante a ocupação alemã em Paris. Também no cinema, os filmes de found footage ou “metragens encontrados”, feitos com materiais de arquivo das mais diversas procedências, a partir de acervos públicos ou pessoais, são cada vez mais frequentes e contundentes, juntos aos documentários de busca articulados pela primeira pessoa do singular – de Chris Marker a Harun Farocki, de Péter Forgács a João Moreira Salles, de Patricio Guzmán a Flavia Castro e Maria Clara Escobar.
Engendrando uma poética do testemunho, cada uma dessas obras, de modo distinto e singular, trabalha a dimensão explicitamente parcial da enunciação, por vezes num jogo entre a primeira e a terceira pessoas, em uma investigação sobre o desaparecimento que é também formal, ética e estética. Na impossibilidade de consolo diante daquilo que se perdeu, essas buscas – ou elaborações da perda – têm de lidar com rastros, restos e ruínas. E é com tais vestígios, com aquilo que não se escreve e que se inscreve, que resta e que se perde, enfim, com aquilo que falta, que tais obras podem legar a nós uma fundamental reflexão sobre a parcialidade radical do texto e da imagem, bem como sobre os limites, ou mesmo impossibilidades, da representação.
Não é por outra razão que a estética testemunhal e as escritas de si podem tornar-se potentes escritas do luto, como se a singular experiência da dor e da separação, vivida por cada um como irreparável, fosse a condição mesma para que se efetivasse uma passagem do singular ao coletivo, do pessoal ao político. Mas não nos esqueçamos: se o fundamento mesmo da subjetividade está no exercício e na apropriação que cada um faz da língua, sempre coletiva, o singular, no âmbito do testemunho e da autobiografia, seja no cinema ou na literatura, não deve ser pensado como o primado do indivíduo, e sim como efeito da marca que cada um – com seu “ativo da dor”, segundo Barthes, com seu estilo – inscreve no coletivo.