Feminino e Feminicídio no Brasil atual[1][2]
Heloisa Caldas[3]
Os psicanalistas constatam há décadas os efeitos do declínio do Nome-do-Pai e sua pluralização, mostrando que o sujeito busca novas e diversas formas de subjetivar o gozo.
O que não se esperava, tanto na psicanálise como na sociedade mais esclarecida em geral, era o recrudescimento de uma forte resistência às conquistas das minorias plurais e um retorno ultraconservador ao pior do regime patriarcal: a violência sexista, racista e antidemocrática em geral. Uma resistência assim tão poderosa contra a diversidade sexual e social indica a força pulsional na luta entre a ordem patriarcal e uma nova ordem que em instituição. Dentre os desarranjos que este conflito promove, o feminicídio dispara no Brasil.
É possível atribuir várias razões a tamanha escalada de violência contra a mulher. Antes de serem nomeados feminicídios, tais crimes tendiam a ser silenciados ou naturalizados na lógica patriarcal machista, pois, além de não serem considerados pela justiça de forma a beneficiar as vítimas, ainda expunham aspectos privados de suas relações amorosas causando-lhes vergonha e humilhação. Além disso, sem a tipificação específica, estes crimes se dissolviam no amplo espectro dos homicídios. Isso quando não se justificavam como legítima defesa da honra do criminoso, ferido em sua hombridade pela traição de sua mulher. Todos esses aspectos já atestam como, no sistema patriarcal, o corpo da mulher não lhe pertence, mas ao Outro. A despeito de muitas mudanças, a posse do corpo ainda precisa ser afirmada pelas feministas que, hoje em dia, bradam “meu corpo, minhas regras”, para combater inúmeras formas de abuso sexual. Muitos feminicídios resultam da dificuldade de homens aceitarem que suas parceiras os abandonem e que seus corpos não sejam propriedade sexual deles. Enlouquecidos por essa perda, eles passam ao ato e matam a ex-parceira.
Para a psicanálise, o radical feminino, presente no termo feminicídio, serve como chave de leitura pois não se trata de um simples adjetivo aplicável apenas às mulheres. Feminino indica, mais do que diz, algo substancial, porém intangível pela linguagem. Trata-se, aliás, do resto da operação significante pela qual se define um saber-fazer com o gozo, recusando e tomando como alteridade ameaçadora tudo o que difere deste saber. A rigor, o feminino está presente na segregação de forma geral: sexismo, racismo, homofobia, origem social e/ou cultural, etc. Jacques-Alain Miller assinala inclusive que sexismo e racismo são da mesma ordem, uma vez que “homem e mulher são duas raças”, não no sentido físico, mas como efeito de discursos[4] que mudam, conforme a época, mas estabelecem rígidas diferenças quanto ao acesso social e aos direitos humanos dos discriminados.
Não surpreendem, portanto, os dados que apontam mulheres negras como as principais vítimas da violência intrafamiliar no Brasil[5], tampouco que os assassinatos de travestis e transexuais tenham disparado colocando o Brasil em primeiro lugar no ranking[6]. Segundo informações do Atlas da Violência, os dados de feminicídio com vítimas negras têm quase duplicado na última década, em contraposição ao de mulheres brancas que teve leve aumento. Estudos mostram também que metade das vítimas são assassinadas por familiares e cerca de 1/3 dos crimes são cometidos por parceiros ou ex-parceiros[7].
Esses dados corroboram o ataque ao ‘feminino’, segundo a acepção da psicanálise a qual, sempre é bom lembrar, não se restringe à anatomia.
Freud foi o primeiro a apontar a presença do feminino em homens e mulheres, da sua força criativa e do repúdio que causa quando se manifesta. Em Contribuições à psicologia do amor[8], ele já havia destacado a hostilidade ao feminino, abordando as formas do homem exercer sua superioridade, separando as mulheres proibidas das sexualmente acessíveis. O paradoxo reside no fato de que as mulheres da família são proibidas ao sexo, mas não ao amor. Consequentemente, os homens podem apenas amar as ‘mulheres de família’. Em oposição a isso, a ‘mulher da rua’, que não tem as mesmas referências patriarcais ou as perdeu, são aquelas de cujos corpos se pode gozar, mas como são depreciadas é mais difícil amá-las. Deduz-se dessa dicotomia que, para muitos homens, separar o gozo infamiliar em meio ao amor familiar dificulta a confluência, numa mesma mulher, do amor, desejo e gozo. Não por acaso, quando a quarentena, devida à pandemia do corona vírus, forçou as famílias a se isolarem em casa, os índices de violência às mulheres por parte de seus parceiros aumentaram, devido à maior permanência das mulheres na convivência com os agressores[9] e atestando também a dificuldade, por parte dos homens, de lidar com o gozo feminino tomando-o como ameaçador e reagindo a ele de forma brutal.
Hoje em dia, essas considerações freudianas também se reapresentam no que tem sido chamado de masculinidade tóxica para qualificar homens que sempre se colocam em posição de superioridade, de ataque e mesmo desprezo diante do que as mulheres pensam, dizem ou fazem. Foi a esta desqualificação recorrente que Lacan aludiu pela equivocidade em francês entre ‘falar de mulher’ (on dit femme) e ‘difamar’ (diffame)[10]. Há tantas formas sutis de difamar que já se manifestam, como Laurent destaca, movimentos contra “as ‘microagressões’ que qualificam as feridas sutis que afetam os indivíduos expostos a formas de desvalorização por mediação da linguagem reenviando as minorias à sua alteridade”[11].
É possível considerar que o recrudescimento da violência física contra a mulher, e o feminino em geral, passa também pelo fato de os homens terem perdido a exclusividade em muitos campos de atuação e trabalho. Muito da masculinidade da qual os homens se orgulhavam parece se restringir, hoje em dia, à virilidade da sua performance sexual, único refúgio para exercer seu domínio sobre o corpo feminino, o que faz com que uma recusa da parceira se converta em grave ferida narcísica. Isso parece ser, em parte, o que motiva crimes de vingança pela perda de um gozo que foi supostamente subtraído pela mal-dita mulher, uma vez que a relação sexual de completude idealizada inexoravelmente fracassa.
Dentre as contribuições de Freud à psicologia do amor, O tabu da virgindade[12] é um texto bem complexo porque nele Freud toma a hostilidade pelo lado da mulher ao mesmo tempo em que já aponta que sua divisão subjetiva difere da dos homens. Temos aí um plano mais radical de divisão subjetiva – ceder ou recusar a ter o próprio corpo tomado como objeto torna a divisão para a mulher desdobrada entre a que ama ou odeia o que se passa em seu corpo quando tomada pelo Outro como objeto de amor/ódio. Sua questão divide-a, portanto, entre sujeito e Outra para si mesma.
Como J.-A. Miller ressalta, o tabu diz respeito a um gozo e a Mulher comparece aí como figura privilegiada de hétero[13]. Mas isso não é exclusividade das mulheres; o gozo Outro sempre comparece, mais ou menos velado em qualquer parceria. A ilusão é julgar que se apresenta apenas no corpo alheio. Ao contrário, o gozo Outro é o que há de mais alheio no corpo próprio. Sua presença remonta à posição estrutural de advento do sujeito a partir de uma posição de objeto de gozo.
A questão da diferença em termos de objeto de gozo também evoca o que Freud denominou de “repúdio ao feminino”[14], presente nos homens devido ao horror de vir a ser tratado por outro como se fosse uma mulher. Nessa direção, retomo uma indicação de J.-A. Miller de que sentir-se traído e perder a mulher para outro, feminiza o homem[15]. Ferido pela perda da posse que ilusoriamente lhe permitia se conceber sem falta ou furo, o homem passa de sujeito a objeto descartável, sendo levando à loucura passional de vingança.
Vemos assim que a diferença para a psicanálise, antes de ser estrutural como é para a linguagem, surge no pano de fundo do sexual e pulsa nos laços sociais desde a parceria sexual/amorosa até a formação de grupos seja para unir ou destruir. Como assinala Laurent, “o racismo muda seus objetos à medida que as formas sociais se modificam, mas conforme a perspectiva de Lacan, sempre jaz, numa comunidade humana, a rejeição de um gozo inassimilável, domínio de uma barbárie possível”[16].
Se evocamos aqui a convulsão da subjetividade coletiva atual é porque consideramos que os índices de criminalidade sexista, direcionados ao feminino, não podem ser tratados pela simples patologização do autor do crime. Se o número desses crimes aumentou tanto, atingindo majoritariamente mulheres negras, indígenas, pobres, homossexuais e transexuais, há algo nos discursos correntes que alimenta, pelo menos em parte, este crescimento. O ódio à diferença tem sido a tônica da onda de extrema direita antidemocrática que se alastra mundialmente, atingindo o Brasil em cheio. A todo momento o incentivo à posse de armas e ao homicídio se apresenta.
Em março de 2018, um crime chocou os brasileiros: o assassinato de Marielle Franco. Jovem mulher, negra e homossexual, de origem pobre e ex-estudante bolsista, ela se tornara uma brilhante socióloga e política, eleita com destaque vereadora no Rio de Janeiro. Defendia o feminismo e os moradores – em sua maioria, negros – que sofrem o abuso praticado pelas autoridades policias nas comunidades carentes do Rio de Janeiro. Não foi um crime qualificado como feminicídio. Bem poderia ter sido, pois suas motivações políticas se assemelham às dos crimes de ódio ao ‘feminino’ tão pluralmente encarnado nesta jovem.
[1] Versão ligeiramente modificada do original publicado em francês na revista francesa Mental, revue internationale de psychanalyse: Femmes pour le meilleur et pour le pire, n.41, 2020.
[2] Publicada em Latusa, n. 25. Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, Seção Rio. EBP-Rio: 2020.
[3] AME da EBP e AMP. Professora Associada do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise - PGPSA/IP/UERJ.
[4] Miller, J.-A. (2016) Racismo e extimidade. Derivas analíticas, revista digital de psicanálise e cultura da Escola Brasileira de Psicanálise – MG, edição 04. Disponível em: http://revistaderivasanaliticas.com.br/index.php/racismo. Acesso em 04/01/2020.
[5]Mapa da violência no Brasil em 2019. IPEA, Fórum brasileiro de segurança Pública.
[6] http://especiais.correiobraziliense.com.br/brasil-lidera-ranking-mundial-de-assassinatos-de-transexuais
[7] Cf. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13104.htm
[8] Freud, S. (1980.) “Contribuições a vida amorosa”: Um tipo especial de escolha feita pelos homens [1910]; Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor [1912] e O tabu da virgindade [1918]. Obras completas de Sigmund Freud. Edição Standard, volume XI. Rio de Janeiro: Imago.
[9] C.f. https://www12.senado.leg.br/noticias/audios/2020/05/observatorio-aponta-aumento-da-violencia-contra-mulheres-na-pandemia
[10] Lacan. J. (1973/1985) O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, pp. 114-115.
[11] Laurent, É. Lacan Quotidien, n. 861. https://www.lacanquotidien.fr/blog/wp-content/uploads/2019/12/LQ-861-1.pdf
[12] Cf. nota 7.
[13] Miller, J.-A. Los divinos detalles (1989-1990/2010). Los cursos psicoanalíticos de J.-A. Miller. Buenos-Aires: Paidós, pp.103-104.
[14] Freud, S. (1937/1980) Análise terminável e interminável. Obras completas de Sigmund Freud. Edição Standard, volume XXIII. Rio de Janeiro: Imago, p. 285.
[15] Miller, J.-A. Los divinos detalles (1989-1990/2010). Los cursos psicoanalíticos de J.-A. Miller. Buenos-Aires: Paidós, pp.110-112.
[16] Laurent, É. "O racismo 2.0”. Lacan Cotidiano, N. 371, 18 de fevereiro de 2014. http://ampblog2006.blogspot.com.br/2014/02/lacan-cotidiano-n-371-portugues.html