A escrita do corpo em Vaslav Nijinski

 

Fabiana Campos Baptista

 

Je ne ressens les choses que par la chair

Vaslav Nijinski

 

Atribuímos a Freud a primazia e a originalidade de sua tese relativa ao delírio, que ele considera uma tentativa de cura. Se, no momento do desencadeamento, o sujeito se vê invadido por diferentes fenômenos corporais ou de linguagem − sejam eles discretos, sejam eles ruidosos − Freud[i] assinalava que uma mobilização subjetiva começaria a acontecer em seguida, dando início a um processo de reconstrução da realidade. O salto conceitual é imenso: ele constrói a hipótese de que um sujeito psicótico que delira é um sujeito que faz um trabalho psíquico de reconstrução de si e de seu mundo.

Na esteira de Freud, Lacan formalizou as noções de compensação imaginária, metáfora delirante, sinthoma e suplência para dar conta do trabalho subjetivo realizado pelo sujeito psicótico. Para ele, a forclusão do Nome-do-Pai é susceptível de ser compensada em seus efeitos.

Ao se ver confrontado com o súbito desenlaçamento dos anéis que compõem a cadeia borromeana da realidade, o sujeito psicótico tenta reconstruí-la de alguma maneira. Elaboradas ou frágeis, de curta ou de longa duração, podemos dizer que todas as reconstruções têm em comum o fato de poder realizar uma espécie de suplência da carência paterna. Assim, se a hipótese da forclusão da metáfora paterna é válida, é preciso saber que o sujeito pode compensar os efeitos dessa forclusão de diferentes formas, inclusive sem o desenlaçamento propriamente dito.

Nesse sentido, é conhecida a análise que Lacan faz de Joyce e sua hipótese de que, se Joyce era louco, ele não descompensou devido à sua arte. Desse modo, Lacan introduz um ponto de vista positivo em relação às possibilidades de amarração do nó que falha. Ele nota que a escrita de Joyce é uma correção bem-sucedida do nó, pois a “[...] epifania é o que faz com que, graças à falha, inconsciente e real se enodem”.[ii]

Lacan discerne esse efeito hermético de sua obra a partir da leitura das Epifanias, uma série de pequenos textos, apresentados sob a forma de diálogos, a partir dos quais Joyce justificava e fundava a certeza de sua vocação como artista. A via da arte lhe permitiu um uso específico do sintoma, a tal ponto que ele pôde restituir a amarração, acrescentando um corretor em outro ponto que ligava o simbólico ao real, impedindo o deslizamento do imaginário. Esse corretor permitiu a Joyce suprir a ausência da função paterna, erigindo seu Nome próprio de artista no lugar do Pai carente. Lacan se interroga: “[...] não haveria aí algo como uma compensação desta demissão paterna, desta Verwerfung efetiva, no fato de Joyce se sentir imperiosamente chamado?”.[iii]

Assim, Lacan infere que Joyce pôde realizar a cerzidura do ego por um tipo de escrita fundada naquilo que ele chamou de sinthoma. Nessa perspectiva, o sinthoma de Joyce é uma suplência. Mas nem toda suplência é um sinthoma (ligação entre o simbólico e o imaginário para impedir o deslizamento do imaginário).

Em todo caso, o que nos interessa aqui é saber que a função de suplência é ligada à possibilidade de o sujeito se manter na realidade de forma a poder encontrar para si certa inserção simbólica e uma saída outra para seu conflito inicial. Assim, ao se fazer um Nome pela via da literatura e, com ele, entrar no registro do discurso, Joyce faz laço social. A obra se torna o que designa o lugar do sujeito.

Se podemos dizer, com Freud, que Schreber consegue uma espécie de estabilização através da reconstrução delirante da realidade, será que haveria outras formas de se manter “estável” na estrutura? Se podemos dizer, com Lacan, que Joyce consegue uma espécie de estabilização através da construção de um Nome, como podemos qualificar ou caracterizar as produções da loucura? Qual a especificidade da produção artística do psicótico e qual a sua função?

Foi assim que nos interessamos pela trajetória de vida do bailarino e coreógrafo russo de origem polonesa Vaslav Nijinski (1890-1950) e pelas suas formas de se manter na estrutura e lidar com o real que o invadia. Além do notável e original trabalho com o corpo que realizou durante anos como bailarino e coreógrafo, Nijinski escreveu, no momento da proliferação de uma série de ideias delirantes, um diário. Do uso do corpo na dança e nas coreografias e do uso do corpo na escrita do diário, Nijinski, esse sujeito da criação, encontra, a nosso ver, diferentes formas de saída para o conflito psíquico. Pensamos que, se, por um lado, o sujeito psicótico tem um tipo de elaboração sintomática que não faz laço social, tal como o delírio ou a alucinação, por outro lado, a arte ou a obra permite ao sujeito realizar um tipo de laço social porque o faz entrar no discurso e se inserir simbolicamente. Sustentamos a ideia de que Nijinski fez uso tanto da dança quanto da escrita como tentativas de cura.

A sagração de Nijinski

A vida e a obra de Nijinski apontam para diferentes indícios da estrutura psicótica. Se a princípio esses sinais são mais discretos − pelo menos no âmbito de sua vida pessoal −, no âmbito da criação artística sua dança e suas coreografias são notadas, notáveis e muito polêmicas. Filho de bailarinos poloneses, com irmãos bailarinos, a dança foi sua língua materna e familiar. Ele vivenciou de forma passiva as crises depressivas da mãe e a raiva do pai, que batia nele constantemente. Após a separação dos pais, a família se muda para São Petersburgo, onde Nijinski inicia, de fato, seus estudos em dança aos dez anos, na Escola Imperial de Balé, a instituição de dança mais conhecida da época. O menino tímido, de saúde debilitada e com dificuldades de se expressar através das palavras, encontrou na dança um meio de expressão. Estudou em várias escolas de dança em São Petersburgo onde, segundo consta, tinha dificuldades em estabelecer relações com seus colegas, dizendo-se sentir estranho entre eles.

A queda do irmão mais velho e bailarino de uma janela foi um acontecimento marcante na vida do pequeno Vaslav. Impressionado pelas consequências desse acidente (cujas razões não se sabe ao certo) que levaram o irmão a ser internado num sanatório, Nijinski parece ter despertado pela vontade de atuar no âmbito profissional. Rapidamente foi notado por seu especial talento.

Mikhail Obukhov, um professor de Nijinski, dirá maravilhas sobre os saltos mais extraordinários que ele já viu, afirmando que o franzino Vaslav atravessava todo o palco praticamente voando, com seus passos de grand assemblé e entrechat-dix.[iv]

O bailarino somente se tornou mundialmente conhecido após integrar, aos dezenove anos, a célebre companhia de dança Ballets Russos, de São Petersburgo e com sede em Paris, dirigida pelo notável empresário Serge Diaghilev. Trabalharam em montagens da companhia grandes nomes do mundo artístico, como os compositores Igor Stravinsky e Claude Debussy, o pintor Pablo Picasso e o cineasta Jean Cocteau. Além disso, Diaghilev lançou grandes nomes na dança, como o de Ana Pavlova e do próprio Vaslav. Aos poucos, Diaghilev dá a Nijinski um lugar de destaque na companhia, notadamente como solista, em que ele protagonizou diversos espetáculos – LesSilfides, Petrushka, Sherazade − compostas pelo coreógrafo Mikhail Fokine. Sabe-se que Nijinski e Diaghilev mantinham uma relação amorosa e juntos percorreram toda a Europa, em turnê com a trupe.

 

Figura 1 - Stravinsky e Nijinski durante
a montagem do balé Petruschka, de Fokine, em 1910.

 

Nessa mesma época, Nijinski começa a criar. Ele compõe, no total, quatro coreografias: A tarde de um fauno (L’après midi d’un faune, 1912, com música de Debussy); Till l’Espiègle, 1913; A sagração da primavera (Le sacre du printemps, 1913, com música de Igor Stravisnky) e Jeux, 1913.

Suas técnicas coreográficas e os seus conceitos de expressão corporal, inéditos até então, rompiam com as características fundamentais do balé tradicional e provocavam escândalo. Alguns estudos, como o de Bourcier (1987) consideram que as coreografias de Nijinski inauguram a dança moderna, que é uma forma de dança autônoma e independente do balé clássico, com técnicas mais livres e com predominância de trabalhos no chão.

 

Figura 2 - Nijinski durante os ensaios do balé
A tarde de um fauno, em 1912.

Apesar de ter composto apenas quatro coreografias, é surpreendente o alcance mundial que elas tiveram e ainda têm. Além disso, Nijinski inventou um sistema de notação em dança, uma escrita do movimento muito particular em que ele transcrevia os movimentos do corpo a ser executados pelo bailarino, numa espécie de partitura do movimento. Esse tipo de notação sequer existia na época, pois não havia nenhum sistema de notação universal que pudesse ser adotado pelos coreógrafos, como já acontecia no âmbito musical desde a época grega. Em seu diário, Nijinski fala um pouco sobre esse sistema de notação inédito: “queria ausentar-me do presente, por isso me pus a anotar meu balé O fauno segundo meu sistema de notação. Era um longo trabalho. Levei quase dois meses. O balé durava dez minutos”.[v]

Entre as apresentações de Nijinski, o espetáculo do fauno foi um dos mais polêmicos de sua carreira. A estreia desse balé em 1912, com música de Claude Debussy sobre um poema de Mallarmé, foi um grande escândalo. A originalidade da coreografia e a audácia da cena final, em que o personagem do fauno, representado pelo próprio Nijinski, simula o ato de masturbação, suscitaram reações de protesto, mas também de admiração, como o fez Auguste Rodin.[vi]

 

Figura 3 – Nijinski. Escultura em gesso por Rodin em 1912
(A. 17,5 cm; L. 9,39 cm; P. 6,5 cm)

 

Aqueles que viram Nijinski dançar testemunharam uma verdadeira metamorfose quando ele estava no palco. Se fora dele era tímido e reservado, dentro dele o bailarino entrava de cara nos personagens que representava e tinha até dificuldades em sair deles depois. Após o espetáculo, Nijinski era visto fazendo piruetas e saltos sem parar.

Em 1913, durante uma turnê da companhia pela América do Sul, Nijinski conhece Romola, uma jovem bailarina húngara que se apaixona perdidamente por ele. Eles se casaram e essa união parece ter sido o pivô do fim do relacionamento entre ele e Diaghilev, que, ao saber do acontecimento, o expulsa da companhia. Tal ruptura se dá em três planos: afetivo, artístico e material, já que, além de amante, Diaghilev ajuda Nijinski e sua família financeiramente. Dá-se início, então, a um período difícil para Nijinski, notadamente no que concerne ao seu estado psíquico. Privado do apoio financeiro de Diaghilev e da notoriedade conquistada em suas turnês com os Ballets Russos, Nijinski não consegue erguer sua própria companhia de balé e desiste de dançar. Aos 24 anos, os primeiros sinais de descompensação começam a aparecer. Sentindo-se perseguido por seus colegas bailarinos, Nijinski está exausto e perturbado. Por recomendação médica, ele se muda com a família para Saint Moritz, em 1917, para repousar, após ter vivenciado alguns episódios delirantes.

A dança da vida contra a morte

Foi então que, quase dois anos depois, no dia 19 de janeiro de 1919, o seleto público reunido no salão do Hotel Suvretta, em Saint Moritz, vivenciou uma experiência singular. Eles não poderiam supor que pela última vez Vaslav Nijinski iria se apresentar ali.

Embora o início de sua estadia nas montanhas tenha sido tranquilo, Nijinski aproveitava o tempo para passear com a filha Kyra, de quatro anos (seu estado psíquico rapidamente se deteriorou, e os sinais de descompensação se proliferaram). Ideias delirantes e de grandeza tomaram conta do bailarino. Ele estava agressivo com seus familiares e corria enlouquecidamente pelas montanhas para ouvir os “mandamentos” que Deus lhe ditava. A certa altura, ele acreditava ser Deus e pregava para os habitantes de Saint Moritz. Além disso, produzia sem cessar: ensaiava dezesseis horas por dia, fazia uma série de desenhos abstratos, trabalhava num sistema inédito de notação da dança e compunha algumas coreografias – infelizmente inacabadas.

Tomado por essa agitação de cunho delirante, naquela noite do dia 19, o bailarino resolve representar ao público uma coreografia chamada posteriormente por sua esposa, Romola, de a “dança da vida contra a morte”. O público, que tinha ido ao Hotel para se divertir, está, na verdade, estupefato. Nijinski havia criado uma coreografia que evocava os horrores da guerra na Europa.

Segundo Romola:

Ele fazia viver, diante de nossos olhos, toda uma humanidade sofredora e abalada pelo horror. Era trágico. Seus gestos tinham uma dimensão épica. Como um mágico, dava-nos a ilusão de flutuar acima de uma multidão de cadáveres. O público, horrorizado, parecia em completo estupor, estranhamente fascinado... Vaslav era uma dessas criaturas irresistíveis e indomáveis, como um tigre fugido da selva, capaz de nos devastar de um momento para outro.[vii]

Nesse mesmo dia, ao que parece, ainda tomado por inúmeras ideias delirantes, Nijinski começa a redação de seu diário – que ele chamou de Cadernos.[viii] Escrito em russo e em somente seis semanas – já que o redigia dia e noite, sem cessar – as quase trezentas páginas dos Cadernos iniciam-se com a descrição das horas que antecederam a curta e trágica apresentação:

Representei de jeito nervoso de propósito, pois o público me compreenderá melhor se eu estiver nervoso [...]. Eu estava nervoso, pois Deus queria excitar o público. O público tinha vindo para se divertir. Dancei coisas assustadoras. Eles tiveram medo de mim, pois achavam que eu queria matá-los [...]. O público não gostou de mim, pois quis ir embora. Eu quis continuar dançando, mas Deus disse: “Chega!”. Então parei.[ix]

Nijinski está tomado pelo intenso desejo de escrever tudo o que viveu naquela noite: “Vivi muitas coisas, por isso quero anotá-las. Só vivi horrores”.[x] Não se sabe se a escrita do diário se deu de forma espontânea ou se foi encorajada pelo seu médico, o Dr. Fränkel, que iniciava seus estudos em psicanálise e tentava aplicar alguns conhecimentos recentemente adquiridos. Em linguagem oral e intensa, o bailarino escreve muito sobre o Dr. Fränkel, sobre Diaghilev, sobre sua esposa, além de expor suas ideias sobre a dança e a sua vida pessoal:

Em relação ao Dr. Fränkel, Nijinski parece nutrir sentimentos não só de simpatia mas também de agressividade:

O Dr. Fränkel é um homem bom. Eu não o compreendia quando achava que ele era mau. Ele não é mau, pois quer ajudar as pessoas. Sei que essa ajuda não é uma obrigação para os doutores. A ajuda médica é uma obrigação dos doutores.[xi]

E mais adiante:

O doutor Fränkel pediu coisas desarrazoadas, pois queria estudar meus nervos. Respondi rapidamente e com lógica. Escrevi versos especificamente para que ele os esconda, como lembrança. Ele não quis pegar um poema, pois achou que esse poema não seria importante para o estudo da psicologia. O doutor fez tudo isso de propósito, achando que eu não compreendo o que faço. Ele pensa que eu não conheço suas artimanhas. Pensa que eu perdi a cabeça.[xii]

Podemos dizer que os Cadernos são uma espécie de autoanálise, em que aparecem fantasias, lembranças e associações livres, sem que haja exatamente um texto com um delírio constituído e sistematizado. De uma maneira geral, a escrita é um pouco caótica. O texto do diário é composto por quatro cadernos que devem constituir, posteriormente, “o livro”, que se chamaria O sentimento e que ele queria ver “publicado em vida, em muitos milhares de exemplares”, para que toda a humanidade pudesse tirar proveito de seus ensinamentos: “Sei que todos vão querer ser meus alunos, por isso espero que compreendam minha doutrina. Tudo o que escrevo é uma doutrina indispensável à humanidade”.[xiii] Dos quatro Cadernos, apenas os três primeiros estão publicados. Eles foram escritos a lápis, em letra caprichada e praticamente sem rasuras. O título deles é Vida e são assinados por Deus Nijinski. Ele escreve:

Escrevo a vida, e não a morte. Eu não sou Nijinski, como eles pensam. Eu sou Deus no homem. [...] Quero assinar Nijinski para a publicidade, mas meu nome é Deus. Amo Nijinski, não como Narciso, mas como Deus. Convém escutar Nijinski, pois ele fala pela boca de Deus [...]. Eu sou Deus, Nijinski é Deus.[xiv]

O quarto caderno, um anexo aos três primeiros, chama-se Morte e é composto por poemas e cartas.[xv]

Em seus escritos, Nijinski atribui uma importância àquilo que sente. Sempre fala de sentimento em oposição à intuição. Para ele, pensar é uma atividade cerebral que separa o homem de sua verdadeira natureza. Ele prefere o sentimento à razão, e fala dela como uma espécie de defeito.

Ao final do mês de janeiro, logo após a apresentação em Saint-Moritz, a saúde mental de Nijinski piora consideravelmente. Romola decide consultar outro médico e envia uma carta ao professor Eugen Bleuler, então diretor do Hospital Psiquiátrico Burghölzli, em Zurique, solicitando uma consulta para o esposo.

Alguns minutos antes de ir para lá, Nijinski escreve: “Irei agora... Estou esperando... Não quero...”.[xvi] Bleuler o diagnostica uma “confusão mental de natureza esquizofrênica, acompanhada de leve excitação maníaca”.[xvii]

O médico considera inútil internar Nijinski e aconselha Romola a se separar dele, para que ele não tenha mais obrigações familiares e possa trabalhar em suas coreografias, desde que receba os cuidados adequados. Horrorizada com a sugestão de Bleuler, Romola o leva de volta para Saint-Moritz. A piora do quadro foi considerável, o que fez com que o Dr. Fränkel sugerir a internação de Nijinski. Ele passará o resto de sua vida internado, até falecer em Londres, em 1950.

Enlaçamentos do corpo

Se os sinais de uma descompensação psíquica não tardaram a aparecer após a drástica ruptura artística e afetiva com Diaghilev, é interessante observar que, antes desse acontecimento, Nijinski conseguia se manter no laço social. A dança tem uma função estruturante para ele, isto é, ela é um fator de organização psíquica. A dança aparece como uma espécie de escrita do corpo: tanto como superfície onde se pode escrever – a dança em si −, tanto como instrumento de uma escrita, em que o movimento se inscreve no espaço – a coreografia. Nijinski fazia brilhantemente as duas coisas.

Aclamado pelo público, o bailarino conseguia, através de sua dança original e de suas coreografias de vanguarda, se manter estável. Podemos dizer que a criação coreográfica, via corpo, permitiu a ele instaurar o laço social, por entrar no discurso e se inscrever na cultura. Como o discurso é o que sustenta os modos de laço social, podemos dizer que Nijinski se inscreveu no discurso pela via da criação de um tipo laço social realizado através de seu corpo e os seus movimentos – a dança e suas coreografias. Ser bailarino e ser reconhecido como tal representavam Nijinski e fez com que ele pudesse estabelecer um laço social. Aqui retomamos uma ideia de Milner, em A obra clara, em que ele diz: “A obra não é uma matéria, mas uma forma que organiza a cultura”.[xviii]

Para ele, o corpo é um lugar em que toda a transformação é possível: o espaço cênico lhe permitia abolir certos limites. Consagrado pela crítica e pelo público como o Deus da dança, ele tomará tal nomeação ao pé da letra: tomado pelo delírio de ser o escolhido de Deus e por vezes se considerar o próprio Deus, a dança será para ele uma tentativa de fazer com o corpo algo que escapa.

A dança tinha, para Nijinski, a função de dialogar com o social e fazê-lo circular na cultura: “Eu sou Deus. Eu sou espírito. Eu sou tudo. Sei que muita gente dirá que Nijinski enlouqueceu porque é bailarino e ator”.[xix] E mais adiante: “Sou um senhor. Sou um aristocrata. Sou um czar. Sou o imperador. Eu sou Deus. Eu sou Deus. Eu sou Deus. Eu sou tudo. Eu sou a vida. Eu sou o infinito”.[xx]

A essência de sua obra, de sua assinatura, se fazia pelos movimentos de seu corpo e pela notação coreográfica que ultrapassou todos os limites do tradicional no balé clássico. Entretanto, se a escrita do corpo tinha para ele a função de mantê-lo no laço e, consequentemente, estável, a escrita do diário foi uma tentativa, relativamente fracassada – já que delirante e caótica − de tentar se re-compor pela via da letra. Tais recursos nos fazem pensar que nem sempre o suporte da letra é capaz de dar ao sujeito um lugar simbólico.

Fabiana Campos Baptista, é psicanalista, mestre em psicologia (UFMG), mestre em psicanálise (Universidade Paris 8), doutora em psicopatologia e psicanálise (Universidade Paris 7 - Diderot Sorbonne Cité), professora do curso de psicologia do Centro Universitário de Belo Horizonte (UNIBH).
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Referências

BOURCIER, P. História da dança no ocidente. São Paulo: Martins Fontes, 1987.

DUMAIS-LVOWSKI, C. Prefácio. In: NIJINSKI, V. Cadernos de Nijinski. O sentimento. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1998.

FREUD, S. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (1911). III. Sobre o mecanismo da paranoia. In: ______. O caso Schreber, artigos sobre técnica e outros trabalhos (1911-1913). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 2006. p. 21-89. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 12).

LACAN, J. Le Séminaire, livre XXIII: le sinthome (1975-1976). Paris: Seuil, 2005.

  1. A obra clara: Lacan, a ciência e a filosofia. Paris: Seuil, 1995.

MOULINIER, A.-G. Journaux intimes de la folie: étude différentielle de l’écriture du sujet dans l’hystérie et la schizophrénie à partir des écrits de Mary Barnes et de Vaslav Nijinski. 2010. 380 f. Tese (Doutorado em Psicologia) - Université Rennes 2, Université Européenne de Bretagne, 2010.

NIJINSKI, R. Nijinski. Paris: Denoël, 1938. In: DUMAIS-LVOWSKI, C. Prefácio. In: NIJINSKI, V. Cadernos de Nijinski. O sentimento. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1998.

NIJINSKI, V. Cadernos de Nijinski. O sen

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Notas

[i] FREUD, (1911) 2006.

[ii] LACAN, (1975-1976) 2005, p. 151.

[iii] LACAN, (1975-1976) 2005, p. 89.

[iv] MOULINIER, 2010, p. 349.

[v] NIJINSKI, ([1938] 1998), p. 212.

[vi] Nijinski aceitou posar para Rodin em julho de 1912, como forma de agradecimento ao apoio que o escultor lhe dera logo após a repercussão negativa da apresentação de A tarde de um fauno.

[vii] NIJINSKI apud DUMAIS-LVOWSKI, p. 14.

[viii]A edição integral dos originais dos Cadernos foi publicada somente em 1995, na França, pela editora Actes Sud, graças ao consentimento da filha de Nijinski, Tamara.

[ix] NIJINSKI, 1998, p. 28-29.

[x] NIJINSKI, 1998, p. 30.

[xi] NIJINSKI, 1998, p. 76.

[xii] NIJINSKI, 1998, p. 92.

[xiii] NIJINSKI, 1998, p. 84.

[xiv] NIJINSKI, 1998, p. 84.

[xv] A integralidade das cartas e poemas não foi acrescentada na versão publicada dos Cadernos.

[xvi] NIJINSKI, 1998, p. 105.

[xvii] DUMAIS-LVOWSKI, 1998, p. 16.

[xviii] MILNER, 1995, p. 14.

[xix] NIJINSKI, 1998, p. 219.

[xx] NIJINSKI, 1998, p. 220.

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