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 logoder Revista Derivas Analíticas - Nº 21 - Agosto de 2024. ISSN:2526-2637

 

“Flor que se cumpre sem pergunta”  
Considerações sobre Lalíngua e Tradução  

Yolanda Vilela
Psicanalista

Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP)
e Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
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A word is dead
When it is said,
Some say.I say it just
Begins to live
That day.

(Emily Dickinson)[1]

txtYolanda21 2024

 
As traduções do poema de Emily Dickinson que vemos acima expõem os usos muito distintos que podem ser feitos da língua e da linguagem; elas permitem distinguir, por exemplo, o que está em jogo numa tradução proposta pelo Google ou pelo ChatGPT, diversamente do trabalho com a língua efetuado por um sujeito dividido pelo fato de habitar a linguagem. Vale lembrar, de início, que embora a linguagem artificial possa, eventualmente, propor uma tradução razoável do ponto de vista gramatical, ela não resulta de nenhum desejo de dizer, ou seja, ainda que seus enunciados “imitem” a linguagem, não estamos às voltas com nenhuma forma de enunciação. ChatGPT “consiste numa abordagem probabilística da linguagem que culmina na escolha de palavras através de um sistema de coocorrências, oriundos de um algoritmo, e não da cultura, do raciocínio ou de uma intencionalidade” (ANSERMET; FORESTIER, 2023, p. 54, tradução nossa). Isso quer dizer que as incertezas e as ambiguidades que conferem sutileza à língua, que fazem a sua singularidade, escapam ao algoritmo.

Nesse sentido, a linguagem poética é particularmente apta a driblar e a expor os limites desse sistema baseado em aproximações estatísticas. O verso “flor que se cumpre sem pergunta”, incorporado à tradução do poema de Dickinson por seu tradutor José Lira, mostra o alcance de uma enunciação quando ela se descola do enunciado. Para o tradutor, nesse tipo de “invenção” é frequente a intromissão de ecos de outros textos que ajudam a compor o texto traduzido. Tal recurso não torna a tradução necessariamente infiel, mas ele é parte da busca por aquilo que se quer dizer. Poderíamos afirmar que, ao introduzir no poema, no “original”, um verso que não existe, o tradutor dá um “empurrãozinho na língua”, como dirá J. Lacan. Assim, é possível observar que a poesia e a tradução de poesia se caracterizam por revelar, de forma privilegiada, a dimensão viva da língua, isto é, a enunciação elevada à sua potência máxima.

Por sua vez, a prosa – poética ou não – também revela os desafios da enunciação e o estatuto de uma língua viva e atual que se encontra na superfície mesma da linguagem. Assim, um breve recorte da prosa de Geovani Martins (2020) apresenta uma das dimensões do conceito lacaniano de lalíngua. No texto “O museu da língua”, num estilo marcado pela oralidade, o autor carioca afirma:

Quando li Cidade de Deus pela primeira vez, já havia passado por romances de Machado de Assis, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa, os contos de Clarice Lispector, pela poesia de Drummond e Pessoa. Quero dizer, naquele momento, eu já tinha noção do que a língua podia fazer comigo em matéria de sentimentos. Sensações. Com o romance de Paulo Lins, experimentei algo totalmente novo. Uma espécie de nostalgia da língua. (MARTINS, 2020, p. 61)

Em Cidade de Deus, Paulo Lins (2002) explora gírias e expressões populares que circulavam em algumas comunidades cariocas durante as décadas de 1960 e 1980. Para Geovani Martins (2020, p. 61), o reencontro com aquelas gírias e expressões, no livro de Lins, “foi como receber um abraço da língua”. Nesse sentido, o reencontro com a expressão “cabeça de nós todo”, apelido pelo qual seus tios chamavam os sobrinhos, foi

como voltar no tempo. Por um instante, esquecia da trama e de tudo. Só consegui pensar no quintal de minha avó, nas brincadeiras de rua, naquele bairro que não existe mais. Em todo livro, vivi esse tipo de emoção. Reencontrar palavras. Jeitos de falar. Então, outros leitores espalhados pelo país, deviam sentir o mesmo quando reencontravam certas palavras, escritas em seus sotaques. Uma nova dimensão afetiva da literatura e da própria língua se revelava. (MARTINS, 2020, p. 61)

“Cabeça de nós todo” interrompe o fluxo da leitura e a trama narrativa deixa de ocupar o primeiro plano, chegando a ser momentaneamente esquecida. “Cabeça de nós todo” transporta para outra cena, feita de afetos, e uma nova dimensão da língua se revela. Da mesma forma, Geovani relata que a expressão “já é” causou estranhamento quando ouvida pela primeira vez por um de seus amigos. Havia nela uma “aparente incompatibilidade de tempos que embaralhava tudo” (MARTINS, 2020, p. 62), conta. Embora o significado tenha sido percebido, a expressão não fazia sentido. O amigo levou tempo para incorporá-la ao seu próprio vocabulário. Mas não teve jeito. A expressão se afirmou de tal forma que só restava aceitá-la. “Já era”.

“[...] nostalgia da língua”; “[...] abraço da língua”; [...] "dimensão afetiva da língua”: essas frases curtas, pinçadas aqui e ali no texto do escritor carioca, vibram em consonância com as descrições lacanianas de lalíngua, definida em contraposição à língua. Lalíngua é primeira em relação à linguagem porque nela prevalecem o som, o mal-entendido e as marcas afetivas das primeiríssimas relações com o Outro. J. Lacan propõe esse neologismo no início dos anos 1970 para indicar a diferença essencial entre língua e linguagem. A dimensão do sentido e da significação, presentes na fala e na linguagem, bem como as operações da metáfora e da metonímia, bastavam, até aquele momento, para explicar a produção do sentido e da significação. Porém, no último e no ultimíssimo ensinos de Lacan, o estatuto do inconsciente muda e há uma confluência entre a nova concepção do inconsciente e os conceitos de falasser e de lalíngua, que então se consolidam.

A abordagem do inconsciente se modifica conforme as próprias elaborações de Lacan sobre a linguagem. Assim, a formulação lacaniana “o inconsciente está estruturado como uma linguagem” diz respeito a uma prática da psicanálise que prioriza as formações do inconsciente a serem decifradas; no inconsciente assim definido, a dimensão simbólica prevalece e o inconsciente se encontra no nível da linguagem como estrutura, bastando para isso as noções de metáfora e de metonímia. No último ensino de J. Lacan, a dimensão estrutural do inconsciente não é mais predominante e a ênfase já não recai sobre o sentido a ser decifrado; privilegiam-se os “afetos enigmáticos” e os elementos dispersos, que não se encadeiam e permanecem fora do enquadre da estrutura, que constituem lalíngua.

Com o termo falasser, J. Lacan vai mais além do termo sujeito, cuja existência se funda na articulação significante – o sujeito representa um significante para outro significante. O termo falasser permite considerar a fala e a linguagem não apenas na vertente da decifração, mas também, e sobretudo, na dimensão do gozo.  

Nesse contexto, lalíngua é definida por J. Lacan para indicar, expor o enlaçamento entre o significante e o gozo. O que se designa com lalíngua, neologismo que condensa o artigo e o substantivo, é a dimensão sonora, a prevalência da fruição do uso particular da língua anterior à entrada dos significantes-mestres que condicionam o laço social e as regras formais da linguagem.

Dito isso, o que nos interessa destacar é a atualidade, a dimensão viva de lalíngua, que se recria a partir do momento em que se fala ou que se traduz. Segundo Lacan (1975-76/2007, p. 129): “Ela é viva porque a criamos a cada instante. É por isso que não há inconsciente coletivo. Há apenas inconscientes particulares, na medida em que cada um, a cada instante, dá uma mãozinha à língua que ele fala”.

Anterior à linguagem propriamente dita – linguagem que se compartilha graças a um assentimento subjetivo ao laço social–, lalíngua é um amontoado de retalhos sonoros feito de marcas deixadas pelas palavras do Outro, um emaranhado de sons, tons, gestos e expressões. O balbucio da criança é, nesse sentido, o gozo da pura sonoridade, em que predomina o som a despeito do sentido. Jamais se renuncia a isso; essa dimensão prevalece mesmo após a “mortificação” imposta pelo aprendizado da língua. As palavras que pronunciamos seriam ressonâncias de marcas passadas. Mas há uma atualidade e uma sobrevivência de lalíngua que nos impede de situá-la unicamente no passado, irrompendo pontualmente no presente. Lalíngua é viva e atual, pois a recriamos sempre que tomamos a palavra.

A partir do momento em que falamos, lalíngua se presentifica: seja porque um significante tem muitas significações e “os significados vão muito além da etimologia”, conforme diz Geovani Martins; (2020, p. 62); seja porque, ao traduzir, recriamos a língua a partir de nossa própria lalíngua: “Traduzir é perguntar-se, várias vezes por dia: ‘É assim que se diz ou estou inventando?’”, como se questiona a poeta e tradutora Laura Wittner; (2023, p. 80); seja porque lalíngua se imiscui na linguagem e não consigo dizer exatamente o que quero e a palavra fica na ponta da língua, etc.

Jacques-Alain Miller (2018, p. 12, tradução nossa) afirma que “Lacan se exprimia numa língua falada unicamente por ele”, língua que ele se esforçava em ensinar aos outros. Trata-se de compreender essa língua, e Miller diz ter compreendido a língua de Lacan, de fato, somente depois de tê-la traduzido, ou seja, foi preciso que o texto estivesse estabelecido, reescrito por ele, para que aparecesse a trama complexa da invenção de Lacan. Isso mostra que o trabalho do tradutor, daquele que traduz a língua do Outro, consiste em pontuar, escandir, cortar e fazer ressoar o que se diz, a fim de alcançar a dimensão própria do dizer, mais além do que é dito. Jacques-Alain Miller (2018, p. 12, tradução nossa) explicita:

Trata-se, para mim, de encontrar o que Lacan quis dizer, mas que ele não disse, a não ser de modo imperfeito, obscuro. Evidentemente, esse exercício é arriscado porque o significante resiste à intenção de dizer. Trata-se de encontrar o que ele quis dizer o mais próximo possível do que ele disse. [...] Se eu tivesse que qualificar o que fiz, e que eu deveria ter feito ainda mais, eu diria que foi traduzir Lacan. Foi uma tradução!

Da mesma forma, em outro momento J.-A. Miller (2021, p. 78, tradução nossa) pôde dizer: “Quando eu digo e quando eu repito, não é o mesmo que eu digo. Quando cito Lacan, não estou dizendo o que Lacan disse”. Aqui, assim como no caso do verso acrescentado ao poema de Dickinson, o que se constata é que o tradutor, necessariamente, entra com “algo de seu”, com a sua lalíngua; se assim não fosse, nosso acesso ao ensino de Lacan teria se restringido à “datilografia da estenografia”, nada que o ChatGPT não possa tentar fazer hoje... Porém, como mensurar as consequências de um procedimento dessa natureza?

Outro tópico que merece ser evocado diz respeito às posições de S. Freud e J. Lacan acerca da articulação entre tradução e interpretação. Nesse sentido, o conceito de lalíngua é bastante esclarecedor, uma vez que ele é um divisor de águas entre “o que se traduz” e “o intraduzível”. Numa carta a Fliess, datada de 6 de dezembro de 1896, a famosa “Carta 52”, Freud (1896/1969) descreve a evolução da psique como uma sucessão de inscrições, cada uma traduzindo a anterior numa língua diferente. Não há Isso biológico, originário. O inconsciente não designa senão o efeito na psique do que é progressivamente recalcado. A palavra que Freud emprega para dizer do recalque é Verdrängung. O recalque não remete a nada de substancial; Freud (1896/1969, p. 319) o define, nessa Carta, como “falha de tradução”, no sentido em que a tradução não operou, não existiu. É assim que uma tradução que não se realizou forma estranhas ilhazinhas no oceano das emoções, das sensações, das impressões, das percepções. No cerne do nosso corpo, lalíngua opaca nos descentra, podemos dizer.

S .Freud propõe certa equivalência entre interpretação e tradução. A decifração do inconsciente, segundo ele, seria a tradução de um sentido inconsciente, ali onde houve uma falha de tradução. O efeito de tal falha, que não deixa de ser uma recusa do sujeito, é a proliferação do trabalho do inconsciente, tal como o vemos no sonho, em torno do intraduzível próprio do recalque. Podemos dizer que o inconsciente trabalha a partir das marcas iniciais e intraduzíveis do gozo que concerne a cada sujeito e que a interpretação analítica, tal como a concebe classicamente Freud, é uma tentativa de traduzir, na linguagem do sistema pré-consciente/consciente, o que está sob o domínio do recalcado.

J. Lacan, por sua vez, ao distinguir inconsciente e lalíngua, abre uma outra perspectiva quanto à articulação entre tradução e interpretação. Retomando o que caracteriza lalíngua, podemos dizer: lalíngua é um tipo de saber que não deve ser confundido com o saber enunciado; lalíngua não se reduz ao balbucio nem ao prazer que a criança experimenta com as palavras, ao contrário, lalíngua está sempre presente na superfície mesma da linguagem cotidiana, como já sublinhamos, e a presença do inconsciente é uma prova disso; longe de desaparecer quando o sujeito faz uso da linguagem, lalíngua permanece na linguagem e deixa marcas do encontro do sujeito com o gozo; contrariamente ao saber linguístico sobre a linguagem, que não tem necessariamente efeito sobre lalíngua e sobre o modo de falar, o inconsciente é um saber-fazer com lalíngua. As formulações de J. Lacan (1972-73/1985, p. 190) no Seminário 20 são muito contundentes:

A linguagem, sem dúvida, é feita de lalíngua. É uma elucubração de saber sobre lalíngua. Mas o inconsciente é um saber, um saber-fazer com lalíngua. E o que se sabe fazer com lalíngua ultrapassa de muito o de que podemos dar conta a título de linguagem.

O inconsciente concebido como um saber-fazer com lalíngua aponta, mais além das concepções freudianas, para o intraduzível, isto é, para o modo como cada sujeito lida com o seu próprio intraduzível.

Finalizando essas considerações, podemos dizer, em torno desse ponto preciso, que a interpretação analítica tem em comum com o trabalho de tradução o fato de visarem a dimensão da enunciação inerente ao uso da linguagem. Além de desvelar o sentido ou a intenção de dizer, trata-se de enfatizar as ressonâncias, no corpo, do fato de que há um dizer, extraindo do uso da palavra a dimensão enunciativa, singular, que é signo de um sujeito.


Referências

ANSERMET, F.; FORESTIER, F. ChatGPT ou le retour à Babel. Quarto – Usages contemporains de la langue, n. 134, jun. 2023.

DICKINSON, E. Uma centena de poemas. Tradução, introdução e notas de Aíla de Oliveira Gomes. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1985.

DICKINSON, E. Alguns poemas. Tradução de José Lira. São Paulo: Editora Iluminuras, 2008.

FREUD, S. Carta 52. In: Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. I, 1969. (Trabalho original publicado em 1896).

MARTINS, G. O museu da língua. In: Luz da língua. São Paulo: BEI Editora, 2020.

LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1972-73).

LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Tradução de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76).

LINS, P. Cidade de Deus. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

MILLER, J.-A. Ma traduction de Lacan. Quarto – Lire Lacan, n. 118, mar. 2018.

MILLER, J.-A. Théorie de lalangue. In: LACAN, J.; MILLER, J.-A. La troisième / Théorie de lalangue. Paris : Navarin, 2021.

WITTNER, L. Viver e traduzir. Tradução de Maria Cecília Brandi e Paloma Vidal. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2023.

[1] DICKINSON, 1985, p. 138.

[2] Ibidem, p. 139.

[3] DICKINSON, 2008, p. 303.

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