Freud e sua atualidade no mal-estar na civilização

Serge Cottet[1]


Que Freud receba aqui uma espécie de consagração internacional por parte de um organismo cuja vocação se confunde com a difusão cultural entre as nações não é algo frequente. Freud esperava um reconhecimento internacional que não fosse semblante, mas que consagrasse o lugar da psicanálise na civilização. Ele ficaria hoje muito mais satisfeito do que havia desejado: “O que seria do mundo sem Freud?”, perguntava Stefan Zweig em seu discurso de homenagem no dia 29 de setembro de 1939.

A história do reconhecimento da psicanálise e de sua integração à vida cultural não tem um percurso linear. Seu modo de difusão se constituiu muito mais pela propagação do que a partir de instituições destinadas a transmiti-la. Do ponto de vista dessa propagação, Freud não teria do que se queixar. Existem, no entanto, forças que lhe são opostas. A mídia não assegura à psicanálise uma inscrição definitiva em nossa cultura, nem um desenvolvimento durável no mundo contemporâneo. A difusão do freudismo esbarra também em manifestações hostis; existem as Freud wars nos Estados Unidos.

A psicanálise encontra-se, portanto, no centro de objetivos políticos obscuros. Esta exposição[2] nos permite fazer um balanço sobre o lugar do nome de Freud na cultura.
 

Reconhecimento e mal-entendidos

O pessimismo profundo de Freud e seu pouco apreço pela publicidade fizeram com que ele subestimasse o eco de sua invenção fora da Áustria, assim como a difusão de seus conceitos desprestigiados e desgastados. Freud sofria, antes de tudo, com a indiferença e a hostilidade da cidade de Viena.

Por outro lado, o escândalo da sexualidade infantil[3], a crítica da moral sexual, o inconsciente confundido então com os demônios arcaicos lhe valeram um início de celebridade na Europa. Thomas Mann fez de Freud um “Romântico fracassado”. Esse sucesso mesmo deu lugar inicialmente ao reconhecimento dos meios médicos e científicos, salvo algumas exceções. Esse hiato entre sucesso popular e reconhecimento institucional vai durar muito tempo.

Em seu texto “O interesse da psicanálise”, de 1914, Freud pretende romper com a solidão da psicanálise e seu isolamento em relação à Wissensachaft da época. Ele quer se integrar a ela mostrando o interesse que teriam as diferentes disciplinas do saber, em frequentar essa nova verdade nova que só lhes poderia ser proveitosa. Se pensarmos na geopolítica, que ciência ficaria indiferente à descoberta de um novo continente?[4]

Entretanto, as manobras de aproximação tiveram pouco sucesso. Freud não interessava muito aos cientistas pelos quais ele sim se interessava, nem aos médicos, nem à psicologia da época que se considerava científica. Ao se inscrever, no entanto, na linha do positivismo e dos ideais científicos de seus mestres, ele não dispõe da ferramenta mais adequada para descrever o inconsciente como Lacan mostrou. Certamente, ele antecipa Ferdinand de Saussure na interpretação das formações do inconsciente, mas fica atrasado, em relação à explosão da lógica e da filosofia das ciências, mais adequadas, porém, à estrutura do inconsciente. Seria, no entanto, com vizinhos próximos a ele, o círculo de Viena, que iria revolucionar, com Rudolf Carnap e Kurt Gödel, os axiomas da racionalidade moderna; mas o encontro não aconteceu. Freud somente intuiu isso quando escreveu em 1927 que “a psicanálise é, na realidade, um método de investigação, um instrumento imparcial, semelhante, por assim dizer, ao cálculo infinitesimal”[5].

Entretanto, há muitas razões alheias à ciência que suscitam uma desconfiança em relação à invenção freudiana. Contrariamente à filosofia da qual Nietzsche se lamentava por não entristecer a ninguém, a psicanálise entristece, trazendo uma má notícia: aquela que destitui o sujeito de uma ilusão de autonomia, de uma transparência da própria consciência. Sabemos que, depois de Copérnico e de Darwin, Freud inscreve a psicanálise como terceira humilhação do homem centro do mundo. Essa descentralização contradiz todas as visões do mundo e todas as religiões cuja essência são o consolo e a suplência à renúncia ao gozo que impõe a civilização. Os Weltanchauungen se elevam sobre monumentos de recalque. Essa visão schopenhaueriana da arte e da religião coloca a psicanálise à parte no edifício cultural. À semelhança da ciência, ela estigmatiza as consolações; ela faz do sintoma neurótico, assim como do delírio, uma satisfação fracassada, ilusória, que mascara o real da pulsão. Admitamos que a ciência rompa com as ilusões e os falsos semblantes ao promover a técnica; no entanto, ela cria também um mundo feito de semblantes, de objetos da fantasia.

Mas a psicanálise, ao dissipar a ilusão da transparência do eu, desmontando os fracassos que governam a vida amorosa, colocando sob suspeita todos os ideais de progresso, não agrada a todo o mundo e não promete nenhum bem. Ela contradiz a paixão da ignorância em todos os setores da cultura. É o avesso do recalque. Acrescentemos a isso que sua meta terapêutica é o essencial de sua razão de ser, tanto mais que o sujeito neurótico tira um obscuro proveito de seu mal-estar.

Foi, portanto, como visão do mundo que ela foi acolhida e não como ciência do real. Concebemos, então, que seu sucesso tenha sido inicialmente consagrado pelos escritores, pelos artistas e pelos surrealistas, enquanto o campo da ciência a excluía. O que resulta disso é que o sucesso cultural da psicanálise se fez sobre a base de um profundo mal-entendido. De fato, a psicanálise não é uma visão de mundo que Freud considera como sendo de essência religiosa. Ele escreve em 1933: “Em minha opinião, a Weltanschauung é uma construção intelectual que soluciona todos os problemas de nossa existência, uniformemente, com base em uma hipótese superior dominante [...]”[6] Ora, a psicanálise denuncia todas as visões do mundo – religiosas, políticas, filosóficas – como sendo ilusões. De fato, Freud imagina “a ciência como cercada de todos os lados por seus rivais, visão que fazia dele um digno herdeiro do Iluminismo”[7]. É nesta corrente de fato que se inscreve sua crítica feroz à religião. Ele é voltairiano, ele leu Ludwig Feuerbach. Conhecemos o aviso que ele dá ao Pastor Oskar Pfister em 1928: “Quero proteger a análise dos médicos e dos padres”[8]. Uma civilização que confia seu destino a um salvador permanece na infância da humanidade. Acontece que Freud tem certas ênfases marxistas: “Escravos acorrentados carregam o trono da rainha. Entre os componentes instintuais assim aproveitados, os instintos sexuais – no sentido mais estrito – sobressaem pela força e selvageria. Ai se fossem libertados! O trono seria derrubado e a soberana, pisoteada. A sociedade bem o sabe – e não quer que se fale disso”[9].

No entanto, Freud não é progressista. A ilusão política cresce e floresce tanto quanto a ilusão religiosa. Entre 1918 e 1933, Freud observará o crescimento do bolchevismo sem preconceitos, mas sem entusiasmo. As massas não podem se emancipar por si mesmas, mesmo que a revolta seja justificada. Elas procuram sempre a autoridade e a proteção de um mestre. A identificação ao ideal suscita os nacionalismos e a guerra de todos contra todos. Há um limite ao relativismo sociológico: a natureza humana é indomável, o progresso da civilização limitado: “o processo de civilização estaria a serviço de Eros, mas a pulsão agressiva se opõe a esse programa de civilização”[10]. Freud não deixa de depositar suas esperanças no espírito científico e na razão, fazendo apelo à ditadura desta sobre a vida psíquica do homem.[11]

Freud é um herói cultural de fato, mas em exclusão interna à cultura. É por isso que ele considerava, não sem humor, que somente um oitavo do planeta aceitava suas teses, enquanto a resistência à psicanálise justificava um combate contínuo, especialmente contra a religião e a medicina.

Os historiadores consideram, porém, que Freud entra numa fase de reconhecimento incontornável ao longo dos anos 1920. Em 1921, Freud torna-se membro honorário da sociedade holandesa dos psiquiatras e dos neurologistas. Em 1929, ele é consagrado por Thomas Mann como uma espécie de herói cultural em seu artigo “Freud e o pensamento moderno”, o que foi testemunhado pelo discurso pronunciado por ocasião do prêmio Goethe em 1930 por Alfons Paquet: “Com um método estritamente de acordo com as ciências da natureza, ao mesmo tempo com uma interpretação audaciosa das comparações impregnadas pelos poetas, a pesquisa feita pelo senhor abriu um acesso às forças pulsionais da alma e criou por esse mesmo caminho a possibilidade de compreender o nascimento e a edificação das forças culturais em suas raízes e de curar as doenças cuja chave até então a arte médica não possuía.”[12] Não há nenhum traço de resistência à psicanálise nesse trecho impressionante.
 

Inimigo da civilização

Apesar dos êxitos de Freud, a psicanálise continuou sendo mais ou menos associada ao desvio junguiano ou a um pansexualismo tanto místico, quanto obsceno. Nessas condições, não há lugar para um reconhecimento do mundo científico. As manobras de personalidades eminentes para lhe atribuir o prêmio Nobel entre 1927 e 1938 não se concluem, devido à oposição dos médicos. Até mesmo Einstein, com quem ele trocava correspondências, a pedido das Nações Unidas, não vota nele.[13] Foi durante esse período que Freud escreveu, em 1925, seu artigo em francês “Resistências”[14]. Ele considera que a oposição dos cientistas à psicanálise não tem razões científicas e só é dominada pelo medo. A partir dessa data, foi como médico da civilização que Freud pôde escrever: “Certos impulsos instintivos que a sociedade reprimiu tão violentamente devem obter uma maior satisfação; para outros, a repressão pelo “recalque”, deve ser substituída por um procedimento melhor e mais preciso. Por ter formulado essas críticas, a psicanálise, “hostil à civilização”, foi banida como perigo público”.[15]

É preciso dizer que, desde o fim da guerra de 1914, Freud toma partido pelo social. Num discurso clínico, ele ataca o nacionalismo, os ideais comunistas, a barbárie moderna, assim como os ideais utópicos que podem remediar essas situações. Freud escrevia a Romain Rolland em “Um distúrbio de memória na Acrópole”: “Inicialmente, tentei isso comigo mesmo, depois igualmente com outras pessoas e finalmente, num avanço audacioso, com a espécie humana em seu conjunto.”[16]

Três anos depois de seu escândalo ateísta em “O futuro de uma ilusão”, ele insiste mais uma vez sobre os efeitos da renúncia pulsional. Em 1930, Freud escreve o “Mal-estar na civilização”, obra que trata do recalque e de seus efeitos na história da humanidade. Não se trata de aplicar ao coletivo o que aprendemos sobre a estrutura das neuroses, mas de captar, a partir dos ideais e dos significantes mestres de uma época, os traços de um recalque histórico, de uma renúncia pulsional sobre a qual repousam as instituições. Quer sejam individuais ou coletivos, os ideais entram em conflito com a insatisfação e a renúncia. As grandes instituições – exército, igreja, família – não funcionam mais porque exigem renúncias excessivas. Ora, os sintomas neuróticos são um misto de renúncia e de compromisso com o mal; é por isso que a neurose obsessiva tem a mesma estrutura que a ilusão religiosa; e reciprocamente, a religião é a neurose obsessiva da humanidade.

A angústia e a culpa são o preço a pagar por essa renúncia pulsional que constitui a base da civilização. Observamos que o ciclo que vai da frustração à agressão se repete na história, intensifica a culpa, depois a culpa por sua vez, reforça a interdição; antecipamos então que a humanidade será conduzida a um estado de tensão intolerável. Da família à humanidade, o mal-estar cresce: “O que teve início com o pai se completa na massa.”[17] Isso não quer dizer que haja um instinto agressivo que explicaria porque as guerras não acabam, como acredita Einstein, mas o círculo é o seguinte: o laço social implica no recalque do assassinato do pai. É em nome do pai morto que a identificação com um mesmo ideal é possível. A expiação consolida o grupo, mas esta identificação tem uma contrapartida: ela cristaliza um ódio destinado aos semelhantes.

O Nome-do-Pai não é o mesmo para todos. Freud tem a ideia de uma humanidade composta por comunitarismos antagônicos em que têm todos uma falta a expiar. A humanidade é um serial killer [18]: isso começa com o pai (a horda primitiva, Moisés, Jesus) e termina com os irmãos entre si. A civilização cria os meios que pode para conseguir vencer o ódio ou deslocá-lo para outro lugar. É o caso de dizê-lo com Lacan: a lei e o desejo recalcado são a mesma coisa. Mas o amor ao próximo é ilusório; as reservas de amor sublimadas no lugar do alter ego são limitadas; o objeto feminino, é claro – felizmente –, faz obstáculo a esse programa (há o próximo e a próxima...). De “Totem e tabu” a “O mal-estar na civilização”, Freud decifra a psicologia das massas sobre um fundo de guerra mundial e de ódio das nações entre si.[19] O pacifismo não tem como recurso senão a razão, cuja voz é fraca, e as instituições internacionais, que não são muito fortes. A psicologia das massas tem, entretanto, forças mais escondidas do que o assassinato do pai da religião. As guerras de religião mascaram as diferenças no modo de gozo; é o que cristaliza uma hostilidade que é o verdadeiro operador da segregação. Lacan insistirá no traço diferencial como fundamento do racismo que não é a negação do Outro, que um humanismo globalizado acredita poder superar pela educação, mas sim na intolerância de um modo de gozo: estamos mais perto da paranoia e do estágio do espelho do que do complexo de Édipo.

Há o continente negro do gozo que a experiência analítica evidencia e ao qual o sujeito está preso; da mesma forma que no laço social. Concordaremos que não são essas teses que fazem o sucesso da psicanálise. “A sociedade, diz Freud, não gosta que chamemos sua atenção para essa porção escabrosa de sua fundação.”[20] Freud não se surpreende de ser tratado como pária. Que a psicanálise suscite dúvida, ódio e ceticismo, é de estrutura: “Na realidade, não há nada na estrutura do homem que o predisponha a se ocupar de psicanálise.”[21] Isso permanece ainda mais verdadeiro em 1933. A suspeita que a psicanálise introduz na crença no progresso moral da humanidade é, no entanto, premonitória quando conhecemos a sequência dos acontecimentos. Diremos hoje que os motivos de rejeição hipócritas dos anos 1930 estão obsoletos, pelo menos na civilização ocidental, a única que Freud viu. Todavia, podemos nos perguntar onde estamos hoje em relação à integração de Freud na cultura.
 

Freud vulgarizado

Sabemos que a psicanálise se infiltrou tanto na cultura que não se pode mais tentar encontrar nela a peste, como dizia Freud em 1909; não adianta procurar. Os ideais de maio de 68 recrutaram o freudismo com palavras de ordem relacionadas à ideologia da liberação do desejo. Estas trazem a marca de uma interpretação errônea da doutrina, sobretudo a de Wilhelm Reich. O “sexo-esquerdismo”, como diz Lacan em “Televisão”, herda contrassensos efetuados sobre o recalque. Esse grande descalabro vem, entretanto, efetivamente da psicanálise. No entanto, a ilusão sexológica havia sido refutada por Freud na Sociedade Psicanalítica de Viena em 1929-1930: “Reich negligencia o fato de que existem numerosos componentes pulsionais pré-genitais que são impossíveis de serem liberados, por mais perfeito que seja o orgasmo.”[22] Que a pulsão não seja estruturada para a satisfação, será a última palavra de Freud.

Lacan lembra a esse respeito que a maldição sobre o sexo não tem como origem a repressão sexual. Ao contrário [23]: o impasse sexual entre o homem e a mulher, quaisquer que sejam os aspectos culturais que ele assume, traduz a impossibilidade da relação sexual como complementaridade de um e de outro. Há um recalque originário que engendra ele próprio o imaginário de um grande castrador.

A antinomia do sexo e da civilização não é a do pai castrador com seus filhos. Dizer que se trata de incompatibilidade do gozo com a ordem simbólica é mais verdadeiro, mas atenua, entretanto, o saldo cínico que nenhuma sublimação pode apagar. A sociedade suscita então ficções e fabrica narcóticos mais ou menos eficazes para enganar. Se é mesmo o gozo impossível que faz a divisão do sujeito, não podemos mais dizer hoje: “Se gozamos tão mal, é porque existe uma repressão do sexo, e a culpa disso é, primeiro, da família, segundo, da sociedade, e particularmente do capitalismo.”[24] A desintegração da família não ajuda mais do que o ideal socialista.

O que acontece hoje? A época pós-moderna parece, ao contrário, escapar dos efeitos do recalque. Nós a caracterizamos pelo desmoronamento das proibições, dos ideais, dos papéis sociais, da desintegração da família. Gilles Lipovetsky[25] nos anos 1980, descreve a cultura pós-moderna a partir da preocupação consigo, do hedonismo, do culto narcísico e da permissividade. A erosão do simbólico acaba por deslegitimar o pai; ele embaça a diferença dos sexos, o superego se desmorona. Desse ponto de vista, o programa da psicanálise parece realizado no mundo (numa parte do mundo). Ela aparece em toda parte, com algum grau de deformação, no liberalismo sexual, na tolerância pelos desvios, na religião da escuta, na injunção a dizer como dizia Michel Foucault, como se a escuta compassiva e o amor ao próximo viessem diretamente do humanismo freudiano.

O sexual não sendo mais um tabu, o segredo do inconsciente tornou-se segredo de Polichinelo. Entretanto, tudo isso não impede uma outra patologia do gozo. Os sintomas clínicos escancaram o mal-estar do próprio gozo. Não é o recalque, é pior. Eles testemunham a errância de um sujeito desbussolado pela ausência de normas sexuais, formas modernas da psicose. Vemos jovens sem referências, sem limites, diante do transbordamento da pulsão. Lacan observava o afeto depressivo que caracteriza o hedonismo dos jovens, destinados ao tédio e à morosidade.[26]

Mas não é isso a neurose freudiana. O que restou, então, da psicanálise se Freud de alguma forma ganhou? Foi assim que Jacques-Alain Miller[27] pôde sublinhar as analogias entre o discurso da civilização pós-moderna e o discurso do analista numa relação não antagonista, de tal modo que um não seja mais o avesso do outro. A subida ao zênite do objeto a de Lacan, esse mais-de-gozar [28], seria como o programa realizado do desvelamento da pulsão e como o resultado do levantamento dos semblantes. O significante mestre seria então deslocado para palavras de ordem que interessam os ideais terapêuticos em favor do bem-estar e não dos ideais de papai.

O freudismo, nessa perspectiva, é rebaixado ao nível de uma banal psicoterapia. Exigem ainda que ele figure nas ideologias destinadas a “dar sentido” ao real, uma maquiagem que serve de defesa contra a angústia que suscita justamente o discurso analítico concernente ao vazio do objeto de gozo. Essa mania contemporânea de dar sentido e que quer recrutar a psicanálise para uma hermenêutica esbarra, entretanto, no objetivo que visa um real pulsional resistente justamente à tradução. A religião como suplência ao real e ao império do vazio que a ciência moderna promove tem ainda futuro.
 

Freud contestado

É verdade que Freud envelheceu um pouco com seu evolucionismo darwiniano. Ele supõe a humanidade tão incapaz de se libertar da angústia infantil quanto de entrar na idade da razão, não suportando nenhuma violação a seu narcisismo.

Além disso, Freud é mais crente do que gostaria: “poderíamos dizer um judeu sem Deus”[29], ele acredita no pai; ele salva o pai, segundo Lacan.[30] Freud é mais cristocêntrico do que ele imagina. Homem do passado, Freud não foi de forma alguma revolucionário. Ele é subversivo, o que não é a mesma coisa, se considerarmos a subversão como a existência de uma falha, de uma hiância impossível de ser suturada que designa o inconsciente. Sobre esse ponto, Freud é sempre intempestivo.

Quanto ao resto, a sociedade se acomoda muito bem a Copérnico; a Darwin um pouco menos nos tempos atuais nos Estados Unidos, é verdade. Com um freudismo degradado, existem alguns poucos arranjos que fazem pelo menos objeção à genética, tais como o desenvolvimento pessoal, a aspiração em se “construir” na autonomia etc. No entanto, quando vemos os ataques que ele sofre hoje, podemos nos perguntar quais são os motores dessa nova ofensiva. Trata-se da mesma “resistência à psicanálise”?

Os ideólogos do cognitivo-comportamentalismo imputam ao freudismo um empreendimento astuto contra a verdadeira ciência, a moral, a civilização.[31] O puritanismo americano sempre teve uma parceria perfeita com o cientificismo biológico. Será que é preciso dizer que os ideais científicos de Freud não têm nenhuma relação com as ideologias pseudocientíficas que querem biologizar a psique de acordo com a moral pública?

O nome de Freud não deve ser solidário à experimentação científica relativa à agitação neuronal.[32] Lembrávamos dos teoremas de incompletude de Gödel: tocar o real a partir do impossível de demonstrar. Aqui também, as questões de limite estão em jogo: limite simbólico, a pulsão como conceito limite. Nem tudo pode se escrever. Inútil buscar a inscrição ou o engrama no cérebro ou num pretenso inconsciente neuronal. A causalidade psíquica é a causalidade de uma falta, de uma ausência.

Freud, racionalista, idealiza a ciência sem nunca se preocupar com a fantasia que a sustenta. É aqui que há um osso. Trata-se, com efeito, de aplicar hoje a crítica freudiana à ilusão científica, às falsas ciências, às ideologias científicas. Uma ciência pode ter afinidades com a paranoia. As construções lógicas são psicóticas segundo Lacan, que se distanciava no final de seu ensino de todo ideal matemático em proveito de uma topologia do sujeito.

É por isso que é preciso julgar os objetivos e as finalidades da ciência pela psicanálise e não o inverso. É inútil passar o discurso de Freud na peneira da epistemologia ou da verificação. Freud abriu uma brecha no discurso comum, um hiato entre o saber e a verdade. Lacan prossegue através da suspeita sobre a fantasia da ciência como ideologia da supressão do sujeito. A qual política ela está submetida? Por uma torsão topológica singular, a psicanálise é hoje esse olhar que a ciência não pode ver: é ela que é observada.

Quanto à ciência, Freud não viu as coisas chegarem. Se a civilização se confunde com o progresso das ciências, ela pode então se acomodar com a supressão do sujeito. Ora, a psicanálise não consente com o humanismo contemporâneo, tal como Jean-Claude Milner restitui seu axioma: “Quanto mais os homens se humanizam, mais se igualizam; quanto mais se igualizam, mais se tornam semelhantes às coisas.”[33]

A democracia verbal, que quer a igualdade substancial, mergulha os seres falantes no espaço do comensurável e do substituível. A avaliação inicia a transformação dos homens em coisas. Nessa perspectiva, a indiferença em matéria política em Freud encontra seu complemento hoje mais ou menos nas indiferenças dos partidos políticos à psicanálise enquanto muralha contra a utopia cientificista.

Os comitês de ética não a substituirão. Podemos nos perguntar se o antifreudismo está somente a serviço dos lobbies, dos laboratórios farmacêuticos, da biologia. Da ordem moral, da fúria educativa. Em 1988, uma exposição sobre Freud aconteceu na biblioteca do Congresso em Washington; organizada pelos conservadores da mais alta ortodoxia freudiana, ela foi fechada aos contestatários, aos pesquisadores de todo tipo, aos quais se juntavam revisionistas animados pelas piores intenções.[34] A recente caça às bruxas, a respeito do regulamento das psicoterapias, mostra a que ponto o Estado se engajaria perigosamente nesse assunto reduzindo a psicanálise a um ramo da medicina ou se alinhando aos objetivos educativos análogos ao melhor dos mundos de Aldous Huxley, Admirável mundo novo.

As relações do Estado com a psicanálise tornam-se um teste para as liberdades. Freud tinha a intuição de que o motivo da resistência à psicanálise não residia unicamente na suspensão dos tabus sexuais ou na denúncia da ilusão religiosa. Ele acrescentava o antissemitismo: “E talvez não tenha sido por acaso que o primeiro defensor promotor da psicanálise fosse um judeu”. Para defender a psicanálise, era preciso estar amplamente preparado a aceitar o isolamento ao qual condena a oposição, o qual, mais do que qualquer outro, é familiar aos judeus.[35] Podemos perceber hoje as razões do anti-humanismo de Freud, que ele mesmo não captava... levantando o véu que estava sobre aquilo que, no gozo, produz segregação. Não é isso que o faz ser o objeto de tanto ódio?

Há um limite à comunicação universal que a ciência nega com seu “para todo homem”. Jean-Claude Milner salienta isso a respeito do antagonismo com o qual Freud foi confrontado entre ser judeu e o ideal de Universalidade contido na Wissenschaft.[36] “Freud inimigo da civilização” – não seria este o slogan que a propaganda cientificista gostaria de renovar no mercado do mal-estar psíquico? Freud falsário, escroque, plagiador, perverso: esses excessos traduzem um pânico em relação à inscrição deste patronímico na mentalidade de nosso tempo e a raiva de ver a psicanálise irrefutável por qualquer ângulo que a tomemos.

É então muito pior do que uma resistência; uma verdadeira apetência, uma fixação mórbida, uma cristalização passional; Freud esconde ainda outra coisa. Espreitamos sua intimidade, seu gozo ilegítimo; se ele mentiu sobre isso, então a psicanálise é uma impostura; ir mais longe, levantar os segredos de alcova, suspeitar, mais longe do que o próprio Freud. É preciso ir até o cérebro que entregará, enfim, os segredos da errância moderna antes de lhe aplicar as pretensões reguladoras e normativas.

A psicanálise deve seu nascimento a sua ruptura com Wilhelm Fliess em 1897, dizia Freud. Ele confia a Ferenczi em 1911: “Tive sucesso lá onde o paranoico fracassa.” Tomemos cuidado, cento e vinte anos depois, com as ameaças que pesam sobre ela: e se ela fracassasse lá onde a paranoia vence? Freud dizia que o combate não estava ganho alguns meses antes de sua morte, mas ele acreditava, entretanto, que a brecha aberta não se fecharia nunca. Poderíamos duvidar disso; pois, não esqueçamos que a existência do inconsciente depende da atenção que lhe damos: o analista é responsável por isso.

 

Tradução: Márcia Bandeira

Revisão: Cristina Drummond

 

Notas 

[1] Serge Cotet é psicanalista, membro da Escola da Causa Freudiana. 

[2] Conferência de encerramento da exposição organizada para o aniversário de 150 anos de nascimento de Freud, que aconteceu de 22 de janeiro a 8 de fevereiro de 2007, na Unesco de Paris, sob o título de “Are you a Doctor, Sir?”. Curador da exposição: Gérard Wajcman, assistido por Visscher-Lemaître. 

[3] Sabemos que esse tema é o que está em jogo numa paixão pela ignorância totalmente compatível com o que todos têm, porém, diante dos olhos: pais, babás e educadores. Guy Trobas, a respeito do prefácio aos Três ensaios sobre a teoria sexual (Paris: Gallimard, 1987), salienta que o autor banaliza a descoberta de Freud. Entretanto, esta esbarra num desencadeamento sem precedentes em 1905. Cf. La Lettre Mensuelle, Escola da Causa Freudiana, Paris, n. 256, mar. 2007. 

[4] FREUD, S. O interesse da psicanálise. (1913) In: ___. Totem e tabu, contribuição à história do movimento psicanalítico e outros textos (1912-1914). Trad. Paulo César de Souza. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2012. p. 328. (Obras completas, 11) 

[5] FREUD, S. O futuro de uma ilusão. (1927) In: ___. Inibição, sintoma e angústia, O futuro de uma ilusão e outros textos (1926 – 1929). Trad. Paulo César de Souza. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2012. p. 221. (Edição eletrônica) (Obras completas, 17) 

[6] FREUD, S. Conferência XXXV: A questão de uma Weltanschauung. In: ___. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v. XXII: Novas conferências introdutórias sobre psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 92. 

[7] GAY, P. Un juif sans dieu. Paris: PUF, 1989. p. 55. (Tradução nossa) 

[8] FREUD, S. Correspondance de Sigmund Freud avec le Pasteur Pfister: 1909-1939. Paris: Gallimard, 1967. p. 183. (Tradução nossa) 

[9] FREUD, S. Resistência à psicanálise. In: ___. O eu e o id, “Autobiografia” e outros textos (1923-1925). Trad. Paulo César de Souza. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2011. p. 261. (Obras completas, 16) 

[10] FREUD, S. Malaise dans la civilisation. Paris: PUF, 1971. p. 74-75. (Bibliothèque de psychanalyse) (Tradução nossa) 

[11] FREUD, S. Novas conferências de introdução à psicanálise. In: ___. O mal-estar na civilização, Novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). Trad. Paulo César de Souza. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2010. p. 124. (Obras completas, 18) 

[12] FREUD, S. Gesammelte Werke. v. 14. p. 545-546. (Tradução nossa) 

[13] GAY, P. Freud, une vie. Paris : Hachette, 1991. p. 524. (Tradução nossa) 

[14] FREUD. Resistência à psicanálise. Op. cit., p. 252. 

[15] FREUD. Resistência à psicanálise. Op. cit., p. 263. 

[16] ASSOUN, P.-L. Le freudisme. Paris: PUF, 1990, p. 74. (Col. Que sais-je) 

[17] FREUD, S. Mal-estar na civilização. In: ___ O mal-estar na civilização, Novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). Trad. Paulo César de Souza. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2010. p. 105. (Obras completas, 18) 

[18] MILNER J.-C. Le juif de savoir. Paris : Grasset, 2006. p. 135. (Tradução nossa) 

[19] FREUD, S. Por que a guerra? In: ___ O mal-estar na civilização, Novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930 – 1936). Trad. Paulo César de Souza. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2010. p. 417. (Obras completas, 18) 

[20] Cf. FREUD, S. Uma dificuldade da psicanálise. In: ___. História de uma neurose infantil: além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920). Trad. Paulo César de Souza. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2010. p. 240. (Obras completas, 14) 

[21] FREUD, S.; BINSWANGER, L. Lettre du 28 mai 1911. In: ___. Correspondance: 1908-1938. Paris: Calmann-Lévy, 1995. p. 134. (Tradução nossa) 

[22] FREUD, S.; BINSWANGER, L. Lettre du 28 mai 1911. In: ___. Correspondance: 1908-1938. Paris: Calmann-Lévy, 1995. p. 134. 

[23] LACAN, J. Televisão. (1972) In: ___. Outros escritos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 513. 

[24] LACAN. Televisão. Op. cit., p. 528. 

[25] Cf. LIPOVETSKY, G. L’Ère du vide. Paris: Gallimard, 1989. (Folio) 

[26] LACAN. Televisão. Op. cit., p. 530. 

[27] MILLER, J.-A. Uma fantasia. Opção Lacaniana, São Paulo, n. 42, p. 7-18, 2005. 

[28] LACAN, J. Radiofonia. (1970) In: ___. Outros escritos. Trad Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 411. 

[29] GAY. Un juif sans Dieu. Op. cit

[30] LACAN, J. Le séminaire, livre XXII: RSI. Leçon du 17 décembre 1974. Ornicar?, Paris, n. 2, 1975. Inédito. 

[31] ROUDINESCO, É. Pourquoi tant de haine? Paris : Navarin, 2006. p. 63. 

[32] O positivismo freudiano significa ateísmo e determinismo psíquico. Como diz Ernest Jones: Se Freud “escapou a esta influência (a de Brücke), não foi renunciando aos princípios de Brücke, mas aplicando-os empiricamente aos fenômenos psíquicos, sem levar em conta, para isso, a anatomia [...]”. Cf. GAY, P. Un juif sans Dieu. Op. cit. (Tradução nossa) 

[33] MILNER, J.-C. La politique des choses. Paris: Navarin, 2006. p. 30. (Tradução nossa) 

[34] ROUDINESCO, É. Pourquoi tant de haine? Op. cit., p. 33-34. 

[35] FREUD. Resistência à psicanálise. Op. cit., p. 266. 

[36] Não podemos debater aqui o que Freud entende por identidade judaica, obscura para ele mesmo e reivindicada. Iremos nos referir a Peter Gay, em Un juif sans dieu, que considera como indemonstrável a incidência da tradição judaica no pensamento de Freud. Esse ponto é considerado controverso por Yosssef Hayim Yerushalmi, em O Moisés de Freud (Paris: Gallimard, 1993. p. 213-214), que considera que a identidade judaica de Freud não é estrangeira ao nascimento da psicanálise. Os dois autores não entram no corpo conceitual da psicanálise e permanecem, tanto um quanto o outro, no nível da influência social ou familiar. Yerushalmi, no entanto, vai mais longe e faz valer que o neolamarckismo de Freud, sem valor no plano científico, atesta a identificação de Freud a um destino: “Selado há muito tempo por seus pais e do qual ele ressente ainda hoje a obscura vibração até em seu sangue” (YERUSHALMI, op. cit., p. 76). Melhor dizendo, “se dizer judeu é da ordem do real” e não do ambiente caro à psicologia como à sociologia. Trata-se do real do nome, conceito de Lacan ignorado por Freud, forçosamente. Cf. REGNAULT, F. Notre objet a. Paris: Verdier, 2003. (Tradução nossa)

 

 

 

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