Fuga de morte, de Paul Celan

 

Paul Pessach Antschel, romeno-judeu-alemão, nascido em 1920, com histórico familiar de passagem por campos de concentração, e considerado uma das vozes mais radicalmente singulares da poesia de todos os tempos, adotou o nome de Paul Celan após o termo da Segunda Guerra Mundial, passando grande parte da vida, num exílio voluntário, na cidade de Paris, onde se suicidou, em 1970, atirando-se da ponte Mirabeau ao rio Sena.

O poema “Fuga de morte” (“Todesfuge”) é datado de 1945, ano em que findou a Segunda Guerra, e foi publicado no livro Mohn und Gedächtnis (Papoula e memória). O escrito é emblemático desse período histórico, funcionando como voz do genocídio nazista. Theodor W. Adorno escreveu a frase controversa: "Depois de Auschwitz, seria bárbaro escrever poesia", com a qual não concordava Paul Celan, para quem a lírica não esconderia a realidade amarga ‒ “Conta aquilo que era amargo e te magoa” ‒, já que ele escreve em nome da vítima, sem estetizar os acontecimentos.

Paul Celan inicialmente intitulou o poema como “Tango da morte”, nome dado a um tango composto por uma orquestra do campo de concentração sob as ordens de um tenente das SS. A composição do termo no título que prevaleceu, “Fuga de morte” ‒ Fuga, em teoria musical, é um estilo de composição contrapontista, polifônica e imitativa de um tema principal ‒, sugere, segundo a indicação de Paul Celan, uma espécie de gênero musical fúnebre. De acordo com essa Fuga, as vozes apresentam, por entradas sucessivas, um motivo melódico, com a primeira voz, os judeus (versos 1 a 4 do poema), um tema (o título poderia ser traduzido, em razão do genitivo, como “Fuga sobre o tema da morte”), que se faz seguir de um contratema, a segunda voz, o homem na casa (versos 5 a 10), que constitui, simultaneamente, a sua réplica e o seu complemento. Em termos musicais, logo que todas as vozes apresentam, cada uma por sua vez, o tema, a exposição está concluída. Inicia-se, então, uma segunda seção; o primeiro desenvolvimento (versos 11 a 19) é uma exploração mais livre do tema. O segundo desenvolvimento (versos 20 a 28) conduz ao terceiro episódio, o Stretto, "fechado" (versos 29 a 36), breve peroração que encadeia as entradas próximas até o acorde final, a coda (versos 37 e 38).

O oximoro "leite negro" foi utilizado originalmente pela escritora Rose Scherzer-Ausländer num poema intitulado “Ins Leben”, em 1925; Celan pediu “emprestada” a expressão à poeta. O negro aqui é a não cor, a destruição, a negação do substantivo leite ‒ branco e ligado à vida ‒, manifestação de um sentimento de morte, de falta completa de esperança. A expressão contraria um ditado judaico de que, após um mal, a pessoa poderia se banhar no leite branco da madrugada", símbolo da renovação pura de um novo ciclo novo, indicando, diversamente, pelo "leite negro da madrugada", o prenúncio do extermínio dos judeus da manhã seguinte... O tom do poema todo é o dessa relação entre alemães e judeus no campo de concentração, entre a vítima e o carrasco.

    A tradução que DERIVAS ANALÍTICAS apresenta é de Maria do Sameiro Barroso e Ivo Miguel Barroso, a quem agradecemos a gentileza de terem cedido seu cuidadoso trabalho para esta edição.    


FUGA DE MORTE

Leite negro da madrugada bebemo-lo ao entardecer
bebemo-lo ao meio-dia e de manhã bebemo-lo à noite
bebemos e bebemos
cavamos um túmulo nos ares aí ninguém fica apertado
Na casa vive um homem que brinca com serpentes e escreve
escreve quando anoitece para a Alemanha
os teus cabelos de ouro Margarida
escreve e vem para a fora de casa e relampejam as estrelas
assobia pelos seus cães de fila
assobia pelos seus judeus manda cavar um túmulo na terra
ordena-nos tocai agora para a dança

Leite negro da madrugada bebemos-te de noite
bebemos-te de manhã e ao meio-dia bebemos-te ao entardecer
bebemos e bebemos
Na casa vive um homem que brinca com serpentes e escreve
escreve quando anoitece para a Alemanha
os teus cabelos de ouro Margarida
Os teus cabelos de cinza Sulamita
cavamos um túmulo nos ares aí ninguém fica apertado

Ele grita penetrai mais fundo na terra cantai e tocai
agarra no ferro que traz à cintura balança-o os seus olhos são azuis
enterrai mais fundo as pás continuai a tocar e a dançar

Leite negro da madrugada bebemos-te de noite
bebemos-te ao meio-dia e de manhã bebemos-te ao anoitecer
bebemos e bebemos
na casa vive um homem os teus cabelos de ouro Margarida
os teus cabelos de cinza Sulamita ele brinca com serpentes

Ele grita tocai mais docemente a morte a morte é um mestre da Alemanha
Grita arrancai sons mais graves aos violinos depois subireis
em fumo no ar
Tereis então um túmulo nas nuvens aí ninguém fica apertado

Leite negro da madrugada bebemos-te de noite
bebemos-te ao meio-dia a morte é um mestre da Alemanha
bebemos-te ao anoitecer e de manhã bebemos e bebemos
a morte é um mestre da Alemanha o seu olhar é azul
atinge-te com uma bala de chumbo acerta-te em cheio
na casa vive um homem vive os teus cabelos de ouro Margarida
açula contra nós os seus cães de fila oferece-nos um túmulo no ar
brinca com serpentes e sonha – a morte é um mestre da Alemanha
os teus cabelos de ouro Margarida
os teus cabelos de cinza Sulamita

 

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