Paul Guiraud ou quando a psiquiatria ainda concebia uma estilística

 

Sérgio Laia*

 

Hoje, muito provavelmente, o nome de Paul Guiraud, cujo texto poderemos ler logo a seguir, não tem qualquer ressonância para a grande maioria dos psiquiatras e dos profissionais do campo da saúde mental, assolados pela profusão cada vez maior de diagnósticos e tomados pela diluição da angústia no que se prefere considerar como “ansiedade”. Porém, entre os psicanalistas, particularmente aqueles marcados pela orientação lacaniana, bem como entre os psiquiatras e outros profissionais de saúde mental sensíveis à psicanálise, o nome de Paul Guiraud ecoará o termo grego kakon, extraído por ele de Monakow e Mourgue, com ampla aplicação no diagnóstico e no tratamento das psicoses.

Foi na tese de doutorado de Lacan – A psicose paranoica e suas relações com a personalidade – a primeira vez em que me deparei com esse termo. Ele designa literalmente o “mal” que muitos psicóticos experimentam sem, no entanto, conseguirem propriamente localizá-lo. Por sua vez, o alcance clínico do kakon me foi mostrado por meu colega Antonio Beneti e que, ainda hoje, muitas vezes o tematiza ao apresentar e discutir casos de psicose. Assim, o texto de Paul Guiraud mais conhecido entre nós é “Os assassinatos imotivados” (1931), publicado, com uma esclarecedora apresentação de Silvia Tendlarz, na revista Opção Lacaniana, n. 9, janeiro-março de 1994.

O que este número de Derivas oferece pela primeira vez ao leitor brasileiro, em uma preciosa tradução de Soraia Mouls, é outro texto desse psiquiatra que nasceu em Cessenon (Hérault), em 1882, faleceu em Paris, em 1974, e teve seu nome dado, desde 1990, ao hospital psiquiátrico de Villejuif, na França. Como poderá ser constatado mais adiante, trata-se de “As formas verbais da interpretação delirante”, publicado originalmente em francês na revista Annales médico-psychologiques, no primeiro semestre de 1921.

Essa importante contribuição de Paul Guiraud sobre como a “interpretação delirante” se vale de “formas verbais” é também uma das referências da tese de doutorado de Lacan sobre a psicose paranoica. Ainda assim, ele terá maior destaque em uma passagem do escrito intitulado “Formulações sobre a causalidade psíquica” (Escritos, p. 167-169). Nesse escrito, as “alusões verbais”, as “relações cabalísticas”, os “jogos de homonímia” e os “trocadilhos”, que Paul Guiraud soube tão bem escutar e destacar nas falas de muitos psicóticos, permitiram a Lacan tematizar, entre outras referências estilísticas decisivas, o que chamou então de “câncer verbal do neologismo” (p. 168, grifo meu).

Sabemos que “Formulações sobre a causalidade psíquica”, pronunciado em 1946, foi situado por Jacques-Alain Miller, na edição de Escritos, na parte designada como “De nossos antecedentes”, ou seja, entre as produções que, se posso dizer assim, prepararam Lacan para ser Lacan. Ao mesmo tempo, ousaria sustentar que as presenças de Paul Guiraud e do texto que agora poderá ser lido por nós também em português não se limitam a esse ponto de partida do ensino de Lacan. Afinal, no que Jacques-Alain Miller tem nos elucidado como o “último ensino de Lacan”, elas ecoam ainda na referência que podemos ler, no Seminário 23, de que – ao contrário dos psicóticos e do que Joyce, no mínimo, suspeitava – “um homem dito normal não percebe que a fala é um parasita, que a fala é uma excrescência, que a fala é a forma de câncer pela qual o ser humano é afligido” (p. 92, grifos meus). Em outras palavras, a experiência psicótica com a imposição da fala que, no Seminário 23, Lacan localiza e lê também na obra de Joyce foi o que Paul Guiraud soube dar lugar ao destacar, nas “interpretações delirantes”, menos sua pretensão convincente e mais os usos criativos de diferentes “formas verbais”.

Veremos, ainda nesse mesmo texto de Paul Guiraud, o quanto o neologismo não é a única “forma verbal” apresentada nas interpretações delirantes. Nessa direção, parece-me possível também sustentar que, se o neologismo pôde se configurar, por exemplo, no Seminário 3 de Lacan, como um índice decisivo do que se apresenta, muitas vezes de modo extraordinário, nas psicoses, a variedade e as sutilezas que as “formas verbais” podem tomar nas “interpretações delirantes” são particularmente decisivas para detectarmos as marcas discretíssimas com que, muitas vezes, se manifestam o que, a partir da orientação lacaniana promovida por Jacques-Alain Miller, temos investigado como “psicoses ordinárias”. Também nesse contexto, vale lembrar que, em julho de 1999, o Institut du Champ Freudien promoveu uma atividade que se encontrava na sequência da conversação sobre as psicoses ordinárias e que se intitulou A estilística das psicoses: formas verbais, modos de vida, tendo como referenciais tanto a passagem onde, em “Proposições sobre a causalidade psíquica”, Lacan cita Paul Guiraud, quanto o próprio texto desse psiquiatra que Derivas apresenta, a seguir, pela primeira vez traduzido no Brasil.

Foucault, em sua célebre História da loucura, demonstra e critica como a psiquiatria, no século XIX, abandonou o que, na loucura, é enigma que, inclusive, questiona a própria razão. Na contracorrente dessa psiquiatria criticada por Foucault e da qual Lacan também se afastou, o texto de Paul Guiraud “As formas verbais da interpretação delirante” concebe uma estilística na qual a dimensão enigmática da loucura vibra. Que essa vibração se escute e se difunda na leitura desse texto agora publicado por Derivas é aposta que fazemos neste século XXI, no qual, cada vez mais, a loucura se dilui na proliferação dos chamados “transtornos mentais” e a psiquiatria se deixa tragar pelas bulas da Big Pharma.

 

* Psicanalista; Analista da Escola (AE - 2017-2020) e Analista Membro da Escola (AME) pela Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e pela Associação Mundial de Psicanálise (AMP); Professor do Curso de Psicologia e do Mestrado em Estudos Culturais Contemporâneos da Universidade FUMEC (Fundação Mineira de Educação e Cultura).

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