Hiatus irrationnalis, de Lacan
Πάντα ῥεῖ
Hiatus irrationnalis
Choses que coule en vous la sueur ou la sève,
Formes, que vous naissiez de la forge ou du sang,
Votre torrent n’est pas plus dense que mon rêve,
Et si je ne vous bats d’un désir incessant,
Je traverse votre eau, je tombe vers la grève
Où m’attire le poids de mon démon pensant;
Seul il heurte au sol dur sur quoi l’être s’élève,
Le mal aveugle et sourd, le dieu privé de sens.
Mais, sitôt que tout verbe a péri dans ma gorge,
Choses qui jaillissez du sang ou de la forge,
Nature, je me perds au flux d’un élément:
Celui qui couve en moi, le même vous soulève,
Formes que coule en vous la sueur ou la sève,
C’est le feu qui me fait votre immortel amant.
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Πάντα ῥεῖ
Hiatus irrationnalis
Coisas, carreguem suor ou seiva no seu veio,
Formas, tenham da forja ou do sangue vindo,
Vossa torrente bate não meu devaneio,
Não cessando o desejo, as vou perseguindo,
Atravesso voss’água, despenco no esteio
Vai o peso do demo pensante gerindo;
Só, cai no duro chão que tem do ser o enleio,
O cego e surdo mal, o deus de senso findo.
Mas, se todos os verbos na goela definham,
Coisas, vindo do sangue ou da forja tenham,
Natureza — no fluxo elemental vou indo:
O que adormece em mim, vos edifica em cheio,
Formas, carreguem suor ou seiva no seu veio,
Vosso imortal amante, no fogo é que deslindo.
O poema “Hiatus irrationalis”, de Jacques Lacan, foi escrito em 1929 e publicado nos Cahiers d’art em 1933. Como todos os seus escritos, aqui também se ouviu dizer que era “incompreensível”, prenunciando o que o próprio Lacan dizia ser um “futuro anterior do que eu teria sido com relação ao que estou me tornando”, sob a forma do “corpo sutil” do seu embaraço com a escrita, palimpséstica, misteriosa, surpreendente, insólita, derrapante, rebuscada, enodada, engomada e inútil, como já a classificou Philippe Sollers. Parece que suas palavras em ação poética já estão, avant la lettre, falando da insuficiência da palavra para dar conta do sentido, no hiato de um sem-razão, hiância de um extrassenso ou, em lacanês, o esp de um laps, o inconsciente real, que mais tarde, em 1976, Lacan inventará: “quando o esp de um laps – ou seja, visto que só escrevo em francês, o espaço de um lapso – já não tem nenhum impacto de sentido (ou interpretação), só então temos certeza de estar no inconsciente. O que se sabe, consigo”.
No mesmo ano em que publica “Hiatus irrationalis”, há a publicação de seu artigo intitulado “O problema do estilo” na revista surrealista e batailleana Minotaure, no qual fala de uma possível solução teórica para o problema do estilo, incluindo o do artista. Isso permite conceber o estilo lacaniano como poético, diferentemente do de Freud, romanesco, ligado mais ao romance narrativo e à ficção mitológica. Esse estilo poético se revela indispensável para a Psicanálise de Lacan, marcada por um limite à interpretação imposto pelo fora de sentido do Real no inconsciente. Tão imbricada encontra-se a poesia em Lacan, que ele dirá de si, em 1976: “não sou um poeta, mas um poema. E que se escreve, apesar de ter jeito de ser um sujeito”, apontando a identificação ao sintoma como aquilo que tangencia a relação originária do parlêtre com lalangue. E, fazendo referência a uma questão topológica, Lacan afirma que seu poema é assinado como Là-quand, homófono em relação a seu nome próprio, indicando o significante como índice que responde ao Real. Se nasceu poema ou se não é nãopoeta [pas papouète], o importante é que construiu uma assinatura, Lacan ou Là-quand, que não remete a nenhuma garantia ou selo, o que indica que lalangue é poiesis, intercessora do saber inconsciente, e que, ao nascermos, somos poema como parlêtre.
No seu tradicional discurso de encerramento da conferência anual da École Freudienne de Paris, em 1978, falando da transmissão, Lacan localizou, para ele e para a Psicanálise, um lugar da escrita: “como eu penso a respeito agora, a Psicanálise não pode ser transmitida; cada psicanalista é forçado a reinventar a psicanálise; eu tentei, de toda forma, dar um pouco mais de substância a isso; e é por isso que eu inventei um certo número de escrituras [c’est pour ça que j’ai inventé un certain nombre d’écritures]”. Se o inconsciente, como a escrita de Lacan, segue remetendo a um impossível de compreender, a poesia continua surgindo como esforço inaugural na busca por revelar esse mais além, fazendo valer o direito à diferença.
Tradução de Paulo Sérgio de Souza Jr., psicanalista, linguista e tradutor, doutor em linguística pelo IEL-Unicamp, professor-associado junto ao Depto. de Língua Romena e Linguística Geral da Universidade Alexandru Ioan Cuza (Iaşi, 2009), tradutor residente do Instituto Cultural Romeno (Bucareste, 2013); organiza a coletânea “A psicanálise e os lestes” (Ed. Annablume), coordena a série “Pequena Biblioteca Invulgar” (Editora Blucher) e o projeto “Escritos Avulsos”, além de ser um dos editores da Revista Lacuna. |