No intenso agora
Vida, política e transitoriedade[1]
Simone Souto
Em seu documentário No intenso agora, João Moreira Salles reúne, além de outras, imagens de Maio de 68 na França e de uma viagem de sua mãe – a quem ele define como “conservadora e profundamente católica”[2] – à China de Mao Tsé-Tung, no ano de 1966, em plena Revolução Cultural.
É comovente como o cineasta, ao reunir acontecimentos aparentemente tão distintos, o faz não pela via dos ideais em jogo ou pelas questões ideológicas que essas imagens poderiam suscitar. O que ele coloca em primeiro plano é a intensidade do momento vivido, tanto pelos jovens de Maio de 68, quanto por sua mãe pelo modo como ela aparece nessas imagens, “muito alegre” e “plenamente ancorada na vida”, como poucas vezes ele a havia visto[3]. Sabemos que muitos dos que participaram de Maio de 68 se colocaram a questão de como sobreviver ao fim daquele momento, e que alguns efetivamente não sobreviveram. João Moreira Salles encontrou, nos filmes e nos relatos escritos da viagem de sua mãe à China, uma mãe cheia de vida e que, estando diante de algo que lhe parecia completamente novo, “de seu contrário absoluto”, se mostrava capaz de “enxergar o que havia de belo no outro que se opõe a ela” [4].
Assim, a satisfação de sua mãe se coloca para o cineasta também como a existência de algo novo e que parece constituir-se para ele como um enigma. Ela estava alegre naquela época: o que a fazia feliz? Por que não permaneceu assim? Como sobreviver ao fim de um momento de grande alegria, intensidade e satisfação? Nas palavras do próprio cineasta: “Como sobreviver ao fim de uma alegria que você não consegue mais recuperar?”[5]. É a partir desse enigma sobre o desejo da mãe, sobre o que poderia satisfazê-la, que, a meu ver, todo filme se constrói e que todas as outras imagens, imagens antigas, filmadas há muito tempo, adquirem uma atualidade, um frescor, outra coloração. Para usar um jargão psicanalítico, podemos dizer que o filme nasce de uma questão libidinal, de uma questão a respeito do gozo, da fruição e da capacidade que se tem ou não de manter um interesse pela vida mesmo quando um momento de grande satisfação se desfaz.
Assim, é a partir de uma questão muito íntima, que diz respeito diretamente à sua vida, que João Moreira Salles compõe as imagens do filme e o relato que as acompanha. Ao fazer isso, ele consegue trazer algo de singular aos fatos da história, consegue extrair de velhas imagens, de acontecimentos passados, algo completamente novo. O resultado é um filme considerado por ele mesmo como “intransferível”[6], pois só ele poderia fazê-lo e, ao decidir fazê-lo, só poderia ser feito assim como é, um filme no qual ele aparece “como protagonista, mesmo que seja atrás das câmeras”[7].
Dessa forma, ao aproximar os acontecimentos de Maio de 68 do momento vivido por sua mãe na viagem à China, João Moreira Sales torna visível aos nossos olhos algo que habitualmente não percebemos na política: o fator libidinal. Podemos situar esse fator na perspectiva de como os corpos são afetados pela política, o que é bem visível no sorriso da estudante no final do filme, sua satisfação em estar naquele momento, naquele lugar, como também nos muitos casos de depressão e suicídio que se seguiram ao fim dessa revolta estudantil. Mas podemos situá-lo, ainda, na perspectiva inversa, ou seja, é a partir do corpo que cada ser falante se engaja nesse ou naquele movimento político, não do corpo como organismo biológico, mas do corpo falante, afetado pela linguagem, do corpo cuja existência depende do que nele acontece como efeito de linguagem. Portanto, existe algo na política que toca a intimidade de cada um e algo dessa intimidade que não deixa de pertencer ao campo da política. A forma como se é afetado pela linguagem, ou seja, como cada um se situa com relação às palavras que marcam sua existência, constitui a maneira particular que cada um tem de satisfazer-se na vida – é o que chamamos, em psicanálise, seu modo de gozo.
Quando algo desse modo de gozo, disso que é tão íntimo, disso que podemos chamar com João Moreira Salles de “intransferível”, presentifica-se em um dizer, isso pode, em determinado momento, ressoar no coletivo, propagando-se como ondas e dando origem a grandes movimentos. Foi o que aconteceu em 1968. Algo que dizia respeito à vida íntima explodiu pela via dos acontecimentos imprevistos. O líder estudantil Daniel Cohn-Bendit, em um livro que se chama Forget 68, qualificou aquele movimento de uma revolta jouissive[8], uma revolta gozante, ou uma revolta do gozo, na qual o que estava em jogo não era a luta de classes, o poder político etc. Embora esses elementos estivessem presentes, o que os revoltosos de Maio de 68 queriam, segundo Cohn-Bendit, era o poder sobre suas próprias vidas ou, em outras palavras, era o direito e a liberdade para que cada um pudesse gozar a seu modo, sem os padrões impostos por uma sociedade de moral rígida, estruturada pelo regime paterno e regida por leis bem determinadas. Foi uma revolta pela vida cotidiana, pela autonomia e prevalência do gozo com relação aos significantes mestres da época, isto é, com relação aos significantes que ordenavam a civilização e funcionavam como parâmetros claros dos ideais a serem seguidos. O que estava em primeiro plano era a satisfação de viver, encarnada no famoso e insolente sorriso de Cohn-Bendit para o guarda. As frases que aparecem nos muros de Paris mostram isso muito bem: “‘É proibido proibir’, ‘Gozar sem entraves’, ‘Sejam realistas, peçam o impossível’”[9]. Como esclarece a conversa entre Cohn-Bendit e Jean Viard, esses “não eram slogans que visavam uma tomada de poder”[10], tipo “‘abaixo o capitalismo’”[11]. O que esses slogans visavam, diz Cohn-Bendit, “eram a vida, nossa vida”[12]. Nesse sentido, os revoltosos de Maio de 68, mesmo derrotados pelo general De Gaulle, venceram. Foi um instante em que tudo mudou, mesmo que, em um instante seguinte, tudo se fechasse novamente. Depois daquele maio, o mundo nunca mais foi o mesmo. Sem dúvida alguma, Maio de 68 marca, no mundo ocidental, o início de uma nova maneira de viver, uma subversão nos costumes: a emancipação das mulheres, o divórcio, os direitos dos homossexuais e todas as questões referentes ao gênero que se seguiram são tributários dos acontecimentos de Maio de 68. Esses acontecimentos fizeram onda e se espalharam por vários lugares do mundo: Estados Unidos, Paris, Berlim, Roma, Budapeste, Praga, Brasil... Maio de 68 “foi o primeiro movimento de escala global difundido em tempo real”[13]. Portanto, por um lado, podemos dizer que, ao fazer prevalecer o gozo em detrimento da lei, a geração de Maio de 68 deu lugar a novas formas de satisfação, a modos de gozo inéditos que, sem dúvida, naquele momento e também ao longo do tempo, renovaram os laços sociais ao colocar em cena o corpo vivo, o corpo que fala. Como observa Stéphane Paoli, durante os acontecimentos de Maio de 68 na França, “todo mundo falava com todo mundo, os pais com os filhos, os professores com os estudantes, os estudantes com os trabalhadores, etc”[14]. Por outro lado, essa mesma geração, ao se sustentar na crença de poder alcançar seu lugar no mundo por uma satisfação sem entraves, plena, completa, ou seja, pela via de um gozo necessário, que não pode parar, desconhece, assim, que a dissolução da intensidade é intrínseca ao gozo e, por desconhecer isso, acaba encontrando, no limite inevitável dessa mesma satisfação, o seu reverso: a pulsão de morte.
É esse outro lado da moeda que, a meu ver, aparece em outras imagens, também centrais, do documentário: o fim da primavera de Praga (com a invasão da União Soviética), o enterro do estudante Edson Luiz no Rio de Janeiro (em plena ditadura militar), assim como os enterros dos estudantes tcheco e francês, todos ocorridos em 1968. Essas cenas nos apresentam a pulsão de morte sob a forma do retorno da lei em sua vertente autoritária, uma lei de ferro que tem como pretensão o total domínio do gozo sob as garras da repressão. Mas essas cenas evocam, também, a pulsão de morte sob a forma do desencanto, do afeto depressivo que se apossa de muitos estudantes ao fim da revolta de 1968.
Portanto, para terminar, eu diria que, para além desses dois lados de uma mesma moeda, isto é, para além do todo que se pretende alcançar seja através da lei, seja através do gozo, o que permanece em primeiro plano, nesse filme, é a transitoriedade da vida e da intensidade dos momentos vividos. A intensidade do gozo, como bem ressalta o título do filme, é atrelada ao agora, ao momento, ao acontecimento, ao encontro, à manifestação de uma nova existência que é contingente, que se extingue, que se acaba, mas, como ressalta o cineasta, “deixa o sentimento de que, se pôde existir em um momento em que ninguém imaginava que pudesse, poderá existir em um outro momento também”[15], embora sempre de outro jeito, de outra forma. Essa existência nascida ao acaso, que não é toda, nem eterna, produz um furo no tecido da vida, inaugurando um tempo mais de escansão do que de duração e que pode ser vivido como impotência, fracasso ou com uma imperiosa vontade de preenchê-lo, por aqueles que, como nos diz Freud, “parecem prontos a aceitar uma renúncia permanente, porque o que era precioso revelou não ser duradouro”[16]. Diferentemente de muitos dos estudantes que participaram de Maio de 68 ou mesmo daqueles que introduziram a ditadura, seja na antiga Tchecoslováquia, seja no Brasil, João Moreira Salles soube operar a partir desse furo – isto é, a partir da impossibilidade de ocupar verdadeiramente um lugar frente ao enigma que se abriu para ele sobre o desejo da mãe –, não no sentido de tamponá-lo com uma resposta suficiente, mas fazendo desse furo a causa do seu próprio desejo de fazer esse filme. Com este filme, João Moreira Salles consegue, a meu ver, produzir uma beleza que nasce da escassez introduzida no tempo, conferindo à transitoriedade da vida um valor que resulta da capacidade de transformar em causa do desejo aquilo que sempre resta por se satisfazer. É isso que torna possível uma alegria com o tempo presente e que pode fazer existir, para cada um de nós, um intenso agora.
[1] Este comentário foi apresentado, no dia 4 de maio, no Cine Humberto Mauro, em Belo Horizonte, após a exibição do filme No intenso agora, de João Moreira Salles, por ocasião da atividade Cinema e Psicanálise, realizada em parceria com a Seção Minas Gerais da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP-MG).
[2] Entrevista: João Moreira Salles fala sobre 68 e o presente. Bravo!, São Paulo, dez. 2017, p. 86-93.
[3] Entrevista: João Moreira Salles fala sobre 68 e o presente...
[4] Entrevista: João Moreira Salles fala sobre 68 e o presente...
[5] Entrevista: João Moreira Salles fala sobre 68 e o presente...
[6] Entrevista: João Moreira Salles fala sobre 68 e o presente...
[7] Entrevista: João Moreira Salles fala sobre 68 e o presente...
[8] COHN-BENDIT, Daniel. Forget 68. Entretiens avec Stéphane Paoli et Jean Viard. Paris: Aube, 2008, p. 22.
[9] COHN-BENDIT, Daniel. Forget 68…, p. 20 e 21.
[10] Ver COHN-BENDIT, Daniel. Forget 68..., p. 21.
[11] COHN-BENDIT, Daniel. Forget 68..., p. 21.
[12] COHN-BENDIT, Daniel. Forget 68…, p. 21.
[13] COHN-BENDIT, Daniel. Forget 68…, p. 118.
[14] COHN-BENDIT, Daniel. Forget 68..., p. 111.
[15] Entrevista: João Moreira Salles fala sobre 68 e o presente...
[16] FREUD, Sigmund. Sobre a transitoriedade (1915). In: Obras Completas, vol XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 347.