dancadasnuvens.fwDança das nuvens (astrágalo grego). Fonte: https://www.britishmuseum.org/collection/

 

O semblant e sua ruptura: as nuvens em Lituraterra

Laura Rubião


O texto “Lituraterra”, de Lacan, tem por inspiração um sobrevoo. Uma visão que se esboça por entre frestas de nuvens, do alto de uma planície siberiana. Os traços gravados na terra pelo escoamento das águas, vistos do alto, formavam sulcos (ravinement), reentrâncias na terra, entalhes, marcações. Essas imagens serviram de esteio ao psicanalista para a elaboração do conceito de letra a partir do de escritura. O que passa ao primeiro plano − em detrimento dos efeitos de significação da linguagem − são os efeitos de impressão, apagamento e rasura que exprimem todo o caráter material da escrita e sua dimensão corporal, tão bem expressos no estilo ideográfico.

O conceito de letra, construído tardiamente no ensino de Lacan, vem demarcar uma fronteira em relação a toda uma concepção psicanalítica anterior, que enfatizava a vertente dos efeitos de significação provenientes dos jogos com o significante, dos enigmas propostos ao trabalho interpretativo em uma análise. A letra promove a junção de um elemento significante a uma carga singular de afeto, de modo a suspender o convite à decifração e a marcar a articulação entre o significante e a presença viva do gozo do falante.

Ao nomear seu artigo lituraterra, à maneira de um Witz, Lacan joga com o termo latino litura, que significa cobertura, mas também rasura, correção. Litura seria a raiz etimológica do termo liturarius, do qual se deriva o termo lituraterra. Cria-se então um jogo de assonância com literatura, em cuja raiz está o termo littera, que significa letra e no qual se pode escutar também o litter, lixo. Essa escrita jocosa do termo lituraterra encerra um exercício crítico, comparável ao que é extraído dos efeitos da comédia aristofânica. Em ambos os casos, há um questionamento da ordem discursiva: as belas letras de um lado, o saber oficial das elites políticas, de outro.

Talvez, por isso, tenha sido aí novamente evocado o nome de Aristófanes, dessa vez do ponto de vista do efeito de ruptura:

O que se revela por minha visão do escoamento, no que nele a rasura predomina, é que, ao se produzir por entre-as-nuvens, ela se conjuga com sua fonte, pois que é justamente nas nuvens que Aristófanes me conclama a descobrir o que acontece com o significante: ou seja, o semblant por excelência, se é de sua ruptura que chove, efeito em que isso se precipita, o que era matéria em suspensão.
Essa ruptura que dissolve o que constituía forma, fenômeno, meteoro, e sobre a qual afirmei que a ciência opera ao perpassar o aspecto, não será também por dar adeus ao que dessa ruptura daria em gozo que o mundo, ou igualmente o imundo, tem ali pulsão para figurar a vida?

Caberia aqui a formulação de uma questão: Por que justamente as nuvens de Aristófanes seriam convocadas a demonstrar a conexão entre o significante e o semblant, cuja ruptura deixa entrever os efeitos de gozo? Estaríamos diante de um livre e descomprometido jogo associativo com as palavras?

O significante é, por excelência, o semblant. A imagem das nuvens alude, até certo ponto, à esfera do significante, por sua textura vaporosa, volátil e instável, como vimos a propósito de sua inserção no contexto da peça de Aristófanes, em que elas representam a particularidade mutante das palavras que servem para tudo. Alude também, claramente, ao domínio dos semblants, uma vez que toca o campo do parecer, promovendo o intercâmbio das imagens. As nuvens são dotadas, simultaneamente, de um componente de violência, que marca a interrupção desse processo de transmutação: podem gerar os raios, as trovoadas estrondosas, as tempestades. Na peça, é o elemento dramático que vincula dois campos heterogêneos: o do pensamento (etéreo, volátil) e o do corpo na sua materialidade escatológica de resto e dejeto.

Jacques-Alain Miller esclarece-nos as sutilezas desse conceito que surge tardiamente na obra de Lacan, indicando-nos que o semblant não pertence unicamente ao campo do engodo e das formações enganosas. Ao interceptar os registros do Simbólico e do Real, os semblants nos revelam algo da verdade de um sujeito, o seu substrato de ser. O autor retoma os jogos lacanianos com o termo francês par(être), para apontar a conjunção do ser ao parecer. Noutra composição sugestiva, combina os termos falar (parler), ser (être) e parecer (parêtre) – par(l)être, fazendo alusão ao sujeito como inseparável da configuração linguageira em que está imerso e da qual depende a apreensão de seu ser.

Essa complexidade conceitual está no centro das elaborações propostas por Lacan no Seminário que porta o sugestivo nome De um discurso que não seria do semblant. Ao eleger a forma hipotética do condicional, o autor evoca a dificuldade, ou mesmo a impossibilidade de nos situarmos, a um só tempo, no interior de uma categoria discursiva e fora dos efeitos ditos do semblant.

Se todo discurso é feito de linguagem e só no tecido ficcional engendra seus efeitos de verdade, como formular a possibilidade de um discurso que passasse ao largo da construção artificiosa do Simbólico? Se o semblant não nos indica simplesmente o registro da farsa ou do fingimento que vela uma verdade, mas é o próprio modo de constituição da verdade, como sobrepujá-lo?

Um discurso que, por hipótese, pudesse captar a estrutura do semblant talvez fosse aquele capaz de nomeá-lo ou identificá-lo como tal. Ao discernirmos uma categoria como pertencente à ordem dos semblants, acusamos-lhe um determinado modo de funcionamento, o que nos permite olhar de fora, ainda que não possamos, rigorosamente, exilarmo-nos por completo de seu território. Aquele a quem é dado conhecer a natureza dos semblants não caberia aceder, no dizer de Miller, ao ideal da desilusão. O analista não é aquele que está imune a ilusões, apenas passa a lidar de modo diferente com elas. Temos visto como o campo do parecer pode ser abordado pelo ângulo da comédia, tornando-se menos nefasto para quem sofre seus efeitos.

Saber como opera um semblant é conhecer, de acordo com Lacan, o modo de articulação entre o saber e a verdade. O saber (ou um recorte significante qualquer sobre o mundo) não é toda a verdade, mas apenas uma de suas versões, sendo a verdade, para a Psicanálise, exatamente devedora de seu inacabamento essencial. O pai, o falo e a própria linguagem são exemplos recolhidos por Lacan para discernir os diversos modos de se operar com o semblant. Em linhas gerais, trata-se sempre de encontrar recursos para lidar com o lado insuportável da desproporção entre os sexos, de forma a se produzir um parecer. A obra do semblant consiste em envelopar sempre o vazio, fazer crer que há o que, de fato, não há. Uma vez que esse revestimento é operante e viabiliza um efeito de verdade, não se pode reduzi-lo propriamente ao campo da ilusão. Sendo assim, o que parece ser importante é admiti-lo como uma versão possível do enquadramento do real, e não o tomar como expressão absoluta da verdade.

Miller aponta-nos ainda o fato de não parecer tão óbvia a conexão da cadeia de significantes à função do semblant, uma vez que sua raiz conceitual, o estruturalismo linguístico, concedera-lhe o formato de um sistema de oposições que implica uma necessidade lógica, um funcionamento mecânico, mantendo-se estável como uma estrutura que se repete de forma autônoma, a despeito da deliberação subjetiva.

Digamos que o conceito de semblant seja um conceito fronteiriço, de dupla face, uma que se volta para o Real e outra para o Simbólico. A “nuvem significante” é uma construção distinta daquela de cadeia significante, pois aí estão previstos os efeitos do gozo. No texto “Lituraterra” é propriamente o gozo que vem jorrar quando o semblant se rompe, e é isto que trazem ao primeiro plano As nuvens de Aristófanes, segundo a apreciação de Lacan. Os sulcos cavados na terra constituem a imagem exemplar das ranhuras da escritura, passíveis de sobrepor as marcas diferenciais e o fluxo material do gozo, afinal composto da mesma matéria que formara o conglomerado de nuvem. Em relação a esse aspecto, é esclarecedor o comentário de Ram Mandil, em Os efeitos da letra – Lacan leitor de Joyce, de 2003, ao observar que há tanto continuidade quanto descontinuidade entre os elementos em questão:


Nuvens e riachos não se confundem, ainda que uma conjugação entre eles possa ser pensada, uma vez que a nuvem pode ser concebida como um dos lugares de onde os riachos derivam. Não se confundem porque há entre eles descontinuidade, representada pela precipitação.

Buscamos depreender, por meio da leitura da peça As nuvens, uma pequena amostra da presença maciça do trabalho material com as palavras no texto de Aristófanes. A presença insistente de jogos de linguagem, chistes e neologismos trazem ao primeiro plano a dimensão corporal das palavras, sua capacidade de fisgar o afeto e de injetá-lo no plano simbólico.

Se essa expressão dramática tem por pressuposto a contestação da estabilidade discursiva, mostrando a face intrusiva dos excessos do corpo que resistem a um enquadramento exaustivo (presente na raiz da pretensão sofística), ela o faz por meio de um trabalho que opera no âmbito da própria literalidade do significante. O seu mérito será, do ponto de vista da Psicanálise, o de trazer à cena o semblant em estado de ruptura, como pudemos observar a partir da peça comentada.

O texto “Lituraterra” avança em considerações a respeito da cultura japonesa e de suas conexões com a escritura. Ao título do livro de Roland Barthes, O império dos signos, Lacan apõe a expressão “império dos semblants”, no intuito de extrair, de acordo com seu ponto de vista, as consequências maiores do livro de Barthes.

Nele encontramos um estudo sobre diversos eixos da cultura japonesa, tais como a culinária, o urbanismo, a arte do embrulho ou embalagem (paquet), o teatro de marionetes, a escrita. A partir dessa variedade, procura-se discernir o que, nas palavras do autor, pode ser resumido como o “modo ideográfico de existir” proeminente no Japão, onde os modos de expressão do cotidiano dispensam as inflexões teatralizadas (histericizadas) das quais depende o narcisismo do homem ocidental.

Assim é que, em termos gerais, o “modo de existir japonês”, tão distante do nosso, põe em evidência uma espécie de véu decaído, num traçado plano, esvaziado das tergiversações comuns ao espírito ocidental, que exige os desvios da metáfora, no labirinto do sentido que se prolifera.

Dentre todas as esferas investigadas por Barthes merece destaque especial a que trata da arte japonesa da embalagem, do empacotamento (paquet). No Japão é muito valorizada a prática de se embalar objetos e o que merece ser sublinhado, segundo Barthes, é o contraste entre a forma e o conteúdo: de um lado, a suntuosidade e riqueza dos embrulhos; de outro, a insignificância e derrisão do objeto embalado.

Assim, podem ser encontrados um pequeno confeito ou uma lembrancinha vulgar, embalados de forma rica e sofisticada como se fossem joias. Esse exemplo pode estender-se a outros aspectos da cultura em questão, como certas composições literárias (haikai) e a própria escrita ideográfica, no que aí predominam uma isenção e uma efração do sentido.

Nesse ponto concentra-se o interesse de Lacan, ao reportar a noção de signo à de semblant, pois, no caso da segunda, ainda que prevaleça o gesto de ocultar, o que se oculta, de fato, é nada. Lembremos que um dos efeitos da comédia seria, por assim dizer, aproximar a forma (os discursos diversos: filosófico-Nuvens, literário-Rãs, jurídico-Vespas) do vazio que ela contém, trazendo-nos os semblants em estado de ruptura, imagem tão bem expressa pelo elemento nuvens, em sua composição dramática. Em poucas palavras, talvez fosse possível dizer que o que perde sua consistência, em última instância, são as formas soberanas do poder absoluto, sorvidas pelo invólucro do semblant que o artifício cômico vem desmontar, tocando exatamente no ponto de entrecruzamento da forma e do vazio que ela envolve. Dessa forma, o procedimento sofístico é atacado de dentro, com suas próprias armas, tornando-se hiperbólico, até dissolver-se no vazio.

Talvez o interesse lacaniano em retomar − tanto tempo depois de sua incursão mais significativa nos estudos sobre a comédia − a contribuição dessa peça de Aristófanes deva-se às transformações ocorridas ao longo de seu ensino com relação ao campo da linguagem. A conexão entre o domínio linguageiro – atrelado tradicionalmente a seu papel de veículo de comunicação e entendimento entre os homens – e esse caráter nebuloso que inclui um ponto de indecisão, decorrente do enodamento entre o corpo e a linguagem, implica um deslocamento conceitual, como propõe Miller. A cadeia significante, cujo modo de funcionamento estaria condicionado, segundo as coordenadas do primeiro ensino de Lacan, a uma perda regulada de gozo balizada pela função da metáfora paterna, distingue-se da noção de nuvem significante. Esta última talvez encontrasse um registro conceitual nos termos do que foi expresso por Lacan como pertencendo ao domínio de lalangue, a saber, a linguagem impactada pelos efeitos do afeto.

É digna de nota a composição da tríade dos deuses, a que devem respeito, na peça As Nuvens, os seguidores de Sócrates: “o Caos, as Nuvens, a Língua”. A língua em conjunção com o caos, abdica de sua função comunicativa, impondo-se, antes como traço, letra e rasura. Esse estágio anterior à ordenação gramatical da linguagem, nomeado lalangue por Lacan, pode ser associado àquele detectado por Freud na origem da genealogia do Witz: o puro jogo verbal, que visa a um ganho de prazer (lustgewin).

Em sua genealogia do Witz, Freud reconhece nos chamados chistes tendenciosos os esforços de supressão de barreiras críticas que apenas tiveram a oportunidade de se instaurar num momento tardio do desenvolvimento. Inicialmente, contudo, prevalecera a liberdade de jogar livremente com pensamentos e palavras de modo a usufruir do nonsense. Há chistes que levam o desconcerto ao extremo, ao recuperarem esse prazer intenso e antigo, vigente num período pré-gramatical. Persistem como absurdos e obstruem, de forma decisiva, as vias do sentido e da interpretação.

O que na década de 1950 havia sido colocado em relevo nos termos da imagem do “isso que calça as botas da linguagem” – como procedimento típico do estilo de Aristófanes – retorna, na década de 1970, como terreno fecundo para se evidenciarem os efeitos da ruptura de um semblant, do predomínio da letra sobre o significante. A linguagem forjada em seu tecido corporal, destacada dos princípios rígidos de sua organização, adquire a pronúncia dessas formações grotescas.

Toda a ambivalência das nuvens é representada na peça de Aristófanes por um coro de mulheres vestidas com tecidos vaporosos. A cena na qual o discípulo explica o caráter mutante das nuvens inicia-se com a pergunta de Strepsíades com respeito à sua correlação com as mulheres: elas na verdade assemelham-se a flocos de lã, e não a mulheres, observa. Não podemos deixar de notar o vínculo estreito entre o caráter transformista das nuvens e a presença feminina nas peças de Aristófanes. O feminino é instável e fugidio, não se contém em qualquer forma, assim como as nuvens.

São notórias representações da mulher na cultura grega e sua incidência no teatro cômico exatamente na vertente dos excessos e dos abusos em relação aos parâmetros convencionais da lei da cidade. Na década de 1950, ao resgatar o interesse da comédia para a Psicanálise, Lacan convoca a presença de uma personagem de Molière buscando, no contexto do teatro clássico francês, outros aportes para explorar o intercâmbio entre esses dois campos. Se o falo ocupa, em larga medida, o centro da leitura lacaniana do teatro de comédia nesse período, não deixa de ser curioso que sua análise desemboque, de modo insistente, na questão do feminino.

Tal como em Aristófanes, a performance feminina pode ser observada ao lado dos efeitos perturbadores, atestados quando o desejo vem fazer objeção a uma ordem discursiva estabelecida. Pela via da comédia, o psicanalista é levado a frequentar os ensinamentos da Escola de Mulheres.

 

Imprimir E-mail