Kapital!, de Michel Pinçon e Monique Pinçon-Charlot
Jogo Kapital! Quem ganhará a luta de classes?, de Michel Pinçon e Monique Pinçon-Charlot; adaptado ao Brasil por Guilherme Temudo Cianfarani; Consultoria: Deivison Mendes Faustino; tradução: Gabriel Voliche; edição: João Candido Maia; editoras: Boitempo e Autonomia Literária; ano de publicação: 2021; Ilustração original: Étienne Lécroart; Diagramação e ilustração versão brasileira: Gabriela Leite e Denise Dom; Revisão: Carolina Mercês e Lívia Campos; Dimensões do tabuleiro (cm): 56 x 39; Jogadores: 2 a 5; Tempo médio de partida: 50'. |
A Equipe Editorial de DERIVAS ANALÍTICAS descobriu um jogo, lançado pelas editoras Boitempo e Autonomia Literária, que mostra que as desigualdades sociais não são naturais: Kapital!.
Imitando a vida – mas diferente dos famosos jogos infantojuvenis, em que o objetivo é enriquecer e comprar propriedades, como no Banco Imobiliário, nem alcançar sucesso em todas as etapas da vida, como no Jogo da vida –, Kapital! propõe uma reflexão sobre a sociedade em que vivemos e suas regras não ditas, estimulando uma complexificação da lógica da desigualdade, que é sempre resultado de uma condução política realizada em favor dos mais ricos.
O jogo foi criado pelos sociólogos franceses Michel Pinçon e Monique Pinçon-Charlot, inteiramente concebido a partir da sociologia crítica, e lançado em 2020 na França. Um sucesso de vendas, com estoque esgotado em três semanas. A edição brasileira é de 2021 e foi adaptada à nossa realidade. As 82 casas, que correspondem à esperança de vida de um francês ao nascer, por exemplo, foram substituídas por 76, expectativa de vida no Brasil.
“Colocamos em prática os conceitos de Karl Marx e de Pierre Bourdieu, as teorias da exploração e da dominação, decorticadas e misturadas, aplicadas à classe dominante”, explicam os criadores, que afirmam que os jogadores são despertados para “a vontade e o desejo de mudar as coisas”. “Mas para ter esperança de mudar o mundo, é preciso inicialmente compreendê-lo. “Um jogo que mostra que a vida não tem pressupostos iguais para todos”, completam, e que propõe discutir quem vencerá a luta de classes.
Ao contrário dos jogos conhecidos, nos quais as cédulas representam apenas o dinheiro, aqui – seguindo a teoria do sociólogo Pierre Bourdieu − a riqueza não se resume a isso. Primeiro, jogam-se os dados para decidir quem são o dominante − no singular, porque só pode ter um − e os dominados. Se você é dominante, você recebe logo bastante dinheiro, cinquenta cédulas de capital financeiro, mas não só isso: recebe também cinquenta cédulas de capital social (“os ricos estão sempre com os ricos, têm amigos influentes”), de capital cultural, (“que representa o mundo dos mercados de arte, das universidades de prestígio, da chamada Alta Cultura”) e de capital simbólico (“a postura, o sobrenome, o bairro, a casa, a família, a história”). Os dominados têm direito a apenas dez cédulas de cada uma daquelas riquezas. E o dominante começa a partida, claro.
À medida que os jogadores lançam os dados, vão caindo em diversas casas e retirando cartas com perguntas a serem respondidas, que lhes permitirão avançar ou recuar no jogo. Existem cartas específicas para o dominante e os dominados. Além da questão a ser respondida, há um comentário sociológico para cada carta, e isso deve ser lido em voz alta, para evidenciar a diferença de classe social, e fazer entender que a riqueza é multidimensional, ou seja, que não basta ter dinheiro.
“O que nós fazemos neste jogo é ‘pleonasmar’ o real”, resumem seus criadores, evidenciando os efeitos do capitalismo em todos os países, que hoje são regidos pelo FMI e pelo Banco Mundial, por um sistema e tipo neoliberal, no qual a finança tem todo o poder. Para mostrar a diferença entre os quatro tipos de capital na vida real, Monique Pinçon-Charlot cita o exemplo do próprio marido, Michel Pinçon: “ele é filho de operários bastante pobres e terminou sua carreira como diretor de pesquisas do prestigioso Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), como eu, além de trabalharmos nos núcleos de Culturas e Sociedades Urbanas do Instituto de Pesquisa sobre as Sociedades Contemporâneas (IRESCO). Isso foi na época do Estado de bem-estar social e havia uma possibilidade de ascensão social. Mas, apesar disso tudo, Michel sempre teve uma dificuldade em relação ao capital social. Sou sobretudo eu, que sou de origem da burguesia provinciana, que gerencio o nosso capital social”.
No jogo Kapital!, é possível que um dominado ganhe, desde que ele tenha sorte para aproveitar seus bônus (cada personagem tem atributos psicológicos que interferem na conduta social ou condições impostas pelo capitalismo), se entenda bem com os outros dominados (existem regras específicas para cada personagem, as quais determinam as relações entre eles) e caia nas boas casas. Por exemplo, se um dominado cai na casa “Revolução”, todas as notas de Capitais em posse dos jogadores são reunidas, contadas e distribuídas igualmente entre os jogadores dominante e dominados. Já na casa “Greve Geral”, os dominados param de produzir e de enriquecer o dominante, que fica uma rodada sem jogar e perde trinta cédulas para a banca. Tem ainda as casas especiais “Prisão” – na qual o jogador dominado fica sem jogar e o jogador dominante pode sair sob fiança de dez cédulas − e “Todos Juntos”, na qual cada jogador dominado pode exigir do dominante duas cédulas de Capital de sua preferência.
A Equipe Editorial de DERIVAS ANALÍTICAS testou o jogo, em quatro partidas, com grupos diferentes de jogadores. Percebemos que, ainda que seja desconfortável para o jogador “dominante” – mesmo se ele não for de esquerda – tirar vantagem de privilégios que ele não fez por merecer, o jogo cria solidariedades de classe, arrancando gargalhadas – inclusive dele − quando este se dá mal (o que é raro), e que os efeitos das políticas públicas e as desigualdades que criam são claramente sentidos. Em duas partidas, venceram os dominantes − a rica e racista Srta. Helena e o aristocrata e hipócrita Nenê Noronha –, mas nas outras duas, venceram os dominados – a criativa e arrogante Naná e o otimista e reacionário Seu Pereira. Mais do que terem chegado à última casa do tabuleiro antes dos outros – os dominados que venceram não foram os primeiros a concluir o percurso −, os vencedores tinham também acumulado a maior quantidade de capital (financeiro, social, cultural e simbólico). Incomodamente divertido, o jogo chega ao final com a clara necessidade de redistribuição da riqueza no mundo, porque todo mundo pode se beneficiar de um sistema com mais justiça econômica, mais justiça social, prosperidade e desenvolvimento do que de uma sociedade muito desigual.
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