Laura Rubião
“O romance no qual eu trabalho sem cessar permanece sempre o mesmo e poderia ser definido como um romance do eu, recortado, fragmentado”, assim resume o escritor suíço Robert Walser[1] (1878-1956) sua peculiar relação com o campo das letras.
Leitor privilegiado e consequente, Lacadée recolhe, com a argúcia que lhe é própria, todo o impacto desse dizer, valendo-se de conceitos da psicanálise lacaniana como letra, lalangue e suplência.
Não fosse a menção elogiosa de Kafka, o mais ilustre dos leitores de Walser, este teria cumprido à risca seu destino: passar pela vida sem deixar rastros ou inscrevê-la nas margens do anonimato. Esse o destino que acaba por se encarnar em seu corpo ao se recolher, nos vinte e cinco anos finais de sua vida, em instituições psiquiátricas, em semimutismo, até ser encontrado morto na neve, ao longo de uma das muitas caminhadas que tanto apreciava. De sua vida discreta sabe-se muito pouco: que teria vivido, desde a adolescência, saltando de um emprego a outro; que se ligava a funções menores como ajudante bancário, mordomo, auxiliar de escritório; que fazia longas caminhadas solitárias e que refutou, de modo decidido e irônico, qualquer reconhecimento literário oficial. Tornou-se notável, no entanto, o momento de virada em sua relação com a escrita quando, sofrendo de câimbras nas mãos, admite ter sido atingido por uma ‘aversão à caneta’ e entra no que ele mesmo chama “o território do lápis”. Passa a escrever a lápis e reduz o tamanho da letra até a sua ilegibilidade máxima.
Lacadée nos permite acompanhar as vicissitudes dos procedimentos da escrita walseriana desde os primeiros romances, passando pelos contos e pelas pequenas peças de teatro. Numa primeira fase reconhecemos o formato coeso e bem ajustado do romance povoado da atmosfera naïf de seus personagens — quase sempre marcados por uma supraobediência à ordem social, por meio da qual inscrevem o lugar de resto daqueles que se orientam pelo ‘signo do zero’ e trazem, como bem assinalou Benjamin, a loucura “atrás de si”. Já no universo microgramático do “território do lápis”, a escrita, reduzida ao efeito de um traço mínimo, se apresenta como escrita do corpo, encarnação do zero à letra. Digamos que o autor teria se rendido, literalmente, ao domínio da rasura e do apagamento. Nessa caligrafia ilegível deixou mais de quinhentas páginas escritas em alemão literário “com tantas abreviações idiossincráticas que, mesmo para os editores mais familiarizados com ela, sua decifração inequívoca nem sempre é possível”.[2] Esse novo método evidenciou que o que importava agora era menos a narrativa em si do que o “movimento rítmico, ininterrupto, introvertido, movido a sonho” que lhe proporcionaria um autêntico prazer da letra, uma “bem aventurança singular”, de acordo com depoimento do próprio Walser.[3]
Da discrição irônica da juventude ao mutismo autístico em Herisau, Lacadée isola o pontosinthomático que atravessa e escreve de ponta a ponta esse ‘romance-vida’ — agora transmudado em romance do real — a saber, o traço singular da invisibilidade tão caro aos personagens e à atmosfera poética de Walser. Tornado ilegibilidade, no mais puro exercício da letra, este teria se prestado a uma dupla operação no campo da subjetividade: permitir ao sujeito se colocar ao abrigo do Outro enquanto lhe servia de estofo a um enlaçamento possível.
Le promeneur ironique é feito de seções curtas, numa montagem narrativa nada linear, o que conduz seu leitor à aventura errante de Walser. Poupado de um traçado fixo e pré-ordenado, ele poderá se entregar com prazer às surpresas do caminho e ao encontro (tyché) com a dimensão do insólito, uma das marcas cruciais da escrita de Walser.
Derivas Analíticas agradece a Laura Rubião por sua preciosa colaboração.
NOTAS
Laura Rubião é psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). Doutora em literatura comparada pela UFMG e autora do livro A ética do bem dizer nos estudos lacanianos sobre a comédia (no prelo).
[1]Apenas um romance de Walser está traduzido para o português: O diário de Jakob von Gunten. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
[2]COETZEE, 2000-2005, p. 42.
[3]COETZEE, 2000-2005, p. 42-43.
REFERÊNCIAS
BENJAMIN, W. Robert Walser. In: ______. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994.
COETZEE, J. M. Mecanismos internos: ensaios sobre literatura (2000-2005). São Paulo: Schwarcz, 2011.
LACADÉE, P. Le promeneur ironique. Nantes: Éditions Cécile Defaut, 2010.
– Laura Rubião